quarta-feira, 25 de abril de 2012

A Argentina tem razão

23-04-12 - Só se desenvolve quem se defende - Brizola Neto
no seu blog Tijolaço

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O professor Luís Carlos Bresser Pereira, de quem o pior que se pode dizer é que acreditou um dia que o PSDB fosse um partido social-democrata, publica hoje (23/04) na Folha um artigo imperdível. Um texto direto, que contesta a postura do “atrair capital estrangeiro a qualquer preço” que, aliás, marcou o período FHC." (Brizola Neto)


A Argentina tem razão


A Argentina se colocou novamente sob a mira do Norte, do “bom senso” que emana de Washington e Nova York, e decidiu retomar o controle do Estado sobre a YPF, a grande empresa petroleira do país que estava sob o controle de uma empresa espanhola. O governo espanhol está indignado, a empresa protesta, ambos juram que tomarão medidas jurídicas para defender seus interesses.


O “Wall Street Journal” afirma que “a decisão vai prejudicar ainda mais a reputação da Argentina junto aos investidores internacionais”.


Mas, pergunto, o desenvolvimento da Argentina depende dos capitais internacionais, ou são os donos desses capitais que não se conformam quando um país defende seus interesses? E, no caso da indústria petroleira, é razoável que o Estado tenha o controle da principal empresa, ou deve deixar tudo sob o controle de multinacionais?


Em relação à segunda pergunta parece que hoje os países em desenvolvimento têm pouca dúvida. Quase todos trataram de assumir esse controle; na América Latina, todos, exceto a Argentina.


Não faz sentido deixar sob controle de empresa estrangeira um setor estratégico para o desenvolvimento do país como é o petróleo, especialmente quando essa empresa, em vez de reinvestir seus lucros e aumentar a produção, os remetia para a matriz espanhola.

Além disso, já foi o tempo no qual, quando um país decidia nacionalizar a indústria do petróleo, acontecia o que aconteceu no Irã em 1957. O Reino Unido e a França imediatamente derrubaram o governo democrático que então havia no país e puseram no governo um xá que se pôs imediatamente a serviço das potências imperiais.


Mas o que vai acontecer com a Argentina devido à diminuição dos investimentos das empresas multinacionais? Não é isso um “mal maior”?

É isso o que nos dizem todos os dias essas empresas, seus governos, seus economistas e seus jornalistas. Mas um país como a Argentina, que tem "doença holandesa" [1] moderada (como a brasileira) não precisa, por definição, de capitais estrangeiros, ou seja, não precisa nem deve ter deficit em conta corrente; se tiver deficit é sinal que não neutralizou adequadamente a sobreapreciação crônica da moeda nacional que tem como uma das causas a doença holandesa.

A melhor prova do que estou afirmando é a China, que cresce com enormes superavits em conta corrente.


Mas a Argentina é também um bom exemplo.


Desde que, em 2002, depreciou o câmbio e reestruturou a dívida externa, teve superavits em conta corrente. E, graças a esses superavits, ou seja, a esse câmbio competitivo, cresceu muito mais que o Brasil.

Enquanto, entre 2003 e 2011 o PIB brasileiro cresceu 41%, o PIB argentino cresceu 96%.

Os grandes interessados nos investimentos diretos em países em desenvolvimento são as próprias empresas multinacionais. São elas que capturam os mercados internos desses países sem oferecer em contrapartida seus próprios mercados internos.Para nós, investimentos de empresas multinacionais só interessam quando trazem tecnologia, e a repartem conosco.Não precisamos de seus capitais que, em vez de aumentar em os investimentos totais, apreciam a moeda local e aumentam o consumo. Interessariam se estivessem destinados à exportação, mas, como isso é raro, eles geralmente constituem apenas uma senhoriagem permanente sobre o mercado interno nacional.

Nota do blog Educom:
[1] A "doença holandesa" é um termo cunhado por economistas após a experiência da Holanda com a exportação de gás natural nos anos 60. A receita que entrava acabou gerando uma valorização cambial que prejudicou o setor manufatureiro e o tornou menos competitivo no exterior. Para Bresser-Pereira, a mesma realidade já ocorre no Brasil com a exportação agrícola. (Jamil Chade, em http://www.bresserpereira.org.br/papers/interviews/2011/11.06-Brasil_já_vive_doença_holandesa.pdf )

terça-feira, 24 de abril de 2012

TODOS SOMOS ARGENTINOS

22/04/2012 - Mauro Santayana em seu blog


O Brasil e a Argentina, sendo os dois maiores países da América do Sul, têm sido alvos preferenciais do domínio euro-americano em nosso continente. A Argentina, sob Cristina Kirchner, depois de anos desastrados de ditadura militar e do governo caricato e neoliberal de Menem, se confronta com Madri, ao retomar o controle de suas jazidas de petróleo que estava com a Repsol.

Quando um governo entrega, de forma aviltante, os bens nacionais ao estrangeiro, como também ocorreu no Brasil, procede como quem oferece seu corpo no mercado da prostituição.

Carlos Menem
Assim, as medidas de Cristina buscam reparar a abjeção de Menem.

Será um equívoco discutir o conflito de Buenos Aires com Madri dentro dos estreitos limites das relações econômicas.

A economia de qualquer país é um meio para assegurar sua soberania e dignidade - não um fim em si mesma.


Adolfo Suárez

As elites espanholas, depois da morte de Franco, foram seduzidas pela idéia de que poderiam recuperar sua presença na América Latina, perdida na guerra contra os Estados Unidos e durante a ditadura de quase 40 anos. Já durante o governo de Adolfo Suárez, imaginaram que poderiam, pouco a pouco, readquirir a confiança dos latino-americanos, ofendidos pela intervenção descarada dos Estados Unidos no continente. De certa forma, procediam com inteligência estratégica: a nossa América necessitava de aliados, mesmo frágeis, como era a Península Ibérica, na reconstrução de sua soberania, mutilada pelos governos militares alinhados a Washington.

Mas faltou aos governantes e homens de negócios espanhóis a habilidade diplomática, que se dissimula na modéstia, e lhes sobrou arrogância.

Essa arrogância cresceu quando a Espanha foi admitida na União Européia, e passou a receber fartos recursos dos países ricos do Norte, a fim de acertar o passo continental. A sua estratégia foi a de, com parte dos recursos disponíveis, “comprar” empresas e constituir outras em nossos países. Isso os levou a imaginar que poderiam ditar a nossa política externa, como serviçais que foram, e continuam a ser, dos Estados Unidos. A idéia era a de que, em espanhol, os ditados de Washington seriam mais bem ouvidos.

José Maria Aznar
O paroxismo dessa paranóia ocorreu quando José Maria Aznar telefonou ao presidente Duhalde, da Argentina, determinando-lhe que aceitasse as imposições do FMI, sob a ameaça de represálias. E a insolência maior ocorreu, e sob o governo socialista de Zapatero, quando esse heróico matador de paquidermes indefesos, Juan Carlos, mandou que o presidente Chávez (eleito livremente pelo seu povo, sob a fiscalização de observadores internacionais, entre eles o ex-presidente Carter) se calasse, no encontro iberoamericano de Santiago.

Um rei matador de elefantes indefesos e sogro de um acusado de peculato - o bem apessoado serviçal da Telefónica de Espanha, Iñaki Urdangarin, pago com lucros obtidos pela empresa na América Latina, principalmente no Brasil.

Os espanhóis parecem não se dar conta de que as suas antigas colônias se tornaram independentes, umas mais cedo – como é o caso da Argentina – e outras mais tarde, embora muitas passassem ao domínio ianque.
  
Imaginaram que podiam fazer o que faziam antes disso no continente – e incluíram o Brasil na geografia de sua presunção.


O Brasil pode e deve, ser solidário com a Argentina, no caso da recuperação, para seu povo, das jazidas petrolíferas da YPF. E manter a nossa posiçãohistórica de reconhecimento da soberania de Buenos Aires sobre o arquipélago das Malvinas.

Que querem os espanhóis em sua gritaria por solidariedade contra a Argentina, pelo mundo afora? Eles saquearam tudo o que puderam, durante o período colonial, em ouro e prata. Usaram esses recursos imensos – assim como os portugueses fizeram com o nosso ouro – a fim de construir castelos e armar exércitos que só se revelaram eficazes na repressão contra o seu próprio povo – como ocorreu na guerra civil.


Durante o seu período de arrogância subsidiada, trataram com desdém os mal chamados iberoamericanos, humilhando e ofendendo brasileiros e latino-americanos, aviltando-os ao máximo.

Um só ser humano, em sua dignidade, vale mais do que todos os poços de petróleo do mundo.



Antes que Cristina Kirchner determinasse a recompra das ações da YPF em poder da Repsol, patrimônio muito maior dos argentinos e de todos os latino americanos, sua dignidade, havia sido aviltada, de forma abjeta e continuada, pelas autoridades espanholas no aeroporto de Barajas e em seu território.


Que se queixem agora aos patrões, como seu chanceler, Garcia-Margallo fez, ao chorar nos ombros da senhora Clinton, e busquem a solidariedade de uma Europa em frangalhos. Ou que rearmem a sua Invencível Armada em Cádiz, e desembarquem no Rio da Prata.

Isso, se antes, os milhões de jovens desempregados - a melhor parcela de um povo maravilhoso, como é o da Espanha - não resolvam destituir suas elites políticas, corruptas, incompetentes e opressoras, e seu rei tão ocioso quanto descartável.

E, ao final, vale lembrar a viagem histórica que Eva Perón fez à Europa, no auge de sua popularidade. Em Madri, diante da miséria em que se encontrava o povo, ofereceu a Franco, em nome do povo argentino, alguns navios cheios de trigo. O general respondeu que não era necessário, que os celeiros espanhóis estavam cheios de farinha.

E Evita replicou, de pronto:
¿entonces, por qué no hacen pan?

segunda-feira, 23 de abril de 2012

O problema da seca no Nordeste não é falta de água

23/04/2012 - Leonardo Sakamoto em seu blog

Foto: Pedro Penha
Mais de 250 municípios decretaram estado de emergência por conta da seca prolongada no Nordeste.

O nível dos açudes está baixo, sendo que alguns já secaram. Plantações se perderam. Quem tem cisterna ou reservatório na propriedade está conseguindo garantir qualidade de vida para a família e as criações.

Dilma Rousseff tem reunião, nesta segunda (23/04), com governadores do Nordeste e deve tratar da seca e de medidas que serão tomadas pelo governo federal para ajudar a mitigar seus efeitos.
Tempos atrás, durante outra estiagem, fiz um ping-pong curto com João Suassuna, engenheiro agrônomo e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco. Ele é um dos maiores especialistas na questão hídrica nordestina. Entrei em contato com ele de novo e refiz as perguntas. Pouco mudou.

Por mais que haja evaporação e açudes sequem, a região possui uma grande quantidade de água, suficiente para abastecer sua gente.

Segundo Suassuna, o problema não é de falta de recursos naturais, mas de sua distribuição.


Falta água no Nordeste?
O Nordeste brasileiro é detentor do maior volume de água represado em regiões semi-áridas do mundo. São 37 bilhões de metro cúbicos, estocados em cerca de 70 mil represas. A água existe, todavia o que falta aos nordestinos é uma política coerente de distribuição desses volumes, para ao atendimento de suas necessidades básicas.


O que é o projeto de transposição do São Francisco?
O projeto do governo, remanescente de uma idéia que surgiu na época do Império, visa ao abastecimento de cerca de 12 milhões de pessoas no Nordeste Setentrional, com as águas do rio São Francisco. Ele foi idealizado para retirar as águas do rio através de dois eixos (Norte e Leste), abastecer as principais represas nordestinas e, a partir delas, as populações.


Hoje, as obras estão praticamente paralisadas, com alguns trechos dos canais se estragando com o tempo, apresentando rachaduras.


Então ele é a saída para essa distribuição?
O projeto é desnecessário tendo em vista os volumes d´água existentes nas principais represas nordestinas. Da forma como o projeto foi concebido e apresentado à sociedade, com o dimensionamento dos faraônicos canais, fica clara a intenção das autoridades: será para o benefício do grande capital, principalmente os irrigantes, carcinicultores [criadores de camarão], industriais e empreiteiras.

Então, há outras alternativas para matar a sede e desenvolver a região?
A solução do abastecimento urbano foi anunciada pelo próprio governo federal, através da Agência Nacional de Águas (ANA), ao editar, em dezembro de 2006, o Atlas Nordeste de Abastecimento Urbano de água. Nesse trabalho é possível, com menos da metade dos recursos previstos na transposição, o beneficio de um número bem maior de pessoas. Ou seja, os projetos apontados pelo Atlas, com custo de cerca de R$ 3,6 bilhões, têm a real possibilidade de beneficiar 34 milhões de pessoas, em municípios com mais de 5.000 habitantes.


O meio rural, principalmente para o abastecimento das populações difusas – aquelas mais carentes em termos de acesso à água, poderá se valer das tecnologias que estão sendo difundidas pela ASA (Articulação do Semiárido), através do uso de cisternas rurais, barragens subterrâneas, barreiros, trincheiras, programa duas águas e uma terra, mandalas etc.


Enquanto isso, o orçamento do projeto de Transposição não pára de crescer. No governo Sarney, ele foi dimensionado com um único eixo e tinha um orçamento estimado em cerca de R$ 2,5 bilhões. Na gestão Fernando Henrique, ganhou mais um eixo e o orçamento pulou para R$ 4,5 bilhões. No governo Lula, saltou para R$ 6,6 bilhões. E, agora, no governo Dilma, chegou na casa dos R$ 8,3 bilhões. Como se trata de um projeto de médio a longo prazo, essa conta chegará facilmente à cifra dos R$ 20 bilhões nos próximos 25 a 30 anos.

Notas do blog do Sakamoto:
- O governo Dilma mudou a política de apoio à construção de cisternas que vinha sendo tocada pela ASA através do projeto “Um Milhão de Cisternas para o Semiárido”. Para acelerar a produção de cisternas (gigantes caixas d’água que guardam a água da chuva), as placas de cimento foram trocadas por pré-moldados de polietileno – que podem deformar com o calor, custam mais que o dobro que os feitos com a matéria-prima anterior, não utilizam mão-de-obra local na sua confecção (não gerando renda) e tem manutenção mais complexa do que se fossem feitos de alvenaria. As organizações sociais criticaram a tomada de decisão centralizada, sem questionar quem vem executando e se beneficiando da política pública na base.

- No ano passado, a Polícia Federal e a Controladoria Geral da União constataram um desvio de R$ 312 milhões em verbas do Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs), que poderiam estar sendo utilizadas para diminuir o impacto da estiagem deste ano.

Como disse, o problema (que não é novo) não é de falta e sim de distribuição. De água, de decisões, de recursos. Enfim, de cidadania.

Nota do blog Educom:
"- De fato, não temos escassez de água, tanto no solo quanto, agora, também no subsolo. Entretanto, o modelo atual do uso racional desse bem ... começa a ser posto em cheque. Ainda nos resta um longo caminho até que esse "desenho" atual se veja completamente superado. Existe sim água para abastecer a população mundial sem a necessidade de racionamento. O problema da crise da água no mundo é de gerenciamento e de distribuição. As pessoas acham que a água vai acabar porque consideram para o abastecimento apenas a água superficial, porque cultivamos uma cultura do desperdício e finalmente porque não cessa a contaminação dos cursos d`água." (ver Milton Matta - http://brasileducom.blogspot.com/2011/12/um-mundo-de-aguas-minerios-e-nomes-que_8901.html )

domingo, 22 de abril de 2012

Declama Raul!

21/04/2012 - Marcelo Rubens Paiva - extraído do blog Conteudo Livre

[homenagem do blog EDUCOM a Raul Seixas, 23 anos após sua morte em 21/08/1989]


Indagado se fazia música de protesto, de bate-pronto respondia: “Faço raulseixismo

Algum músico que já era lenda antes de morrer tem recorrentemente o nome gritado em shows de outros músicos? Algum músico tem uma composição pedida rotineiramente quando, numa aglomeração, o silêncio se faz, apesar de ter morrido há 23 anos?

Algum político ou artista brasileiro tem um dia dedicado a ele, em que fãs se fantasiam como ele, circulam pelo centro de São Paulo e cantam numa manifestação essencialmente popular e espontânea? 

Não só em shows, mas em casamentos, baladas, batizados, passeatas, no intervalo entre músicas, na indecisão de como animar uma festa, o grito é sempre entoado, como um ato de rebeldia e desobediência:


Toca Raul!


A obra de Raul Seixas sobrevive, continua contemporânea, e pode ser revista no documentário O Início, O Fim e O Meio, de Walter Carvalho.

O legado de Raulzito não é apenas a mistura do pensamento maquiavélico (“o fim justifica os meios”). É bem mais profundo e perspicaz. Apesar de ele ter anunciado:


Eu não sou besta pra tirar onda de herói. Sou vacinado, eu sou cowboy. Cowboy fora da lei. Durango Kid só existe no gibi. E quem quiser que fique aqui. Entrar pra história é com vocês.”

Mas entrou, ao fundir o rock com o baião, sem as sutilezas dos seus conterrâneos tropicalistas. Raul foi a Tropicália que tocou no rádio. Propôs reflexão e sublevação no quartinho da empregada, na tela da TV, no Chacrinha e nos shows em ginásios.

Fundiu o alcance vocal de Elvis com o de Luiz Gonzaga e provou a semelhança entre o produto da corte e a improvisação da colônia, entre Deus e sua cria.

A primeira grande aparição foi no Festival Internacional da Canção (1972), provocando a bossa nova e o utopismo messiânico da época:

Let me sing my rock’n’roll. Não vim aqui tratar dos seus problemas, o seu Messias ainda não chegou. Eu vim rever a moça de Ipanema e dizer que o sonho terminou.


Depois, Mosca na Sopa (1973), quandoa ditadura brasileira unificada combatia em todos os fronts. Quem não entendia a ameaça debochada do roqueiro maluco dançava como um alucinado nas festinhas infantis, que era o meu caso:

Eu sou a mosca que perturba o seu sono, eu sou a mosca no seu quarto a zumbizar.”

Opositores no pau de arara. Jornais e revistas enquadradas pela censura. Artistas silenciados pelo exílio e ameaças.

E o roqueiro entortava a cabeça da repressão política:

Não adianta vir me dedetizar, pois nem o DDT pode assim me exterminar. Porque você mata uma, e vem outra em meu lugar.”

Desta vez, a mistura era o samba de roda baiano, o canto para os orixás e afoxé, com rock pesado.

No mesmo disco, a música Ouro dos Tolos, o maior deboche do projeto Brasil Grande e do Milagre Brasileiro, um alerta existencialista à classe média emergente brasileira.

Eu devia estar contente, porque eu tenho um emprego, sou um dito cidadão respeitável e ganho quatro mil cruzeiros por mês.”

O regime conseguia o selo de excelência de 100% de autoritarismo – resistência armada dominada, opositores silenciados. O empresariado e a população de bolsos cheios pareciam felizes. Médici tinha altos índices de aprovação.

Não restava nada no campo da contestação: quem sobreviveu estava fora do País ou de si, dopado, maluco beleza.

Quando o Regime entulhou as TVs com propagandas de Brasil Grande, difundindo os feitos do crescimento recorde, em que o dinheiro emprestado do exterior estava barato, e o País criou infraestrutura suficiente para a importação de parques industriais, ele compôs:

Eu devia estar feliz, porque consegui comprar um Corcel 73... Eu devia estar sorrindo e orgulhoso por ter finalmente vencido na vida. Mas eu acho isso uma grande piada e um tanto quanto perigosa.” 

Indagado se ele fazia música de protesto, respondia de bate-pronto: “Faço raulseixismo”.  

O verso que Caetano canta de boca cheia no documentário, palavras que propositalmente não cabem na melodia, um pré-rap, contém o mais profundodos sentimentos literários, a falta de sentido da vida:



Eu devia estar feliz pelo senhor ter me concedido o domingo pra ir com a família ao Jardim Zoológico dar pipoca aos macacos. Ah!, mas que sujeito chato sou eu, que não acha nada engraçado, macaco, praia, carro, jornal, tobogã. Eu acho tudo isso um saco...”

A maior ironia é que a música foi composta em cima de acordes de Detalhes, do neoconformista Roberto Carlos, artista que deixava a irreverência do rock para se acomodar nas plumas de uma causa mais romântica.


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Em 1974, os ideais libertários de Maio de 68 desembocaram num fracassado projeto armado de terrorismo isolado. Baader Meinhof, Brigadas Vermelhas, ETA, IRA, OLP confundiam e assustavam a juventude mais do que agregavam. A utopia foi questionada.

Raul lançou com Paulo Coelho a Sociedade Alternativa, uma terceira via, que defendia o direito de ter riso e prazer. No manifesto, pregavam:

O espaço é livre. Todos têm direito de ocupar seu espaço. O tempo é livre. Todos têm que viver em seu tempo e fazer jus às promessas, esperanças e armadilhas. A semente é livre. Todos têm o direito de semear suas ideias sem qualquer coerção da inteligência ou burrice. Não existe mais a classe dos artistas.”


Todos nós somos capazes de plantar e colher. Todos nós vamos mostrar ao mundo e ao Mundo a nossa capacidade de criação. Todos nós somos escritores, donas de casa, patrões e empregados, clandestinos e caretas, sábios e loucos. E o grande milagre não será mais ser capaz de andar nas nuvens ou caminhar sobre as águas. O grande milagre será o fato de que todo dia, de manhã até a noite, sermos capazes de caminhar sobre a Terra.”


O governo Geisel não entendeu muito bem o que propunha essa sociedade com pinta de subversiva, prendeu os dois e os mandou para o exílio.


Ele preferia ser uma metamorfose ambulante a ter opinião sobre quase tudo. Mas não conseguia deixar de ver, pensar, propor e rediscutir os rumos da arte e da política do seu país.


Com metafísica, espiritismo, antropofagia, de mãos dadas com o povo, ele era o nosso sacrifício, a placa de contramão, a vela que acende, a luz que se apaga, a beira do abismo, o tudo e o nada, raso, largo, profundo, os olhos do cego, e a cegueira da visão.

sábado, 21 de abril de 2012

GLOBO RURAL - O eixo Rede Globo-Monsanto

 17/04/2012 - original publicado na edição 690 do Observatório da Imprensa
Fábio de Oliveira Ribeiro*


No programa Globo Rural de 15/04/2012 foi veiculada uma longa reportagem sobre a Monsanto feita nos EUA.

A pior companhia de 2011
Nenhum ambientalista ou ativista norte-americano que critica a atuação da Monsanto foi entrevistado pelos repórteres do Globo Rural.


Portanto, a matéria, que parece ter cunho jornalístico, funciona como uma excelente peça de propaganda da Monsanto e de seu milho transgênico.


A reportagem-propaganda foi veiculada justamente durante a realização da Cúpula das Américas, reunião de chefes de Estado e diplomatas em que os EUA fazem uma ofensiva diplomática para recuperar sua credibilidade e importância política e econômica na América Latina.

Os EUA deixaram de ser o maior e mais importante parceiro comercial do Brasil. Mesmo assim, a Rede Globo preferiu veicular a peça de propaganda que produziu sobre a Monsanto.

Não poderia ter feito uma matéria jornalística sobre a integração agroindustrial dos BRICS?

Vez por outra, o Globo Rural faz matérias sobre a criação de peixes, as novas tecnologias aplicadas à pesca e os problemas deste importante ramo de atividade produtiva. Neste momento, não seria mais barato, fácil e relevante os jornalistas daquele programa fazerem uma matéria sobre a influência negativa na pesca litorânea brasileira do vazamento provocado pela Chevron norte-americana? Uma das características da propaganda é enfatizar os pontos positivos de uma mercadoria e omitir seus pontos negativos.

O comportamento jornalístico da Rede Globo indica claramente que os Estados também são mercadorias.

Algum tipo de regulação
A pauta do Globo Rural de 15/04/2012 evidencia a opção da emissora pelos EUA. A tentativa do clã Marinho de reforçar a política externa norte-americana neste momento é evidente, pois não só fez propaganda da Monsanto como evitou tocar no desastre ambiental da Chevron no Rio de Janeiro.

O Itamaraty, instituição pública encarregada de formular a política externa brasileira, aposta nos BRICs.
 Mas a Rede Globo, empresa privada que visa ao lucro, parece querer ter a sua própria política externa e enfiá-la goela abaixo dos brasileiros. O que a Rede Globo [uma concessão pública, sempre bom lembrar] fez em 15/04/2012 com seu programa Globo Rural não foi exercitar a “liberdade de imprensa”, mas abusar de sua condição de empresa quase monopolista.

O Brasil tem feito uma política externa coerente e eficiente, mas não tem uma rede de televisão tão grande quanto a Globo para reforçar internamente suas decisões diplomáticas. O clã Marinho, entretanto, usou a sua empresa para fortalecer a política externa norte-americana dentro do Brasil.

É por causa deste tipo de abuso que a mídia tem que sofrer algum tipo de regulação. A política externa brasileira não pode mais ficar à mercê de uma empresa privada que faz de tudo para impor sua própria política externa ao país.

*Fábio de Oliveira Ribeiro é advogado, Osasco, SP