terça-feira, 22 de maio de 2012

Comissão da Verdade - Investigar ‘outro lado’ seria igualar nazis à Resistência

16/05/2012 - por Rodrigo Vianna
em seu blog Escrevinhador

No Brasil, tentariam igualar Aubrac a nazistas?

 Raymond Aubrac morreu no mês passado. Tinha 97 anos, viúvo.

 Na França, era tratado como herói. Lutou de armas na mão contra os nazistas e contra os franceses colaboracionistas, que aceitaram manter um regime fantoche em apoio a Hitler.

Aubrac e a mulher, morta há uma década, foram líderes da Resistência francesa. Se morassem no Brasil, parte dos comentaristas e colunistas da direita brazuca certamente diria que eles tinham sido "terroristas".

Sim, Aubrac lançou bombas, deu tiros. Foi preso, escapou milagrosamente dos nazistas. Tinha inimigos. E lutou. E não deixou de lutar.

Depois da Guerra, tornou-se amigo de Ho-Chi-Min. E na última campanha eleitoral francesa, chegou a declarar apoio a Hollande, do Partido Socialista. Ele tinha um lado.

Um homem precisa ser “neutro” pra lutar por Justiça?

Tolice. Mais que tolice. Argumento falacioso a proteger criminosos de guerra. Seja na Europa ou na América do Sul.

Aqui, às vezes cola. Lá, não cola…

No Brasil, Aubrac e a mulher talvez fossem chamados de “petralhas”.

Mais que isso. Talvez aparecesse um ex-ministro tucano dizendo que os dois lados” precisam ser investigados. Sim! Não é justo julgar (ou relatar os crimes, que seja) apenas dos pobres nazistas. E as “vítimas inocentes” do “outro lado”? Essa Resistência Francesa era “criminosa”…

Aubrac seria execrado, ofendido.

Pela internet, circulariam e-mails idiotas chamando o sujeito de “terrorista”, talvez achassem uma foto dele com fuzil pra dizer: olha só, o “outro lado” era adepto da força bruta, não era bonzinho, também precisa ser investigado…

Isso me lembra o título daquele livro: “Falta Alguém em Nuremberg!

Sim, para a direita brasileira (e os apavorados que se acham de esquerda e têm medo de enfrentá-la) seria preciso enviar a Resistência Francesa a julgamento!
  
Afinal, a Resistência pegou em armas, cometeu “crimes”.

 No Brasil, por hora, nem se fala em julgamento. Mas numa simples Comissão a relatar os crimes cometidos por agentes do Estado. Crimes contra a Humanidade. Não se fala em execrar soldados, sargentos ou oficiais que, eventualmente, tenham matado guerrilheiros em combate. Da mesma forma, nunca ninguém se atreveu a “condenar” os soldados alemães que lutaram nas trincheiras ou nas ruas.

O que se pretende é relatar crimes de tortura, desaparecimento, assassinatos cometidos a sangue frio…

Ah, mas estávamos numa guerra”, dizem militares brasileiros (secundados por civis perversos, e até por gente de boa fé mas desinformada) que atacam a Comissão.
Há controvérsias se aquilo que ocorreu no Brasil foi uma “guerra”…

De todo jeito, na Europa houve “guerra”. Pra valer. Nem por isso, crimes contra a Humanidade deixaram de ser julgados. Nazistas e seus colaboradores que torturaram, assassinaram e incineraram gente indefesa foram a julgamento.

A Resistência Francesa não foi a julgamento. Nem irá.


O resto é invenção do conservadorismo mais matreiro do mundo, porque dissimulado: o conservadorismo brasileiro.

Nesse debate sobre a Comissão da Verdade, é preciso derrotá-lo.

Com inteligência, moderação. Mas com firmeza.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

A INDIGNAÇÃO E A CPMI DO CACHOEIRA

20/05/2012 - por Laerte Braga por email


Um eleitor de Paulo Hartung, ex-governador do Espírito Santo, motorista de táxi, levou Dona Cremilda Fernandes, professora aposentada, ao ato que na quinta-feira mostrou a indignação popular naquele estado diante de outro estado, o de coisas gerado pela quadrilha Hartung. Ao final da corrida o motorista se disse estarrecido com o que ouviu de Dona Cremilda sobre o ex-governador e que a partir daquele momento deixaria de ser eleitor do dito.

Aos 72 anos de idade a professora Cremilda Fernandes foi participar de atos dos professores e outro contra a corrupção generalizada na máquina institucional do Espírito Santo. Buscar o reconhecimento de direitos fundamentais, já que lesada pelo complexo mafioso que controla o estado. Ela e o povo do Espírito Santo. Anos de empulhação, Camata, Hartung, o inexplicável Casagrande (não se sabe se de fato existe, é apenas uma marionete inventada por Hartung, ou banana mesmo).

Panfletou, mostrou sua indignação e ao término do protesto um infarto fulminante matou-a.

O deputado Cláudio Vacarezza, um dos principais líderes do PT, assustado com a possibilidade de convocação do governador Sérgio Cabral – Rio de Janeiro – para depor na CPMI do Cachoeira, em plena sessão enviou mensagem de texto através de seu celular ao governador para “tranqüilizá-lo”. Ao final escreveu o seguinte – “a relação com o PMDB vai azedar na CPI, mas não se preocupe, você é nosso e nós somos teu”.

De um lado a indignação e a coragem, de outro lado a farsa, o embuste. A CPMI nasce morta no interesse dos partidos majoritários no Congresso, da mídia venal padrão VEJA/GLOBO e de todos os envolvidos. Vai-se um anel, Demóstenes Torres, ficam os dedos, continua tudo como dantes no quartel do Abrantes. Nem falo do tal Procurador Geral Roberto Gurgel e da Procuradora/esposa Claudia Sampaio.

Quartéis estão se deixando envolver por velhos golpistas fardados, no temor da Comissão da Verdade. Temem que a História revele a covardia que buscam encobrir de todas as formas em nome do “patriotismo canalha”, definição precisa de Samuel Johnson – “o patriotismo é o último refúgio dos canalhas”.

Cabral anunciou um “código de conduta” para os que exercem cargos de confiança em seu governo e para ele governador. A tranca depois da porta arrombada e escancarada na luta política no Estado do Rio entre duas máfias. A dele Cabral e a de Anthony Garotinho.

Aí nem marcha para Jesus. A massa de alucinados na ilusão de terrenos no céu ao custo de dízimos e coisas que tais. Como a ação do deputado estuprador/religioso padrão Gildevan Fernandes.

A CPMI sem pressão popular não vai a lugar algum. Dona Cremilda terminou seus dias vibrando de indignação e deixando o exemplo que a luta é nas ruas e é contra o modelo político e econômico gerido por elites que estão bem acima de Carlos Cachoeira.

Banqueiros, grandes empresários, latifundiários, bancada evangélica e todo o retrocesso que traz consigo, ou ameaça de.

É assustador que em determinados assuntos estejamos marchando de volta a Idade Média ou sob ameaça de lá pararmos em meio a fogueiras que sacrificam humanos pela “verdade divina”.

Toynbee previu nunca é demais repetir. E algumas coisas Freud explica, outras nem ele.

Há um golpe em organização contra o presidente Hugo Chávez na Venezuela. “Patriotas” venezuelanos (banqueiros, grandes empresários, latifundiários) associados a grupos internacionais e inseridos no Plano Grande Colômbia que prevê o controle da América do Sul pelos norte-americanos, buscam criar condições para a tentativa de derrubada do presidente – sabendo de antemão das dificuldades por conta das reações populares e da impossibilidade de derrotar Chávez nas urnas –, mas abrindo o caminho para uma guerra civil, ensejando uma intervenção estrangeira “humanitária” e colocando o país no curso dos seus interesses.


Foi assim que destruíram a Líbia e é assim que estão tentando destruir a Síria.

Não são os interesses dos trabalhadores venezuelanos. É uma tentativa que atinge em cheio a América do Sul, toda a América Latina, ainda mais depois que o governador da província do Chaco na Argentina e o presidente Piñeda, Chile, escancaram o sul dessa parte do mundo a Washington e o que Washington representa.

As eleições na Venezuela serão em outubro, Chávez é o favorito, o país cresceu ano passado mais de 5%, índice surpreendente e a perspectiva é de um crescimento maior ainda neste ano.


Os resultados não interessam às elites que querem um crescimento em seus negócios e não participação popular no processo político. Lá, como aqui, elites entendem que democracia é fazer eleições dirigidas pela mídia facciosa, podre e marqueteiros capazes de vender ilusões. Quando se rompe esse esquema partem para o golpe.

Não tem escrúpulos em jogar o país no precipício de uma guerra se entenderem ser necessário, tampouco de aceitar a intervenção estrangeira. Já nascem colonizados.

Nesse diapasão, na desintegração da União Européia, o povo grego, valente e determinado, vai às urnas de novo. Não aceita as imposições do governo de Ângela Merkel, vocação frustrada de Hitler e da “superioridade germânica”, agora com um obstáculo, pelo menos no início, o francês François Hollande. Hollande quer renegociar o pacto fiscal, não aceita medidas restritivas. Sabe onde pega o chicote de Merkel e percebe seu país rumo a uma crise semelhante a que afeta a Grécia, a Espanha, a Itália e Portugal e começa a desintegrar o tal Reino Unido, principal colônia do complexo ISRAEL/EUA agora sob nova denominação – ISRAEL/EUA TERRORISMO HUMANITÁRIO E DEMOCRÁTICO S/A.

Gosto de demitir pessoas”. É uma afirmação de Milt Romney, adversário de Barack Obama na disputa pela presidência dos EUA. O republicano é um empresário especialista em “recuperar empresas” e isso sempre significa demissões, pois empresas são uma aberração própria da aberração maior, o capitalismo. A recuperação via de regra é com dinheiro público, como foi o caso da General Motors no início do governo Obama.

Pior, cegos por elevado consumo de hambúrguer especiais da rede McDonald’s, na crença que fora do basquete e do beisebol não existe saída, as pesquisas mostram que há um empate técnico entre os dois candidatos. Isso talvez porque saibam que ninguém muda nada, quem governa são outros.

Breve um massacre qualquer em qualquer parte, é a alternativa que os norte-americanos sempre encontram, ainda mais agora, que a guerra se escancarou como grande negócio e é gerida por empresas privadas.

Fora isso uma tonta, Soninha Francine, do PPS, partido de Roberto Freire, um esperto, mas nem por isso isento de faniquitos como o que deu com o boato de “louvado seja Lula” e a moça que considera o Nordeste e os nordestinos como peso para o Brasil, ou “indignos” do Brasil.

Os muitos anos de tucanato em São Paulo geraram figuras assim. Sem percepção da realidade achando que São Paulo é a Paris da América do Sul, ou a New York sei lá. Quem passa o domingo mergulhado em shopping não tem a menor noção da realidade e se bobear acaba acreditando que existe um tantinho assim, um cadinho de verdade em VEJA. Ou que pizza tem que ter toneladas de catchup com dez tomates para ser mais autêntico. Pior elege Roberto Freire deputado.

Aí acaba falando esse monte de besteira. Não é culpa do paulista, é o efeito PSDB/DASLU/FIESP. Fábrica de Boris Casoy.

O presidente da FIESP foi candidato a governador pelo Partido Socialista, precisa mais?


Fica a lição da professora Cremilda Fernandes. Não há saída fora das ruas e o desafio é despertar os trabalhadores para a luta que certamente não terá gente como Vacarezza em seu meio. Nem Cabral, mas nem Garotinho. E tampouco o festival de “patriotismo” dos torturadores, mas o esculacho que os estudantes promovem para identificar essas figuras repulsivas. Esse sim.

O general Leônidas Gonçalves, ministro do Exército escolhido por Tancredo em comum acordo com o general Ernesto Geisel (Tancredo e Geisel eram amigos próximos e o ex-presidente apoiou abertamente a indicação de Tancredo para a presidência, como incentivou o racha na antiga ARENA/PDS e depois PFL), foi o responsável pelo penúltimo golpe branco no Brasil (o último foi a reeleição comprada de FHC).

Na impossibilidade da posse de Tancredo e diante do estado de saúde do então eleito presidente, comunicou que os militares não aceitariam a posse de Ulisses Guimarães como presidente e a convocação de novas eleições como determinava o texto constitucional. Sarney, um oportunista, era mais fácil de controlar, aliás Ulisses não seria controlado, não era de sua natureza, nem do seu caráter de homem íntegro. Para evitar que os militares permanecessem no governo Ulisses aceitou a solução e Sarney virou presidente. Agora o general investe contra a Comissão da Verdade. Tem sentido.

domingo, 20 de maio de 2012

Carlos Fuentes: escrever para ser

16/05/2012 - por Eric Nepomuceno
Extraído do site Carta Maior

Muito mais que um grande escritor, a América perdeu um homem de seu tempo – de seus tempos.

Que soube defender suas idéias com tamanha inteireza, com tamanha elegância, com tamanha firmeza, que mesmo os que tantas vezes discordaram dele poucas vezes deixaram de respeitá-lo.

Fuentes acreditava no futuro. No futuro da América Latina, no futuro do ser humano.

Acreditava que, em algum momento desse nosso eterno recomeçar, nós, da América Latina, deixaríamos de recomeçar e começaríamos de verdade.

O artigo é de Eric Nepomuceno.


O escritor mexicano Carlos Fuentes, ao centro, à esq. o peruano Mario Vargas Llosa e à dir. o colombiano Gabriel García Márzquez (El País)

Vejo algumas fotos em preto e branco. E me detenho em uma, feita em algum dia incerto da Barcelona daqueles anos 70, mostrando um Vargas Llosa alto e sorridente, um Carlos Fuentes um tanto formal, e um Gabriel García Márquez cabeludo e com bigodes que parecem desenhados a carvão. Fuentes ainda fumava: na mão esquerda, posta fraternalmente sobre o ombro de García Márquez, aparece o cigarro. Ali estão eles: Vargas Llosa aparece à esquerda, Fuentes está no centro, García Márquez à direita. Exatamente o avesso do que a vida reservaria aos três, ou do que os três fariam de suas vidas.

Na foto, os três são jovens, e parecem confiantes, e ocupam o inverso do espaço que o tempo e a realidade se encarregariam de colocar em seus devidos lugares: quem à direita, ao centro, à esquerda.

Volta e meia imagino como terá sido ser jovem, ou melhor, ser um jovem Fuentes, um jovem Mario Vargas, um jovem García Márquez naqueles anos de turbilhão. Uma vez perguntei isso a Fuentes. Estávamos em São Paulo, caminhávamos ao léu com Silvia Lemus, sua mulher, para cima e para baixo por aquelas paralelas da rua Augusta, e ele me contava coisas. Dizia assim:

 "É que a gente era muito jovem, e acreditávamos nas mesmas coisas, e tínhamos uma confiança enorme no futuro".

Insistia: sua amizade com García Márquez, que vinha de 1961, era a qualquer prova. E acabei sendo testemunha disso, dessa verdade.

E lembro que algum tempo depois, coisa de ano ou ano e meio, ao entrar num restaurante italiano em Buenos Aires, topei com ele e com Silvia. E ele, como sempre de uma elegância sem fim – e, atenção: estou me referindo à elegância como postura diante da vida –, quis continuar uma conversa que eu nem lembrava qual era.


Argentino Julio Cortázar, escritor, Carlos Fuentes
e o cineasta espanhol Luis Buñuel

Era a conversa sobre nossos respectivos anos jovens. Disse ele, lembrando de Vargas Llosa, de García Márquez, de Cortázar: "A vida segue, e às vezes, nos separa. Bom mesmo é quando você consegue discordar de tudo e fazer com que nada separe os afetos, a amizade".

Tentou isso a vida inteira. Às vezes – com Cortázar, com García Márquez –, conseguiu. Aliás, sem maiores esforços.

Quando me refiro a ele como um homem elegante, me refiro a um pensamento que conseguia ser ao mesmo tempo ágil e contido, que não se limitava às barreiras que muitas vezes nos impomos a nós mesmos. Acreditava no que acreditava.

Acreditava no futuro.


No futuro da América Latina, no futuro do ser humano.


Acreditava que, em algum momento desse nosso eterno recomeçar, nós, da América Latina, deixaríamos de recomeçar e começaríamos de verdade.

E escrevia assim: acreditando.

Não há dois livros dele que sejam iguais. Porque, em seu ofício, Carlos Fuentes era como na vida: sempre disposto a recomeçar, a reinventar. Sua obra é desigual, porque ao longo da vida somos desiguais. Escrevia cada livro como se fosse o primeiro. E por isso mesmo ele foi tantos, como tantos somos nós em nosso dia-a-dia.

A única coisa que se manteve sempre em cada palavra, cada frase que desenhou, foi a fé no futuro. Jamais acreditou em limites e fronteiras, quando escrevia. E nem quando vivia.

Qualquer um que tenha a palavra escrita como matéria prima, e a memória como guia dos tempos, saberá descobrir no autor de "A região mais transparente", ou "A morte de Artemio Cruz", ou de "Terra Nostra", de "Gringo Viejo", um eterno contemporâneo, um companheiro de viagem, um parceiro de sonhos e ousadias. E uma testemunha de desesperanças e esperanças, de tudo aquilo que poderíamos ter sido e que não fomos.

Fuentes dizia que, mais do que pela obra dos grandes historiadores, dos grandes sociólogos, dos grandes antropólogos – e ele foi amigo de vários dos grandes –, a verdadeira história nossa era escrita por escritores.

Lembro bem da vez em que ele disse que escrever literatura não era um ato natural: era como dizer que a realidade, não é suficiente. Que precisa de outra realidade, a da imaginação. E que isso era perigoso. Assim viveu, assim escreveu.

Muito mais que um grande escritor, a América perdeu um homem de seu tempo – de seus tempos. Que soube defender suas idéias com tamanha inteireza, com tamanha elegância, com tamanha firmeza, que mesmo os que tantas vezes discordaram dele poucas vezes deixaram de respeitá-lo.

Eu perdi um amigo distante. Que teve uma vida coalhada de dramas tenebrosos – a ele e a Silvia foi reservada a pior das dores de um ser humano, a de enterrar seus filhos – e conseguiu continuar caminhando. E sorrindo.

Lembro de Carlos Fuentes como alguém que não se deixou abater. Que não deixou de sorrir e de acreditar.

 Certa vez, ele me disse que escrevia para continuar sendo. E, assim, foi.

sábado, 19 de maio de 2012

Água não se nega a ninguém - Parte 5/5 - Final

A Guerra da Água
Carlos Walter Gonçalves*

Parte 1/5: A Necessidade de Ouvir Outras Vozes
Parte 2/5: Algumas Razões da Desordem Ecológica Vista a Partir das Águas
Parte 3/5: Águas para Quem? Do Interesse Privado e do Público
Parte 4/5: A Liberalização e a Privatização: entre a Teoria e a Prática

Estamos, na verdade, imersos numa guerra mundial envolvendo a água, mas não uma guerra no estilo clássico, com exércitos se enfrentando ou com bombardeios.

Não, a guerra pelo controle e gestão da água vem sendo disputada na Organização Mundial do Comércio, discutidas no Fórum Econômico de Davos, nas reuniões do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional onde se decide um novo "código das águas" que quer torná-la uma mercadoria e, para isso, é preciso primeiro privar os homens e mulheres comuns do acesso a ela.

Sem privatização não há mercantilização no sentido capitalista.

Mas as decisões feitas nesses fóruns da globalização do dinheiro não podem prescindir da materialidade concreta da água para mover a agricultura, a indústria, as cidades, a vida.

Assim, há que concretamente se apropriar da água nos lugares onde ela está e onde soem estar as populações com outros usos da água para a vida. Assim, como as guerras não se ganham com bombardeios, embora gere pânico e horror, há que se fazer presente no território de onde a água não pode ser abstraída porque ela atravessa toda a sociedade e seus lugares. Daí, em todo lugar onde se tenta se apropriar da água há resistência.


Jerson Kelman
A guerra global pelo controle da água tem especificidades ligadas à sua própria natureza. A água não é uma commoditty como se vem tratando tudo a partir momento em que se torna hegemônica essa mentalidade mercantil, liberal e privatista. Observemos o que diz Jerson Kelman, [ex] diretor da ANA [Agência Nacional de Águas]: “A água bruta não é uma commodity, como o petróleo, uma vez que não existe um mercado disposto a consumir grandes quantidades de água a um preço que compense os custos de transporte. Nem tampouco se prevê o surgimento desse mercado porque a maior parte do consumo de água doce do mundo se consome na irrigação."

"Para que se tenha uma idéia de quanta água é necessária para produzir alimentos, posso dar o seguinte exemplo: para produzir um quilo de milho são necessários mil litros de água. Um quilo de frango, cerca de dois mil litros. Vamos imaginar uma pessoa com pouca criatividade culinária que coma diariamente 200 g de frango e 800 g de milho. É só fazer as contas para concluir que essa pessoa come cerca de 1200 litros de água por dia, uma quantidade de água 500 vezes maior do que a que bebe. Naturalmente, esse cidadão não poderia pagar pela água que come o mesmo que paga pela água que bebe."

"(...) Uma coisa é o comércio internacional de água mineral, que pode atingir altíssimos preços unitários, mas que ocorre em escala relativamente modesta, apenas para atender às necessidades de beber. Outra coisa seria o comércio a granel de água bruta, como insumo agrícola. Devido à grande quantidade consumida per capita, não seria sustentável que os preços unitários fossem muito elevados. E como custa muito caro transportar água, o que faz mais sentido é exportar alimentos, e não água. Esta é, aliás, a grande vocação do Brasil” (EA, ano 12, no. 01, janeiros/abril de 2003: pág. 12). 

Lester Brown
Assim como Lester Brown já havia assinalado, as diferentes lucratividades possíveis com a mesma quantidade de água, maior na indústria que na agricultura, por exemplo, vemos aqui a que pode levar esse mesmo raciocínio – água para exportação se sobrepondo à água para consumo humano direto e, tudo indica, serão os conflitos sociais que advirão entre a lógica privatista e liberal e a de uso comum que decidirão as novas regulações da água.

Assim, vê-se como está sendo decidida a guerra global da água. Os governos, como salientou acima Maude Barlow, diminuem as tarifas para serem competitivos e o preço da água necessária para produzir commodities é subestimado, até porque seria impossível exportar, caso o preço fosse unificado. O que se revela, com isso, é todo o limite de regras universais com que o discurso liberal-econômico procura se revestir e, ainda, como a natureza continua transferindo uma riqueza, no caso a água, sem a qual a produção não seria possível, haja vista o preço que seria necessário pagar, caso tivesse que incorporar a água plenamente utilizada ao valor final da commodity.

Maude Barlow
A análise da água requer, o tempo todo, que se a considere na sua geograficidade, isto é, na inscrição concreta da sociedade na sua geografia, com as suas diferentes escalas local, regional, nacional e mundial imbricadas num processo complexo de articulação ecológico e político. Só assim se explica a transferência dos países ricos em capital para os países ricos em água de várias atividades altamente consumidoras, como assinalamos para as indústrias de papel e celulose e de alumínio.

A desordem ecológica global está, na verdade, associada ao processo que deslocou completamente a relação entre lugar de extração, de transformação e produção da matéria e o lugar de consumo com a revolução (nas relações sociais e de poder por meio da tecnologia) industrial. Com a maior eficácia energética foi possível explorar minerais em proporções ínfimas quanto à sua concentração nas diferentes jazidas existentes na geografia do planeta, assim como na sua natureza nanométrica. Os rejeitos ou foram deixados nos locais onde as pessoas valem menos – nunca é demais lembrar o racismo subjacente ao sistema-mundo moderno-colonial – e os produtos foram e são levados limpos para os lugares e pessoas que podiam e podem gozar os proveitos, diz-se a qualidade de vida, desde que não se incluam os custos dos seus rejeitos nem se lembre aos bem-nascidos dessa mosca pousando em sua sopa, parodiando Raul Seixas, que é a injustiça ambiental em que se ancora seu modo de vida. 

Boaventura de Sousa Santos
Dada a importância do tema da água é fundamental que ouçamos a observação de Boaventura de Sousa Santos que, rompendo com a colonialidade do saber e do poder, nos convida a que não desperdicemos as múltiplas experiências que a humanidade nos legou e que o primeiro-mundismo não nos deixa enxergar.

Diferentes instituições foram criadas por diferentes povos ao longo da história (e suas geografias) estabelecendo regras as mais variadas de uso da água. Os povos árabes e arabizados detém a esse respeito uma grande tradição de convivência com a água em áreas desérticas e semi-áridas. Os espanhóis são herdeiros de muitas dessas regras para lidar com la sequía e suas lições podem ser aprendidas em Yerma de Garcia Lorca.

Aziz Ab’Saber

Os sertanejos do nordeste brasileiro desenvolveram toda uma sabedoria que vai da previsão do tempo, que mereceu, inclusive, a atenção da NASA pelo seu elevado índice de precisão, ao aproveitamento máximo do mínimo de água com que têm que se haver diante da irregularidade das precipitações, com suas culturas de vazante, conforme destaca o geógrafo Aziz Ab’Saber.

Os chineses, hindus, os maias e os aztecas, que chegaram a ser chamadas pelos historiadores de civilizações do regadio, têm tradições que merecem ser estudadas, agora que a água parece convocar a todos a buscar novas formas de gestão e controle. Portanto, caso não se queira desperdiçar, mais uma vez, por preconceito, a diversidade de experiências que a humanidade desenvolveu, como é característico do etnocentrismo ocidental, não nos faltará inspiração para buscarmos soluções, sublinhe-se, no plural.

Tudo indica que o planeta como um todo começa a dizer, tanto ecológica como politicamente, que o local já não é isolável, tal como o foi durante o período áureo do colonialismo e do imperialismo clássicos.

O desafio ambiental nos conclama à solidariedade e a pensar para além do individualismo fóbico.

E como não há instituições que não sejam instituídas, é bom prestarmos atenção aos sujeitos instituintes que estão pondo esse-mundo-que-aí-está em xeque e que apontam, com sua lutas, que um outro mundo não só é possível, como necessário.

(*) Geógrafo, doutor em Ciências pela UFRJ e Coordenador do Programa de Pós-graduação em Geografia da UFF. Ex-Presidente da Associação dos Geógrafos Brasileiros (1998-2000) é autor de diversos artigos e livros publicados no Brasil e no exterior.

[Nota da Equipe Educom: Parece que o Brasil está fazendo um movimento inverso à luta dos povos latino-americanos... De modo geral, os tecnocratas da ANA (Agência Nacional de Águas) e do CPRM (Companhia de Pesquisas e Recursos Minerais) têm ajudado o mercado da água a acelerar o processo de privatização, à medida que pesquisadores do país descobrem que nosso potencial de água é maior do que imaginávamos. Entregam pesquisas já feitas por brasileiros a estrangeiros, patrocinadas a peso de ouro com recursos do povo brasieliro, negados aos pesquisadores das instuições e das universidades brasileiras.]

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Água não se nega a ninguém - Parte 4/5

A Liberalização e a Privatização: entre a Teoria e a Prática
Carlos Walter Gonçalves*

Parte 1/5: A Necessidade de Ouvir Outras Vozes
Parte 2/5: Algumas Razões da Desordem Ecológica Vista a Partir das Águas
Parte 3/5: Águas para Quem? Do Interesse Privado e do Público

1- A Transnacionalização e a Maior Concentração de Capital no Campo dos Recursos Hídricos


A liberalização e a mercantilização vem ensejando uma nova dinâmica à "conquista da água".

Trata-se, segundo Ricardo Petrella, “da integração entre todos os setores no contexto da luta pela sobrevivência e pela hegemonia no seio do oligopólio mundial. Cada um desses setores - água potável, água engarrafada, bebidas gaseificadas, tratamento de esgotos – têm, no momento, seus protagonistas, suas especialidades, seus mercados, seus conflitos”.

A Nestlé e a Danone, por exemplo, são as duas maiores empresas do mundo em água mineral engarrafada e junto com a Coca-Cola e a Pepsi-Cola tornaram-se concorrentes das empresas de tratamento de água graças ao desenvolvimento e comercialização nas empresas e residências de uma água dita de síntese, purificada, apresentada como mais sadia do que a das torneiras.

As empresas francesas Vivendi Universal, com faturamento de cerca de 12,2 bilhões de dólares em 2001, e a Suez-Lyonaise des Euax, com faturamento de 9 bilhões de dólares no mesmo ano, vêm disputando ou se associando, conforme o caso, para ter o controle da água potável das torneiras com a gigante alemã RWE (e sua filial inglesa Thames Water), com a Biwwater, a Saur-Bouygues, a estadunidense Bechtel, Wessex Water (Enrom).

Segundo Franck Poupeau analista do Le Monde, “no mercado da água, os dois gigantes franceses e suas inúmeras filiais vêm assinando contratos de privatização muito lucrativos há quinze anos. Os sucessos da Suez-Lyonnaise des Eaux (China, Malásia, Itália, Tailândia, República Tcheca, Eslováquia, Austrália, Estados Unidos) não devem fazer esquecer os da Générale des Eaux (hoje, Vivendi), com a qual a Suez-Lyonnaise se associa às vezes, como em Buenos Aires, em 1993. Nos últimos dez anos, a Vivendi instalou-se na Alemanha (Leipzig, Berlim), na República Tcheca (Pilsen), na Coréia (complexo de Daesan), nas Filipinas (Manila), no Cazaquistão (Alma Ata), mas também nos Estados Unidos, com suas filiais Air and Water Technologies e US Filter”.

A lógica mercantil capitalista, por seu turno, vem mudando o destino da água, assim como os seus destinatários.

É o que se pode ver durante a crise provocada pela seca de 1995 no norte do México, quando o governo cortou o fornecimento de água para camponeses e fazendeiros locais, para garantir o abastecimento para as indústrias controladas em sua maioria por capitais estrangeiros (Barlow, M. in Ouro Azul – consultar http://www.canadians.org)/

Lester Brown também vem assinalando o desvio de água obedecendo à lógica da lucratividade. É ele quem nos oferece cálculos que nos dizem que, na Índia, uma tonelada de água pode gerar um lucro de US $ 200 na agricultura e de US$ 10.000 na indústria. Não deve nos causar surpresa, portanto, quando, aceita essa lógica de mercantilizar a água, se beneficie a água para o destino (e o destinatário) industrial, aliás como vem ocorrendo nos EUA, conforme o próprio Lester Brown, que nos informa que fazendeiros estão preferindo vender a água para industriais pois assim obtém maior lucro! Como observou um morador de Novo México após a água de sua comunidade ser desviada para o uso da indústria de tecnologia de ponta: “A água flui morro acima para o dinheiro”. (Barlow, Maude “Ouro Azul”. Consultar http://www.canadians.org/).

Pode-se dizer, em benefício da dúvida quanto às boas intenções dos que estão propondo essas políticas, que esses são efeitos não desejados da sua aplicação. Todavia, são efeitos reais cujas conseqüências estão sendo, sobretudo, de agravar a injustiça ambiental. Afinal, a admissibilidade de que usemos a quantificação para efetuarmos cálculos mercantis, tão bem ancorada nos fundamentos da ciência ocidental moderna (e colonial), ao se abstrair da materialidade concreta do mundo deixa escapar as relações mundanas que não se deixam aprisionar por essa lógica matemático-mercantil e, assim, a lei da oferta e da procura que funciona tão bem no papel não se mostra desse modo no mundo das coisas tangíveis e o capitalismo realmente existente não se mostra, sobretudo quando se o considera sob o prisma ambiental, um bom alocador de recursos. Até porque a alocação de recursos naturais não depende da dinâmica societária e quando essa dinâmica se inscreve nessa alocação de recursos deveria tomar em conta, sempre, que está imersa em sistemas complexos que não se deixam aprisionar por lógicas lineares, mesmo que multivariadas.

Ricardo Petrella captou a importância do que significa, na verdade, esse processo de apropriação privada desse recurso que flui por todos os seres vivos quando nos diz: “A privatização das águas é, na verdade, a aceitação da privatização de um poder político.

(...) Dessa forma a iniciativa privada se transforma no detentor do poder político real, ou seja do poder de decidir sobre a alocação e distribuição da água”.

(Ricardo Petrella em entrevista concedida à Agência Carta Maior, durante o 1° Fórum Alternativo Mundial da Água em Florença).

2- A QUALIDADE DOS SERVIÇOS – aumento da injustiça ambiental e dos conflitos
O discurso da qualidade foi um dos principais argumentos invocados para toda a política de liberalização e privatização dos serviços de abastecimento e tratamento de água, cuja melhoria e ampliação estaria o Estado impossibilitado de fazer por falta de recursos para investimentos.

Entretanto, longe da tão apregoada superioridade da gestão privada, a Suez, a Vivendi, a Thames Water (RWE) e a Wessex Water (Enrom) foram classificadas pela Agência de Proteção Ambiental do Reino Unido entre as cinco maiores empresas poluidoras em 3 anos consecutivos (1999, 2000 e 2001). Em Buenos Aires, onde a Suez é gestora das concessões, 95 % das águas residuais da cidade é vertida no Rio da Prata, provocando danos ambientais cujos reparos são pagos com recursos públicos.

Em várias localidades os conflitos vêm se acentuando em virtude da má qualidade dos serviços e do aumento do preços das tarifas. Segundo Franck Poupeau, do Le Monde, “as multinacionais da água (...) em alguns casos foram obrigadas a retirar-se de países da América do Sul e a pedir indenização junto a instâncias internacionais. Em 1997, em Tucumán (Argentina), a população iniciou um movimento de 'desobediência civil' contra uma filial da Vivendi, recusando-se a pagar as contas de água por conta da deterioração da qualidade da água e do aumento em mais de 100% das tarifas.

A Companhia Geral das Águas tinha obtido o direito de privatizar as concessões dos serviços de água e esgoto da província em 1993. Mas o súbito aumento do preço dos serviços de água e esgoto, de 104%, em média, provocou o protesto dos consumidores da província: Os primeiros a se organizarem foram os pequenos vilarejos do interior da província, na região de produção de cana-de-açúcar, onde já existe uma longa tradição de luta. No início, sete cidadezinhas formaram uma Comissão de Coordenação e criaram a Associação de Defesa dos Consumidores de Tucumán.”

O governo da província começou por apresentar um pedido de sanções contra a empresa após a descoberta de elementos contaminados na água encanada. "Diante do boicote de pagamento, primeiramente a Générale des Eaux ameaçou os consumidores com a suspensão dos serviços e, em seguida, tentou renegociar o contrato para, finalmente, retirar-se, recusando-se a cumprir as obrigações contratuais. Então, passou a atacar os consumidores de Tucumán junto ao ICSID (International Center for Settlement of Investment Disputes), organismo do Banco Mundial que se pronunciou favoravelmente à província. A partir daí, uma mudança de governo retirou dos consumidores a sustentação legal do boicote aos pagamentos” (Poupeau, F. Le Monde).

Também em La Paz, o bairro mais pobre da cidade, El Alto, que teve papel destacado no movimento que, em outubro de 2003, derrubou o governo de Gonzalo de Lozada, nos dá uma clara demonstração das conseqüências de se estabelecer uma regra universal de regulação que desconsidera as práticas de gestão comunais, muitas das quais, ali, originárias da cultura Aymará e Quéchua. Com a privatização retirou-se daquelas populações o controle dos seus recursos com o conseqüente aumento dos preços impedindo-se, assim, o acesso dos mais pobres à água. Desde que a distribuição da água passou a ser administrada pela empresa francesa Lyonaise des Eaux, através do Consórcio Águas del Illimani, seus preços aumentaram 600% (de 2 bolivianos para 12) e o preço pela instalação que era de 730 bolivianos antes da privatização passou a 1.100 bolivianos e a água abundante não está acessível para a população.

Em 2000, em Cochabamba (Bolívia) ocorreu um conflito intenso que ficou conhecido como a Guerra da Água e que ensejou, assim, como em Tucumán, na Argentina, novas formas de gestão democrática com ampla participação protagônica da população, ali conhecido como Cabildo Abierto (Ver Revista no. 2 do Observatório Social da América Latina).

Cabe, nesse caso, destacar um componente original do affair Cochabamba, onde o Consórcio liderado pela empresa estadunidense Bechtel obteve a concessão mediante um expediente jurídico inusitado: uma cláusula de confidencialidade! É surpreendente que uma concessão pública seja feita com um expediente que proíba sua divulgação! Até aqui, conhecia-se o argumento da razão de Estado para se garantir o sigilo de algumas informações e decisões que se considerava estratégicas para o Estado. Entretanto, uma cláusula de confidencialidade para não revelar os termos de uma concessão de exploração de serviços de água, mostra o quanto não se pode transportar para o espaço público as regras da empresa privada, onde o direito do proprietário está protegido e acima do interesse público [12].

Caberia destacar, ainda, no Brasil, o caso do Riachão afluente do rio Pacuí na bacia do São Francisco no município de Montes Claros, norte de Minas Gerais, onde a falta de água vem se agravando com a implantação de pivôs centrais por parte de grandes proprietários irrigantes. Na região, o conflito vem se acentuando pela expansão de várias monoculturas empresariais, seja de eucaliptos, pinnus alba e pinnus elliotis para fazer carvão vegetal ou matéria prima para a indústria de celulose. Nessa mesma região, o movimento camponês lançou no município de Manga, em 1996, um tipo de manifestação que desde então se repete em todo o país - a Romaria das Águas. O movimento ganhou uma radicalidade tal que lançou mão de uma manifestação até ali inusitada – a greve de sede. Lembremos que na greve de fome o manifestante se mantém vivo muitos dias se alimentando de água, o que não acontece na greve de sede. A importância da água não podia se manifestar de modo mais contundente!

As resistências à mercantilização e à privatização da água vêm se tornando cada vez mais freqüentes em todo mundo. Em vários casos o processo foi interrompido: Cochabamba e La Paz (Bolívia), Montreal, Vancouver e Moncton (Canadá), em Nova Orleans, na Costa Rica, na África do Sul, em várias regiões da Índia, da Bélgica, em várias municipalidades da França que voltaram a ter serviços públicos de água administradas diretamente pelo Estado ou por meio de autogestão, como em Cochabamba, Bolívia. Vários conflitos foram registrados ainda nas Filipinas, no Senegal, em Mali, na Alemanha, no Brasil, na Argentina, em Burkina-Fasso, em Gana e na Itália [13].

Cresce por todo o lado por meio das lutas pela reapropriação pública da água a compreensão de quais são os verdadeiros interesses que vêm se movendo em torno do atual debate por novas formas de gestão e controle da água. “As empresas multinacionais de água estão conseguindo cada vez mais o controle das águas do mundo. Os organismos financeiros internacionais seguem fomentando a expansão internacional dessas empresas e os acordos internacionais de livre comércio lhes permitirão exercer ainda maior influência no setor da água. Não obstante, essas empresas sempre têm posto seus interesses de lucro privado acima das necessidades da população e os organismos financeiros internacionais e as instituições que regem o comércio até agora não tem garantido que as privatizações da água não prejudiquem aos povos e ao ambiente” (Amigos da Terra - “Sed de Ganancias”. Consultar o sítio http://www.foei.org/).


Vender água no mercado aberto não atende as necessidades de pessoas sedentas e pobres”, nos diz a canadense Maude Barlow. “Pelo contrário, a água privatizada é entregue àqueles que podem pagar por ela, tais como cidades e indivíduos ricos e indústrias que usam água intensivamente, como as de tecnologia de ponta e agricultura". (Barlow, Maude “Ouro Azul”. Consultar http://www.canadians.org)./

As denúncias em relação à privatização da água referem-se, quase sempre, às conseqüências socioambientais decorrentes da integração das economias locais a um mercado que se quer nacional e mundialmente unificado o que, cada vez mais, vem implicando não somente uma orientação da produção para o comércio exterior, mas também a intensificação da exploração dos recursos naturais. Maude Barlow mostrou como “os países reduzem as taxas locais e as normas de proteção ambiental para permanecer competitivos. (...) Os governos ficam, então, com uma capacidade fiscal reduzida para recuperar as águas poluídas e construir infra-estruturas para proteger a água; ao mesmo tempo, torna-se mais difícil regulamentarem a prevenção de poluições posteriores.”

[12] Sublinhemos, de passagem, que grande parte do problema ambiental se deve exatamente ao segredo comercial que protege o proprietário de não revelar as substâncias e os processos com que opera expondo, antes de tudo, o trabalhador a conviver com substâncias que, depois, são lançadas como resíduos sólidos, líquidos e gasosos no ambiente. A falta de democracia no interior das empresas, nas fábricas e fazendas é, de fato, o maior dos empecilhos para que o ambiente seja cuidado desde a produção e não a partir dos seus efeitos.  Afinal, o efeito estufa, como o próprio nome indica, é efeito e deveríamos estar cuidando de evitar a sua produção e não dos seus efeitos. Mas, para isso seria necessário que democratizássemos a empresa, instituição de poder que, diga-se de passagem, menos sensível tem sido à democracia.

[13] Depois do segundo Fórum Social Mundial de Porto Alegre foi criada a Coalizão Mundial contra a Privatização e a Mercantilização da Água no dia 23 de maio de 2002 em Créteil, pelos representantes de cerca de trinta organizações vindos da Malásia, Índia, Gana, Marrocos, da França, da Itália, da Suíça, da Espanha, do Canadá, dos Estados Unidos, do Brasil, da Bolívia, da Argentina, do Equador e do Chile.

(*) Geógrafo, doutor em Ciências pela UFRJ e Coordenador do Programa de Pós-graduação em Geografia da UFF. Ex-Presidente da Associação dos Geógrafos Brasileiros (1998-2000) é autor de diversos artigos e livros publicados no Brasil e no exterior.

[Nota da Equipe Educom: Parece que o Brasil está fazendo um movimento inverso à luta dos povos latino-americanos... De modo geral, os tecnocratas da ANA (Agência Nacional de Águas) e do CPRM (Companhia de Pesquisas e Recursos Minerais) têm ajudado o mercado da água a acelerar o processo de privatização, à medida que pesquisadores do país descobrem que nosso potencial de água é maior do que imaginávamos. Entregam pesquisas já feitas por brasileiros a estrangeiros, patrocinadas a peso de ouro com recursos do povo brasieliro, negados aos pesquisadores das instuições e das universidades brasileiras.]


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