sábado, 23 de fevereiro de 2013

Os limites da pátria

20/02/2013 - Mauro Santayana - em seu blog

(JB) - É difícil saber se a Sra. Marina Silva é uma pessoa ingênua e de boas intenções, ou se optou, conscientemente, por defender os interesses das grandes potências que, sob o comando de Washington, exercem o solerte condomínio econômico do mundo e pretendem o absoluto império político.

Há uma terceira hipótese que, com delicadeza, devemos descartar: desmesurada ambição de poder, sem as condições concretas para obtê-lo e exercê-lo.

Os admiradores lembram sempre sua  origem modesta, o que não quer dizer tudo, mas não podem, com a mesma convicção, dizer que ela tenha mantido, ao longo da carreira, o que os marxistas chamam “consciência de classe”. Suas alianças são estranhas a esse sentimento.

Ela se tornou uma figura homenageada pelos grandes do mundo, mas, sobretudo, do eixo Washington-Londres. Se ela mantivesse a consciência de classe, desconfiaria desses mimos. Para dizer a verdade, nem mesmo seria necessária a consciência de classe: bastaria a consciência de pátria.

A Sra. Silva, como alguns outros brasileiros que se pretendem na esquerda, é uma internacionalista. O meio ambiente, que querem preservar tais verdes e assimilados, não é o do Brasil para os brasileiros, mas é o do Brasil para o mundo.

Quando a Família Real Inglesa e os círculos oficiais e financeiros norte-americanos cercam a menina pobre dos seringais de homenagens, usam de uma astúcia velha dos colonialistas, e fazem lembrar os franceses na aliança com a Confederação dos Tamoios, e os holandeses em suas relações com Calabar.

Os tempos mudam, os interesses de conquista e domínio permanecem, com sua própria dinâmica e solércia.

Os limites intransponíveis da razão política são os da pátria.

Todos os devaneios são admissíveis, menos os que comprometam a soberania nacional.

Não são apenas os estrangeiros que adoçam os sonhos da defensora da natureza. São também brasileiros ricos e conservadores que, é claro, procuram dividir a cidadania, para que fiéis servidores políticos mantenham sua posição no Parlamento e nos outros poderes.

Há informações de que grande acionista de banco poderoso se encarregou das despesas do espetáculo de lançamento do partido de dona Marina, que não quer ser chamado de partido.

E não se esqueça de que quem sempre a financiou é um industrial enriquecido com a biodiversidade amazônica.

Não há coincidências em política.

Os mentores da Sra. Silva querem que seu movimento, como ela anunciou, não seja de direita, nem de esquerda, e muito menos de centro - que é o equilíbrio pragmático entre as duas pontas do espectro.

É interessante a ilogicidade da proposta. Como é possível dissociar a ideologia da política e, ainda mais, a ideologia do viver cotidiano?

Esquerda e Direita existem na vida dos homens desde as primeiras tribos  nômades, e são facilmente identificáveis na postura solidária de alguns e no egoísmo de outros.

Sempre que pensamos em igualdade, somos, menos ou mais, de esquerda; sempre que pensamos na superioridade, de qualquer natureza, de uns sobre os outros, estamos na direita.

Mais ainda: ideia é a imagem que construímos previamente na consciência, seja a de um objeto, seja a de uma conduta social e política.
         
Não é possível viver sem um lado.

A doutrina da mal chamada Rede (apropriação apressada e ingênua do mundo da internet, que é um meio neutro) oferece essa aporia: é um partido sem partido, uma realidade sem geometria, uma ideia sem ideia. 

Este texto foi publicado também nos seguintes sites:
http://www.jb.com.br/coisas-da-politica/noticias/2013/02/19/os-limites-da-patria/
http://www.conversaafiada.com.br/politica/2013/02/19/santayana-e-a-blablarina-bastaria-a-consciencia-da-patria/
http://sensoreconomicobrasil.blogspot.com.br/
http://nogueirajr.blogspot.com.br/2013/02/os-limites-da-patria.html
http://saraiva13.blogspot.com.br/2013/02/os-limites-da-patria.html
http://contextolivre.blogspot.com.br/2013/02/os-limites-da-patria.html
http://brasil.dihitt.com.br/n/politica/2013/02/19/os-limites-da-patria
http://bloganacletoboaventura.blogspot.com.br/2013/02/quais-os-interesses-verdadeiros.html
http://joserosafilho.wordpress.com/
http://aliastpadua.com.br/index.php?secao=secoes.php&sc=96&id=4849&url=&sub=MA==
http://dilmanarede.com.br/ondavermelha/blogs-amigos/os-limites-da-patria
http://aindaespantado.blogspot.com.br/2013/02/os-limites-da-patria.html
http://altamiroborges.blogspot.com.br/2013/02/marina-silva-e-os-limites-da-patria.html
http://bakalarczyk.blogspot.com.br/2013/02/os-limites-da-patria.html
http://teacherramossblog.blogspot.com.br/2013/02/mario-santayana-marina-silva-e-os.html
http://anistiapolitica.org.br/abap/index.php?option=com_content&view=article&id=2362:os-limites-da-patria
http://blogger-news.net/a/2603829

Fonte:
http://www.maurosantayana.com/2013/02/os-limites-da-patria.html

Não deixe de ler:
- A 'politização' de Marina Silva - originalmente publicado no Vermelho
- Já temos a resposta, senadora Marina 
- Marina... você se pintou? - Maurício Abdalla
- A palavra está com você, leitor - Equipe Educom

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade e, excetuando uma ou outra, inexistem no texto original.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Suíça diante de frouxos controles de mercenários

20/2/2013 - Inter Press Service (IPS)

- Reportagem extraída do site Envolverde - por Ray Smith, da IPS



Basileia, Suíça – O governo suíço apresentou um projeto de lei para regular a indústria militar privada, mas críticos afirmam que é inútil.
No dia 24 de março de 2010 foi incluída uma nova empresa no registro comercial da Basileia. Seu nome era Aegis Group Holdings AG.

Poucos meses depois, em 2 de agosto, foi informado que o grupo havia assumido o controle sobre a Aegis Defense Services Ltd., com sede em Londres.

A Aegis descreve a si mesma como “uma empresa líder” na área “de segurança privada e manejo de riscos”. Assim, fornece serviços em todo o mundo, incluindo países devastados por guerras, como Iraque e Afeganistão.

A Aegis se mudou silenciosamente para a Suíça

Foto: Ray Smith/IPS

A chegada da companhia pegou de surpresa o governo, e também o público.

A previsão é de que mais empresas militares privadas se mudarão para a Suíça tentando tirar proveito da estabilidade política do país, dos baixos impostos e de sua imagem pacífica e de neutralidade.

As companhias militares privadas legalmente não diferem de nenhum outro fornecedor de serviços de segurança, e as firmas ativas em áreas de conflito são difíceis de serem identificadas no registro comercial. O Departamento Federal de Justiça e Polícia estima que no país operam 20 dessas empresas.

A Suíça tem uma longa história de enviar agricultores pobres como mercenários para campos de batalha europeus.

No final da Idade Média, os cantões suíços assumiram o papel de mediadores. A queda do negócio dos mercenários começou no século 18 e terminou com a introdução da Constituição federal suíça em 1848. A partir de 1859, já não era permitido combater em campos de batalha estrangeiros.

Desde então a “neutralidade” se converteu em um elemento fundamental da política externa da Suíça e, de um modo mitológico, em uma peça fundamental de sua identidade coletiva.

Muitos viram a chegada da Aegis como uma ameaça à neutralidade do país. Os políticos suíços impulsionaram a criação de um novo contexto legal para o registro e a extensão de licenças para empresas de segurança privada. Josef Lang, então conselheiro nacional e uma das principais figuras do Grupo Para Uma Suíça Sem Exército, pediu uma proibição nacional para as companhias militares privadas.

A ministra da Justiça, Simonetta Sommaruga, anunciou no dia 23 de janeiro uma “proibição para as companhias mercenárias”. Afirmou que a Suíça já não serviria como base para atividades que violaram os direitos humanos. Mas, o que foi anunciado como uma “proibição” se mostrou ser uma regulação inútil.

O projeto de lei prevê a notificação e proibição de certas atividades, mas não das companhias de segurança privadas em si mesmas. Proíbe que firmas ou grupos empresariais com sede na Suíça “participem diretamente de hostilidades dentro de um conflito armado no exterior”.

Em poucas palavras, “isto significa que a nova lei permite às chamadas empresas de segurança agirem dentro de conflitos armados no exterior e participarem indiretamente das hostilidades”, disse Josef Lang (foto à direita).

Quem pensa que no fragor da batalha alguém pode diferenciar entre participação ‘direta’ e ‘indireta’, não tem ideia de como são as batalhas atuais”, acrescentou.


Ulrich Petersohn (foto), pesquisador do Centro para os Estudos sobre Segurança, disse que no direito internacional a definição de “participação direta em hostilidades” é vaga e está sujeita a debate. “E onde termina a autodefesa?”, perguntou. “Obviamente, há uma zona cinza”, acrescentou.

Petersohn também apresentou um dilema realista. “O que se aplica quando é atacado um complexo militar custodiado por pessoal de empresas militares privadas?”.

O novo projeto de lei também proíbe essas companhias de “realizarem qualquer atividade que incentive violações sérias aos direitos humanos”.
Sobre isto, Lang perguntou: “Por acaso significa que está permitido incentivar violações leves dos direitos humanos?”.

O político do Partido Verde acredita que a lei não pode obrigar a Aegis a deixar a Suíça. “Eles simplesmente prometerão não participar diretamente de hostilidades em áreas de conflito, e também nada fazer para incentivar violações sérias aos direitos humanos”.

Não está claro como as autoridades suíças poderão controlar as atividades dos mercenários no terreno.

Albert A. Stahel (foto), diretor do Instituto de Estudos Estratégicos, com sede em Wädenswil, perto de Zurique, acredita ser possível uma queda da atração que a Suíça representa para as companhias militares privadas, mas disse que as que já estão presentes no país não serão limitadas. “O Conselho Federal deveria ter proposto uma proibição clara para as empresas militares privadas, declarando expressamente que não toleramos nenhuma firma que participe de guerras”, enfatizou Stahel à IPS.

Petersohn tampouco vê uma imposição de limitações legais significativas para a Aegis. “No entanto, a arma mais afiada do projeto de lei é que podem ser apresentadas demandas com base em suspeitas”. As companhias estão ansiosas para evitar publicidade negativa, e isto pode colocá-las sob pressão, explicou.

Lang citou como exemplo a rígida regulação da Noruega. “Em lugar de proibir determinadas atividades praticamente impossíveis de serem definidas, seria mais factível aplicar um critério mais controlável. As empresas norueguesas não têm permitido a entrada de armas em outros países”, afirmou.

No plano internacional, a Suíça, junto como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, lançou um processo que levou, em 2008, ao Documento de Montreux. Este texto intergovernamental assinado por 44 Estados contém uma compilação de boas práticas, mas não é legalmente vinculante.

Inesperadamente, a lei proposta pelo governo suíço não adere às boas práticas sugeridas.

O Documento de Montreux promove medidas para garantir a transparência em autorizações como a do controle por parte dos órgãos parlamentares. O projeto suíço deixa fora toda medida de transparência.

No entanto, se for aprovada, a lei obrigará as companhias militares privadas que operam na Suíça a assinar o Código de Conduta Internacional para Fornecedores de Serviços de Segurança Privada (Icoc-PSP), um contexto autorregulatório já assinado por 592 empresas do setor.

Para Stahel, este enfoque é inútil, porque não há mecanismo para impor sanções. Petersohn tem esperanças de que esses códigos possam levar ao desenvolvimento de normas que impliquem certo grau de obrigatoriedade.

O Icoc-PSP é funcional principalmente para a imagem das empresas signatárias, e mantém à distância outros fornecedores de serviços.

Petersohn enfatizou que as violações ao Código, de todo modo, correm o risco de desembocar em campanhas de denúncias.

O parlamento suíço debaterá o projeto de lei, mas não se espera que o torne mais severo. “Foi dado um passo nessa direção. Porém, o copo está apenas pela metade”, disse Stahel.

Fonte: Envolverde/IPS

http://envolverde.com.br/ips/inter-press-service-reportagens/suica-diante-de-frouxos-controles-de-mercenarios/


Nota:

A inserção de algumas imagens adicionais, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

O futuro dos índios

16/02/2013 - Entrevista com Manuela Carneiro da Cunha
- Por Guilherme Freitas no blog Combate ao Racismo Ambiental

Muitas vezes vistos como “atrasados” ou como entraves à expansão econômica, os povos indígenas apontam, com seus saberes e seu modo de se relacionar com o meio ambiente, um caminho alternativo para o Brasil, diz a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha (foto abaixo), que lança coletânea de ensaios sobre o tema.

Em “Índios no Brasil: História, direitos e cidadania” (Companhia das Letras), ela reúne ensaios das últimas três décadas sobre temas como a demarcação de terras e as mudanças na Constituição.

Nesta entrevista, a professora da Universidade de Chicago, convidada pelo governo federal para desenvolver um estudo sobre a relação entre os saberes tradicionais e as ciências, critica o "desenvolvimentismo acelerado" da gestão Dilma e defende "um novo pacto" da sociedade com as populações indígenas.

Índios no Brasil” é uma compilação de textos publicados desde o início da década de 1980. Ao longo desse período, quais foram as principais mudanças no debate público brasileiro sobre as populações indígenas?

Eu colocaria como marco inicial o ano de 1978, ano em que, em plena ditadura, houve uma mobilização sem precedentes em favor dos direitos dos índios. Na época, o Ministro do Interior, a pretexto de emancipar índios de qualquer tutela, queria “emancipar” as terras indígenas e colocá-las no mercado. O verdadeiro debate centrava-se no direito dos índios às suas terras, um princípio que vigorou desde a Colônia. Nesse direito não se mexia. Mas desde a Lei das Terras de 1850 pelo menos, o expediente foi o mesmo: afirmava-se que os índios estavam “confundidos com a massa da população” e distribuía-se suas terras.

Em 1978, tentou-se repetir essa mistificação. A sociedade civil, na época impedida de se manifestar em assuntos políticos, desaguou seu protesto na causa indígena. Acho que o avanço muito significativo das demarcações desde essa época teve um impulso decisivo nessa mobilização popular.

Outro marco foi a Assembleia Constituinte, dez anos mais tarde. O direito às terras tendo sido novamente proclamado e especificado, o debate transferiu-se para o que se podia e não se podia fazer nas terras indígenas, e dois temas dominaram esse debate: mineração e hidrelétricas.

Muito significativa foi a defesa feita pela Coordenação Nacional dos Geólogos de que não se minerasse em áreas indígenas, que deveriam ficar como uma reserva mineral para o país. Desde essa época, as mudanças radicais dos meios de comunicação disseminaram para um público muito amplo controvérsias como a que envolve por exemplo Belo Monte e hidrelétricas no Tapajós, e situações dramáticas como as dos awá no Maranhão ou dos kaiowá no Mato Grosso do Sul.

Creio que a maior informação da sociedade civil mudou a qualidade dos debates. Um tema novo de debates surgiu com a Convenção da Biodiversidade, em 1992, o dos direitos intelectuais dos povos indígenas sobre seus conhecimentos. E finalmente, com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), está se debatendo a forma de colocar em prática o direito dos povos indígenas a serem consultados sobre projetos que os afetam.

Você observa que a população indígena no país aumentou de 250 mil pessoas, em 1993, para 897 mil, segundo o Censo de 2010. A que pode ser atribuído esse aumento? As políticas de demarcação de terras e promoção dos direitos indígenas têm correspondido a ele?

O grande aumento da população indígena se deu no período de 1991 a 2000. Entre 2000 e 2010, o aumento foi proporcionalmente menor do que na população em geral. Só uma parcela desse crescimento pode ser atribuído a uma melhora na mortalidade infantil e na fertilidade. O que realmente mudou é que ser índio deixou de ser uma identidade da qual se tem vergonha. Índios que moram nas cidades, em Manaus por exemplo, passaram a se declarar como tais. E comunidades indígenas, sobretudo no Nordeste, reemergiram. Mas, contrariamente ao que se pode imaginar (e se tenta fazer crer), essas etnias reemergentes não têm reclamos de terras de áreas significativas.

Como avalia a atuação do governo da presidente Dilma Rousseff em relação às populações indígenas, diante das críticas provocadas pela Portaria 303 (que limitaria o usufruto das terras indígenas demarcadas) e o novo Código Florestal, por exemplo?

O Executivo tem várias faces: seu programa de redistribuição de renda está sendo um sucesso; mas seu desenvolvimentismo acelerado atropela outros valores básicos. Além disso, o agronegócio só tem aumentado seu poder político, o que desembocou no decepcionante resultado do aggiornamento do Código Florestal em 2012. O governo tentou se colocar como árbitro, mas ficou refém de um setor particularmente míope do agronegócio, aquele que não mede as consequências do desmatamento e da destruição dos rios.

A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e a Academia Brasileira de Ciências, em vários estudos enviados ao Congresso e publicados, apresentaram as conclusões e recomendações dos cientistas. Foram ignoradas. Agora acaba de sair um estudo do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia) que reitera e quantifica uma das recomendações centrais desses estudos. Para atender à demanda crescente de alimentos, a solução não é ocupar novas terras, e sim aumentar a produtividade, particularmente na pecuária, responsável pela ocupação de novos desmatamentos.

O governo tem um papel fundamental a desempenhar: cabe a ele estabelecer segurança, regularizando o caos que hoje reina na titulação das terras no Brasil. Basta ver que, como se noticiou há dias, as terras tituladas no Brasil ultrapassam as terras que realmente existem em área equivalente a mais de dois estados de São Paulo. Um cadastro confiável é perfeitamente possível, é preciso vontade política para alcançá-lo.

Você perguntou especificamente pela Portaria 303/2012, da Advocacia Geral da União, que pretende abusivamente estender a todas as situações de terras indígenas as restrições decididas pelo STF para o caso complicadíssimo de Raposa Serra do Sol em Roraima.

Ela é mais um sintoma de tendências contraditórias dentro do Executivo, que, por um lado, conseguiu “desintrusar” pacificamente uma área xavante, mas, por outro lado, admite uma portaria como essa. Ela é um absurdo, e não é à toa que foi colocada em banho-maria pelo governo. Foi suspensa, mas não cancelada.

A própria Associação Nacional dos Advogados da União pediu em setembro sua revogação e caracterizou sua orientação como “flagrantemente inconstitucional”. Essa portaria também fere pelo menos quatro artigos da Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário.

Em um ensaio da década de 1990, você já falava sobre a disputa por recursos minerais e hídricos em áreas indígenas. Acredita que essas disputas estão mais acirradas hoje?

Já na Constituinte, em 1988, esses dois temas foram centrais. Chegou-se a um compromisso, que estipulava condições para acesso a esses recursos: ouvir as comunidades afetadas e autorização do Congresso Nacional (artigo 231 parágrafo 3).

A disputa não mudou, mas o ambiente político atual favorece uma nova ofensiva da parte dos que nunca se conformaram. E assim surgem novas investidas no Congresso: projetos de lei para usurpar do Executivo a responsabilidade da demarcação das terras e para abrir as áreas indígenas à mineração.

Por sua vez, Belo Monte foi enfiado goela abaixo de modo autoritário: o Executivo atropelou a consulta prévia, livre e informada a que os índios têm direito, e não foram cumpridas condicionantes essenciais acordadas, por exemplo no tocante ao atendimento à saúde indígena.

No ensaio sobre a política indigenista do século XIX, você mostra como naquele momento se consolidou uma visão dos índios como povos “primitivos” que teriam por destino serem incorporados ao “progresso” ocidental. Até que ponto essa ideia persiste hoje?

Essa visão está cada vez mais obsoleta: a noção triunfalista de um progresso medido por indicadores como o PIB é hoje seriamente criticada. Valores como sustentabilidade ambiental, justiça social, desenvolvimento humano e diversidade são parte agora do modo de avaliar o verdadeiro progresso de um país.

Por outra parte, no século XIX, positivistas e evolucionistas sociais puseram em voga a ideia de uma marcha inexorável da História: qualquer que fosse a política, os índios estariam fadados ao desaparecimento, quando não simplesmente físico, pelo menos social. Essa também é uma falácia que a História ela própria desmistificou: os índios, felizmente, estão aqui para ficar.

A História não se faz por si, são pessoas que fazem a História, e seus atos têm consequências. Usa esse entulho ideológico quem carece de argumentos.

No ensaio “O futuro da questão indígena”, você defende a necessidade de “um novo pacto com as populações indígenas” e aponta a “sociodiversidade” como “condição de sobrevivência” para o mundo. Como define “sociodiversidade”, e o que seria esse “novo pacto”?

O Brasil não é só megadiverso pela sua grande diversidade de espécies, ele também é megadiverso pelas sociedades distintas que abriga. Segundo o censo do IBGE de 2010, há 305 etnias indígenas no Brasil, que falam 274 línguas. Essa sociodiversidade é, segundo Lévi-Strauss, um capital inestimável de imaginação sociológica e uma fonte de conhecimento. Um mundo sem diversidade é um mundo morto.

E quanto ao pacto com as populações indígenas que evoco, trata-se do seguinte: os índios que conservaram a floresta e a biodiversidade até agora (basta ver como o Parque Nacional do Xingu é uma ilha verde num mar de devastação) estão sujeitos a grandes pressões de madeireiras e de vários outros agentes econômicos. Nada garante, se as condições não mudarem, que possam continuar nesse rumo. Para o Brasil, que precisa com urgência de um programa de conservação da floresta em pé, um pacto com as populações indígenas para esse fim seria essencial.

Na Rio+20, você participou de um painel sobre as contribuições dos saberes indígenas para as ciências. O que pode ser feito para possibilitar esse diálogo?

O conhecimento das diversas sociedades indígenas pode continuar a trazer contribuições da maior relevância para temas como previsão e adaptação a mudanças climáticas, conservação da biodiversidade, ecologia, substâncias com atividade biológica, substâncias com possíveis usos industriais e muitos outros. Isso já está reconhecido e posto em prática no âmbito da Convenção pela Diversidade Biológica e no Painel do Clima, por exemplo.

Poder-se-ia pensar que bastaria recolher essas informações e usá-las na nossa ciência quando úteis. Mas há outra dimensão importante desses saberes, que é seu modo específico de produzir conhecimento. Essa diversidade nos permite pensar diferentemente, sair dos limites de nossos axiomas. Não se trata, como fazem certos movimentos new age, de atribuir um valor superior aos conhecimentos tradicionais; não se trata de aderir a eles. Tampouco se trata de assimilá-los e diluí-los na ciência acadêmica. A importância de modos de conhecimento diferentes é nos fazer perceber que se pode pensar de outro modo.

Foi abandonando um único postulado de Euclides que Lobatchevski e Bolayi viram de modo inteiramente novo a geometria. Por isso o diálogo dos diferentes sistemas de conhecimentos entre si e com a ciência deve preservar a autonomia de cada qual.

O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, via CNPq, encomendou-me um estudo para lançar as bases de um novo diálogo entre ciência e sistemas de conhecimentos tradicionais. Não é simples. Mas desde já sabemos que isso implicará formas institucionais que empoderem os vários parceiros.

Um projeto-piloto que está sendo planejado nesse contexto responde a uma das diretrizes da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) que faz parte do Tratado sobre Recursos Fitogenéticos. Trata-se da conservação da diversidade agrícola de cultivares de mandioca, sob a condução de populações indígenas do Rio Negro. A escolha não é por acaso. As agricultoras do médio e do alto Rio Negro conseguiram manter, criar e acumular centenas de variedades de mandioca.

Como interpreta mobilizações populares recentes em torno de causas indígenas, como aconteceu em favor dos guarani kaiowá?

Acho salutares essas mobilizações que, como já disse, são fruto de uma nova era na informação. Diante do recuo político nas questões ambiental, indígena e quilombola, há vozes que se levantam com indignação. A situação trágica dos guarani kaiowá, pontuada por suicídios de jovens, é emblemática do absurdo que seria a aplicação da Portaria 303/2012.

Uma ampliação mais do que justa de suas terras — já que as que lhes garantiram não correspondem ao que determina o artigo 231 da Constituição — levaria a colocar em risco as poucas terras que têm.

Os suicídios kaiowá atingem cada um de nós: somos todos kaiowá.

Fonte:
http://racismoambiental.net.br/2013/02/o-futuro-dos-indios-entrevista-com-manuela-carneiro-da-cunha/

Originalmente publicado em O Globo:
http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2013/02/16/o-futuro-dos-indios-entrevista-com-manuela-carneiro-da-cunha-486492.asp

Nota:
A inserção de algumas imagens adicionais, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

PT 33 anos: A idade da razão

18/02/2013 - Saul Leblon - Carta Maior

Quando a luta contra o arrocho salarial mesclou-se à saturação nacional contra a ditadura, nos anos 70, os metalúrgicos souberam ir além dos limites corporativos.

Assumiram a liderança de uma nova agenda histórica.

Desse impulso divisor nasceria o PT, há 33 anos.

A série de 13 debates que o Partido inicia nesta 4ª feira, (informe ao lado) a partir de São Paulo, com a presença de Lula e Dilma, para em seguida inaugurar um circuito nacional, pretende consolidar o inventário desse período, 1/3 do qual no comando do país.

A rememoração é necessária. 

Ela ocorrerá previsivelmente sob outros pontos de vista.

O colunismo bicudo, as manchetes especializadas nas adversativas, cuidarão de transformar o aniversário em necrológio.

O PT tem razões para acionar contrafogos. Mas seria crucial que não ficasse apenas nisso.

Seria precioso que surpreendesse indo além da reflexão de legítima defesa.

Os avanços em si são tão conhecidos quanto a contrapartida da desqualificação que os acompanha. À direita, disparada por um conservadorismo que os nega.

À esquerda, por visões - muitas delas legítimas - determinadas a instigar o debate progressista, sublinhando a insuficiência do patamar atingido.

O conjunto mais reafirma do que dissipa o essencial.

Os deslocamentos sócio-econômicos e geopolíticos acumulados na década de governo do PT, assim como os erros e hesitações que possam ser computados ao partido, compõem um novo e largo mirante da história brasileira.

O futuro que hoje se coloca na mesa do presente carrega intrínsecas condicionalidades progressistas.

Elas não existiriam tivesse o Brasil dos últimos dez anos sido governado pela coagulação conservadora que agora tenta desqualificar Lula, Dilma e respectivos governos.

Um dado resume todos os demais: sendo ainda uma das sociedades mais iníquas do planeta (apenas sete nações ostentam pior distribuição de renda) o Brasil é hoje o país menos desigual de toda a sua história.

Não é necessário endossar o trajeto de um resgate social inconcluso para reconhecer o degrau alcançado.

O ressentimento conservador, em permanente flerte com a oportunidade de uma elipse institucional, confirma o adágio de Lênin: 'política é economia concentrada'.

A agenda política da direita regurgita diuturnamente a intolerância de classe a um governo que não pode ser chamado integralmente de seu.

Ainda que seu sejam muitos dos cargos, recursos, políticas e limites espetados na relação de forças que compõe o coração de qualquer governo de coalizão.

O conservadorismo local e forâneo quer Lula e o PT longe de Brasília.

Não apenas pela bagagem dos avanços sociais e econômicos que faíscam na festa de aniversário do partido.

Mas pelo risco de que o 'inconcluso e insuficiente' possa gerar massa crítica de um novo salto, de repercussão histórica semelhante ao original. Agora em escala ampliada.

O medo de classe ajuda a entender a permanente conspiração de uma plutocracia que se lambuzou em caldas doces no ciclo recente e até há pouco.

Banhou-se confortavelmente nos últimos anos no cofre forte rentista onde a sociedade depositou o equivalente a 5% do PIB ao ano, referente aos juros da dívida pública.

O dízimo da governabilidade, diziam os mais condescendentes com a sangria asfixiante, foi reduzido de forma substancial em 2012.

A perspectiva de injeções declinantes nesse tanque do Tio Patinhas, mesmo associada a opções de investimentos (em infraestrutura) até mais rentáveis que a taxa de juro real, inquieta os detentores do dinheiro grosso.

Da ganância rentista com seu imenso aparato vocalizador partem os principais disparos que ameaçam o passo seguinte do ciclo histórico que agora fecha um balanço de 33 anos, 1/3 deles no governo da nação.

Um número para resumir o calibre do impasse.

O Brasil precisa investir algo como R$ 130 bi por ano. É o requisito para continuar gerando emprego, renda e receita capaz de ampliar e qualificar a rede pública de educação, a de saúde, transportes, pesquisas etc.

O dinheiro existe.

Até hoje engordou ocioso no pasto financeiro da dívida pública. Pronto para o abate líquido quando for esse o interesses de seus detentores. Sem ônus, nem risco.

O pasto raleou substancialmente com as podas feitas por Dilma na Selic, em 2012.

Mas a obsessão mórbida pela liquidez não serenou a qualidade e o tamanho de apetite.

Ao contrário.

O ventre gordo tem sido instigado a apostar no fracasso das restrições impostas ao capital a juros.

O tambor sombrio não cessa de emitir vaticínios e alertas.

Vai ter apagão; a inflação descambou; o PAC travou; a Petrobrás quebrou; Gurgel vai 'pegar' Lula; Eduardo e Aécio vem aí - e, claro, a Marina também.

Não importam os fatos.

A intenção é sinalizar a chance de uma volta redentora dos professores banqueiros ao poder, em 2014.

E estes não se fazem de rogados.

Diretamente, ou por intermédio de porta-vozes credenciados no jornalismo econômico, confirmam as intenções futuras, ao clamar pela alta dos juros já no presente.

Apascentam assim, as incertezas rentistas com o feno amargo das expectativas voláteis.

Quem toparia colocar capital em projetos de longa maturação com uma neblina dessa espessura?

Private banks, contas especiais que administram grandes fortunas no país, tem sob seu piquete uns R$ 500 bilhões.

Dinheiro coagulados pela guerra política que condiciona a engrenagem econômica.

Dinheiro ruminando indecisão.

Quase cinco anos do investimento pesado que o Brasil precisa fazer para avançar na caminhada da última década está aí.

A pergunta é:
os 33 anos rememorados a partir desta 4ª feira guardam algo do impulso original capaz de romper o novo ardil conservador, menos ostensivo, porém, mais complexo que aquele dos anos 70/80?

A distinção se estende à relação de forças.

Hoje,em certa medida, até mais favoráveis que a dos anos 70/80.

A supremacia neoliberal esfarelou-se. A oposição está atada a esse colapso como carne e osso.

Existe maior abrangência e capilaridade progressista; o Estado, bem ou mal, tem recorte democrático.

Acima de tudo: os ingredientes e a escala modificaram-se.

Para melhor.

Entraram no jogo 50 milhões de brasileiros que ascenderam socialmente através das políticas públicas implantadas desde 2003.

Exceto em breves intervalos de disputa eleitoral, essa paleta de forças e interesses quase nunca se mobilizou de forma coordenada e contundente.

Em certa medida, é como se o PT desconhecesse o real alcance do protagonista político mais importante que ajudou a revelar.

A omissão argui a responsabilidade histórica do partido que atinge a idade da razão.

É viável enfrentar as contradições e conflitos de um ciclo de desenvolvimento como o do Brasil atual, sem estreitar os canais de organização e comunicação com a principal força capaz de sustentar a continuidade e a coerência do processo?

A ver.

****************

Como participar dos debates do PT:
Petistas e simpatizantes que têm interesse no ato podem se credenciar por meio do seguinte endereço eletrônico: 

sorg.secretaria@pt.org.br 

É importante escrever no campo assunto a seguinte frase: “Credenciamento para ato dos 10 anos do PT no Governo Federal”.

Vagas são limitadas em função da capacidade de lotação.

Blogueiros:
O PT-SP vai disponibilizar um código para retransmissão do link. 
Interessados em rebater o material devem informar nome, telefone para contato e blog que representa nos seguintes e-mails:

jornalismo@pt-sp.org.br e imprensa@pt-sp.org.br 

No campo assunto deve estar discriminado: Credenciamento Blogueiros – 10 anos de PT no Governo Federal.

Imprensa:
O credenciamento deve ser feito por meio do endereço corporativos dos veículos de comunicação e conter: nome, telefone para contato e veículo que representa.

Enviar para os e-mails: 
jornalismo@pt-sp.org.br e imprensa@pt-sp.org.br

Credenciamento Imprensa: 10 anos do PT no Governo Federal deve constar no assunto da mensagem.

Serviço:
10 Anos de Governo Popular e Democrático do PT
Quando: 20 de fevereiro
Horário: 18 horas
Local: Hotel Holiday Inn - Parque Anhembi

Fonte:
http://www.cartamaior.com.br/templates/postMostrar.cfm?blog_id=6&post_id=1193

Leia também:
- A criminalização do PT e do povo - Lígia Deslandes

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade e, excetuando uma ou outra, inexistem no texto original.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

União Europeia promove a privatização da água no Velho Continente

Mali: rejeitemos esse desafio à civilização


Bandeira francesa junto a soldados do Exército do Mali. Foto: AFP

Por Antonio Negri*

A intervenção francesa no Mali reflete uma crise política que tende a generalizar-se na África saariana e subsaariana depois da “Primavera Árabe” do Magreb. “Manifesta-se o lado perigoso da Primavera Árabe”, escreve em manchete o New York Times, e acrescenta: “tinha razão o coronel Kadafi, quando previa que, se ele caísse, o pessoal de Bin Laden chegaria por terra e mar para ocupar as margens do Mediterrâneo”.

Mas, é isso que, realmente, impulsiona à rebelião os novos guerrilheiros nos desertos do Norte da África, ou são impulsionados por miséria cada vez mais feroz e pela lógica sempre destrutiva dos governos da ex-Françáfrica? As zonas rurais dos países do Sahel permaneceram, apesar delas mesmas, nos últimos anos, em situação de miséria profunda, que alimenta o êxodo da população e a desestabilização das grandes cidades. Frente a isso, as estatísticas macroeconômicas mostram a existência de um “falso” desenvolvimento vinculado à atual corrida pela extração de minérios em direção àqueles territórios ricos desses recursos: o Mali, por exemplo, é o terceiro produtor mundial de ouro, rico em urânio, e prevê-se que seja também muito rico em hidrocarbonetos.

O jihadismo entra nesses territórios não pelo fanatismo de alguns e não os submete a partir da ‘barbárie terrorista’ (como dizem à opinião pública ocidental), mas, sim, porque nesses países as instituições continuam a dissolver-se, dada a fragilidade econômica e civil. Por isso, o êxito dos “invasores” que não são invasores está praticamente garantido.

O Mali é só mais um país do Sahel – os demais também estão em situação crítica semelhante. A dúvida sobre o aprofundamento da crise em cada um deles depende só de alguns fatores casuais que ainda contêm o desabamento recém iniciado do “dominó”. No Mali, que em certo momento foi “vitrine da democracia”, o governo estava em crise há bastante tempo, asfixiado pela corrupção, por repetidos golpes de Estado e pela rebelião popular dos tuaregues no norte. Os tuaregues querem a independência do Azawad (vasta região desértica do norte do Mali). Essa revolta encontrou ocasião de triunfar porque, com a queda do governo do coronel Kadafi, muitos tuaregues voltaram ao seu país natal com armas (em grande e sofisticada quantidade) e equipamentos (logísticas regionais e alianças com parte do exército maliense). Deve-se ter em mente que a intervenção francesa (e da OTAN) na Líbia produziu naquele país a implosão de mil facções locais, ideológicas, étnicas, as quais, depois de Kadafi, ficaram sem qualquer autoridade capaz de ostentar força legítima.

A rebelião tuaregue armada encontrou, além disso, apoio forte e provavelmente decisivo em grupos salafistas e jihadistas que já em 2002, ao terminar a guerra civil argelina, haviam instalado os fundamentos da al-Qaeda no Magreb. Há cerca de dez anos, esses grupos vinham construindo (aproveitando a “indústria dos sequestros” e o apoio aos “traficantes’ ilegais que operam nesse amplo território) bases e redes de apoio à guerrilha. O perigo era evidente. Há três, quatro anos, está em andamento uma cooperação bilateral França-EUA para combater o que alguns chamam de “eixo Kandahar-Dakar”. Recentemente, o New York Times revelou que o Departamento de Estado investira cerca de 500 milhões de dólares nessa região, nessa estratégia de antiterrorismo. Já no início de 2012, o comando norte-americano na África, AFRICOM, deu-se conta de que boa parte das tropas malienses adestradas pelos norte-americanos haviam-se unido à revolução no norte do país.

Agora, vimos a intervenção francesa, em resposta a pedido urgente do governo de Bamako (ou do que resta dele) formalmente apoiado por extensa coalizão de países africanos e governos europeus. Mas a guerra francesa já parece estender-se como mancha de azeite para grande número de países vizinhos. O que se viu acontecer na Argélia na última semana, quando a gentil intervenção daquele governo e de seu exército já produziu centenas de assassinatos, é só o começo desse amargo desenvolvimento.

Por enquanto, consolam-se a imprensa e a opinião pública francesa com a crença de que não se trataria de guerra de usura (como a guerra no Iraque ou no Afeganistão) cujos protagonistas movem-se “entre as populações”; tratar-se-ia de guerra clássica no puro deserto, guerra de posições e de movimentos. As coisas não demorarão a mudar muito. Talvez os franceses, com as tropas de outros países africanos (que permanecerão sob comando dos franceses, enquanto os EUA continuarem reticentes e resistirem a envolver-se na mudança) consigam a vitória em campo. Mas em seguida... como governar no deserto, em situação de paz que não é paz, numa “guerra nômade” que começa, em quadro de histeria frente a eventuais ataques terroristas na França continental e, sobretudo, em face da memória da vergonha colonial e do despotismo pós-colonial mantido pela potência francesa? Mas, sobretudo, como considerar, na situação atual e em situação de pós-guerra – aspectos que nos permitimos chamar “aspectos bons” da Primavera Árabe, ou, melhor dizendo, daquela “Primavera Africana” que parecia estar começando a apontar também no Sahel?

É inútil – e vale a pena repetir – culpar o extremismo de um islamismo salafista radical, quando se está sufocando a única alternativa verdadeira que realmente teria chances de concretizar-se: o amadurecimento – já iniciado nesses territórios – de elites jovens, democráticas, anticapitalistas. É necessário atacar as causas socioeconômicas dessa crise.

Se se ouvem os especialistas, dizem que, para desenvolver um programa de reconstrução e de desenvolvimento, seria necessário intervir nesses territórios nos setores agrícolas, de reflorestamento, de criação de animais, na melhoria de estradas e do transporte, no acesso à água, na promoção da energia solar e eólica, etc. E logo reiniciar os programas de produção de algodão e de cereais nessas regiões... Em resumo: tudo. Por fim e especialmente, “as populações devem beneficiar-se da renda da mineração; do ouro, para começar, primeiro produto de exportação”.

Não é solução, de fato, cômica? E na risada não aparece, evidente, o cinismo, no mínimo hipócrita, que há em tanto insistir na mesma execrável sede de dinheiro que arrasta esses governos liberais a combater terroristas pelas impiedosas terras desérticas do Sahara e do Sahel como se fossem trunfos a distribuir entre os inimigos (porque é muito difícil identificar quem é terrorista e quem é camponês pobre ou proletário metropolitano agora sublevados). Ainda mais: não lhes parecem lágrimas de crocodilo – e na Itália todos as confundem – as lágrimas que nossos democratas tanto choram?

Pesado fardo de nossa civilização, que nos obriga a intervir! Sagrada obrigação da soberania, dessa vez exercida em nome da Europa! Atenção! Até os EUA já pararam de repetir essas estupidezes, depois das terríveis derrotas no Oriente Médio! Reconheçamos, isso sim, que só modificando radicalmente nossa consciência política, só rompendo radicalmente com formas de governos harmônicas e funcionais em relação ao capital, poderemos voltar a nos orientar corretamente.

No marco da globalização, não se pode raciocinar como raciocinam os Parlamentos nos países da Europa e o Parlamento Europeu, com homens e “mídia ou imprensa-empresa” votando a favor da intervenção francesa (e foi particularmente odiosa, em Estrasburgo, a atitude belicosa dos Verdes europeus).

Gilles Kepel – talvez o maior especialista em temas árabes conhecido no Ocidente – destaca que “o que está em jogo no Mali é um desafio à civilização na época da globalização. O Sahel é, ao mesmo tempo, vítima por excelência e lugar da incandescência”.

Acrescentamos: a resistência e a guerrilha anti-imperialista naquele desesperado local despossuído e devastado são luta anticapitalista. Não gostaremos de ter de reconhecer que os islâmicos têm razão.

*sociólogo e ativista político italiano, é autor, com Michael Hardt, de Império (Record, 2001). Tradução: Vila Vudu.

Leia ainda:
- Não à intervenção colonial no Mali
- Journal du Mali: O Mali, a França e os extremistas

Cínica e inteligente

19/02/2013 - Antonio Fernando Araujo

À rigor, em se tratando dessa personagem, não há razões objetivas que justifiquem os protestos públicos contrários a presença da blogueira cubana Yoani Sánchez (foto) no Brasil

Entretanto, a forma prazenteira com que os jovens da União da Juventude Rebelião, da União da Juventude Socialista (UJS) e da Associação José Marti, da Bahia têm recepcionado a mercenária não nos permite deixar de apostar na indignação que essa mocidade ora exibe, revelada como um patrimônio de honradez dos mais legítimos, diante desse escárnio que é trazer ao nosso país esse exemplar traiçoeiro do que de pior podem os interesses do capital globalizado produzir contra um determinado povo e seu governo.

Ainda assim, quem sabe, tais mobilizações pudessem também ser direcionadas para o Instituto Millenium, um dos possíveis patrocinadores de sua vinda em um conluio - como de hábito - com a grande mídia empresarial cristalizada na Família GAFE da Imprensa, maquinação por demais espúria para que tal visita seja considerada como algo relevante, revestido de um mínimo de dignidade.

Como escreveu Daniella Cambaúva, do OperaLeaks e transcrito no blog Esquerdopata, não faltam documentos que revelam os encontros sigilosos entre blogueiros cubanos dissidentes e a diplomacia norte-americana.

Se Yoani Sánchez e colegas fossem americanos e fizessem, nos EUA, exatamente a mesma coisa, pondo-se à serviço de outro país, seriam imediatamente presos e provavelmente fuzilados.

Em Cuba não. Continuam livres e, ainda por cima, posando de vítimas para a mídia internacional, mas com os bolsos recheados de dólares. Não há um país no mundo onde tal comportamento - espionagem e quinta-coluna - não renda prisão perpétua ou execução.

O que fazemos aqui é repudiar essa visita.

Ela em nada contribui para ajudar a consolidar a democracia que, desde 1988, tentamos construir e, assim sendo, podemos assegurar, de golpistas tupiniquins, tão cínicos e inteligentes quanto Yoani Sánchez, já estamos razoavelmente bem supridos.

Não fossem as mensagens secretas enviadas pelo chefe do Escritório de Interesses dos Estados Unidos em Havana, Jonathan Farrar, ao Departamento de Estado, desde 2009, e reveladas pelo Wikileaks e que descreveram o encontro entre a subsecretária de Estado adjunta para a América Latina, Bisa Williams e dissidentes cubanos, Yoani Sánchez, inclusive, não teríamos como afirmar isto aqui.

Nada deve nos surpreender. Yoani Sánchez, absolutamente vazia em termos ideológicos, nunca irá defender as conquistas da revolução cubana.

Nem as sociais do século XX e, muito menos, as científicas do XXI. Sua nulidade intelectual não lhe permite entendê-las. E mais, como exímia mercenária, não ganha um centavo pra isso.

Muito menos pra denunciar os cinco compatriotas seus (foto abaixo) que há anos encontram-se ilegalmente presos, sem julgamento, em cadeias norte-americanas.

E como já se observou que ela é bastante esperta e manipuladora para dedicar seu servilismo apenas ao império americano, nesse aspecto, não é difícil constatarmos que em tudo se assemelha ao papel desempenhado por nossa Imprensa GAFE.

Tanto uma quanto a outra são regiamente remuneradas pelo capital internacional para espernear o quanto puderem para que não se concretize "a determinação do governo de Cuba, manifestada nas palavras de Raul Castro, que assumiu sua última tarefa com a firme convicção e compromisso de honra de que o Primeiro Secretário do Comitê Central tem como missão principal e sentido de sua vida defender, preservar e prosseguir aperfeiçoando o socialismo e não permitir jamais o regresso do regime capitalista", como escreveu Max Altman, em abril de 2011.

Portanto, "como dijera el escritor y periodista uruguayo Eduardo Galeano, cuando se trata de Cuba, los grandes medios de comunicación, 'aplican una lupa inmensa que magnifica todo lo que allí ocurre cada vez que conviene a los intereses enemigos, llamando la atención sobre lo que pasa en la Revolución, mientras la lupa se distrae y no alcanza ver otras cosas importantes”, citado por Omar Pérez Salomón, em janeiro de 2012, quando relacionou "30 datos que muestran la fortaleza de la Revolución cubana en vísperas de su 53 aniversario."


Esta sim, talvez seja a forma mais adequada de mostrar à cínica, inteligente e bem nutrida Yoani Sánchez e a seus comparsas o quanto é complicado pretender sabotar as conquistas revolucionárias de uma nação, ainda que valendo-se de milhares de dólares, de um blog cujas mensagens são de traição ao seu povo e de cúmplices do calibre desses do Instituto carioca e da Família GAFE da Imprensa.
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