sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Para que serve a Grécia

23/02/2012 - Por Isaac Rosa - Tradução: Antonio Martins em seu blog Outras Palavras


Um laboratório de testes: até onde se liquida, empobrece e humilha um país sem que estourem as costuras?


Já podem dormir tranquilos os gregos, porque a Europa não abandonará o país. Preferirá mantê-lo pendurado no abismo, agarrado pelos cabelos e sempre a poucos minutos da quebra total. Mas não permitirá que despenque, porque a Grécia cumpre hoje um papel essencial na Europa. A imagem de um país quebrado, asfixiado, submetido a chantagem, despojado de sua soberania, com a população sofrendo apertos sucessivos e as ruas incendiadas, tem diversas serventias.

Os governantes podem apoiar-se no caso grego para nos convencer de que precisamos nos comportar, fazer as “lições de casa” e pagar a dívida – do contrário, vejam os gregos onde acabaram, por terem cabeça fraca. “Observem o que se passa na Grécia agora mesmo”, dizia Sarkozy aos franceses segunda-feira, e completava: “Quem gostaria que a França estivesse na situação da Grécia?

Os apóstolos do choque também tiram proveito da situação grega: é um laboratório em condições reais, com os cidadãos como cobaias, para testar até onde se pode liquidar, empobrecer e humilhar um país sem que estourem as costuras. Sim, queimaram edifícios, atiraram pedras, mas a vida segue. A Grécia está sob ruído e fumaça, mas ainda não passou por um levante social. Por isso, seguiremos apertando, para ver até onde aguenta.

Quanto aos cidadãos europeus, a lição os massacra por seu próprio peso: “Olhe para que serve protestar: apenas para quebrar tudo, sem conseguir nada”. “Por que faremos uma greve? Os gregos estão na enésima, e nada”. E, inclusive: “Bem, a reforma trabalhista é dura, mas não estamos tão mal. Pior estão os gregos…

Não é certo que o plano tenha êxito. Os cortes de direitos e serviços públicos continuam, mas na última votação houve 43 deputados desertores. O premiê-tecnocrata Papademos sua para levar adiante seu plano. E na polícia, começam a surgir agentes que não estão dispostos a continuar reprimindo seus vizinhos, como o sindicato policial que pediu a prisão da Troika [designação cada vez mais frequente para União Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional].

Sonia Mitrialis - ativista, resistente ao pagamento da dívida


De qualquer forma, a lição para nós deveria ser outra: “Sozinhos, os gregos não podem. Precisam de nossa ajuda



* Isaac Rosa (Sevilha, 1974) publicou os romances O País do Medo (2010, Planeta) e, ainda sem tradução para o português, La malamemoria (1999), posteriormente reelaborada em Otra maldita novela sobre la guerra civil! (2007), El vano ayer (2004, adaptada para o cinema como La vida en rojo), e La mano invisible (2011)

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Não use o verbo ajudar para se referir ao que banqueiros fazem à Grecia

Pequena contribuição para melhorar o mundo 

Por: Paulo Moreira Leite - Política, economia - 22/02/2012 - blog Maria Frô

Creio que o mundo vai ficar um pouquinho melhor se nossos observadores, economistas e jornalistas deixarem de usar a palavra “ajuda” para descrever o plano de austeridade que a União Européia impôs à Grécia.


É vergonhoso.
Meu mini Houaiss explica que ajuda quer dizer “amparo, socorro, prestar serviço a alguém; obséquio; favor.”

Já o verbo ajudar, registra o mestre, significa “prestar assistência, tornar mais fácil, facilitar.”

Nada disso está ocorrendo com a Grécia. O país irá receber um empréstimo de 130 bilhões de euros e não irá colocar a mão num único centavo dessa fortuna, que se destina ao pagamento de compromissos atrasados.

A parte da Grécia é ir pagar este dinheiro com novos sacrifícios da população. O país está há três anos em recessão e agora irá enfrentar cortes no salário mínimo e nas aposentadorias, redução de investimentos públicos e outras medidas de um figurino horroroso e irracional. Você pode até achar que a Grécia tem o “dever” de “honrar” seus compromissos. Só não pode falar que está recebendo ajuda.

Esta palavra, agora, só serve para embelezar o trabalho que os banqueiros, o FMI e as autoridades européias estão fazendo. O pacote irá ajudar os credores, que não tinham como receber por empréstimos feitos de forma leviana, para devedores que não poderiam pagá-los, mas que foram realizados mesmo assim porque a meta do lucro fácil falou mais alto.

Para os bancos sim o pacote de 130 bilhões de euros representa um “amparo”, um “socorro”, um “obséquio.” O problema deles não é salvar o euro. É salvar a pele.

Se paramos de usar palavras erradas, será mais fácil reconhecer que estamos assistindo a destruição de um país e não a um esforço para salvá-lo.

O plano de austeridade é tão destrutivo que ameaça a soberania e a democracia. A União Européia irá colocar uma equipe para monitorar o comportamento do governo grego daqui para a frente. Vai controlar contas, autorizar gastos, diminuir despesas. Como acontecia nos tempos coloniais. Pior.

Pretende-se transformar o compromisso com o pagamento das dívidas em clausula constitucional. Pior ainda.

Manolis Glezos, o resistente no Parlamento grego que denuncia os bancos alemãs

O Ministro da Fazenda alemão fala que seria conveniente adiar as próximas eleições, para não se correr o risco de vitoria de um candidato adversário da austeridade.

Vamos parar de mentir para nós mesmos. Pelo menos isso se pode fazer.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

O grileiro venceu, Lúcio Flávio Pinto terá de indenizar herdeiros

Rede Democratica - Sáb, 18 de Fevereiro de 2012
CONTRA A INJUSTIÇA - Jornal Pessoal

No dia 7 o presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Ari Pargendler, decidiu negar seguimento ao recurso especial que interpus contra decisão da justiça do Pará. Nos dois graus de jurisdição (no juízo singular e no tribunal), o judiciário paraense me condenou a indenizar o empresário Cecílio do Rego Almeida por dano moral.

O dono da Construtora C. R. Almeida, uma das maiores empreiteiras do país, se disse ofendido porque o chamei de “pirata fundiário”, embora ele tenha se apossado de uma área de quase cinco milhões de hectares no vale do rio Xingu, no Pará. A justiça federal de 1ª instância anulou os registros imobiliários dessas terras, por pertencerem ao patrimônio público.

O presidente do STJ não recebeu meu recurso “em razão da deficiente formação do instrumento; falta cópia do inteiro teor do acórdão recorrido, do inteiro teor do acórdão proferido nos embargos de declaração e do comprovante de pagamento das custas do recurso especial e do porte de remessa e retorno dos autos”. Ou seja: o agravo de instrumento não foi recebido na instância superior por falhas formais na juntada dos documentos que teriam que acompanhar o recurso especial.

O despacho foi publicado no Diário Oficial eletrônico do STJ no dia 13. A partir daí eu teria prazo de 15 dias para entrar com um recurso contra o ato do ministro. Ou então através de uma ação rescisória. O artigo 458 do Código de Processo Civil prevê nos seguintes casos:

“Se verificar que foi dada por prevaricação, concussão ou corrupção do juiz; proferida por juiz impedido ou absolutamente incompetente; resultar de dolo da parte vencedora em detrimento da parte vencida, ou de colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei; ofender a coisa julgada; violar literal disposição de lei; se fundar em prova, cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal, ou seja, provada na própria ação rescisória; depois da sentença, o autor obtiver documento novo, cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável; houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se baseou a sentença; fundada em erro de fato, resultante de atos ou de documentos da causa”.

Como o ministro do STJ negou seguimento ao agravo, a corte não pode apreciar o mérito do recurso especial. A única sentença de mérito foi a anterior, do Tribunal de Justiça do Estado, que confirmou minha condenação, imposta pelo juiz substituto (não o titular, portanto, que exerceu a jurisdição por um único dia) de uma das varas cíveis do fórum de Belém. Com a ação, o processo seria reapreciado.

Advogados que consultei me recomendaram esse caminho, muito trilhado em tais circunstâncias. Mas eu teria que me submeter outra vez a um tribunal no qual não tenho mais fé alguma. É certo que nele labutam magistrados e funcionários honestos, sérios e competentes. Também é fato que alguns dos magistrados que agiram de má fé contra mim já foram aposentados, com direito a um fare niente bem remunerado – e ao qual não fizeram jus.

Mas também é verdade que, na linha de frente e agindo poderosamente nos bastidores, um grupo de personagens (para não reduzi-lo a uma única figura fundamental) continua disposto a manter a condenação, alcançada a tanto custo, depois de uma resistência extensa e intensa da minha parte.

Esse grupo (e, sobretudo, esse líder) tem conseguido se impor aos demais de várias maneiras, ora pela concessão de prêmios e privilégios ora pela pressão e coação. Seu objetivo é me destruir. Tive a audácia de contrariar seus propósitos e denunciar algumas de suas manobras, como continuo a fazer, inclusive na edição do meu Jornal Pessoal que irá amanhã às ruas.

A matéria de capa denuncia a promoção ao desembargo de uma juíza, Vera Souza, que, com o concurso de uma já desembargadora, Marneide Merabet, ia possibilitar que uma quadrilha de fraudadores roubasse 2,3 bilhões de reais da agência central de Belém do Banco do Brasil.

A mesma quadrilha tentou, sem sucesso, aplicar o golpe em Maceió, Florianópolis e Brasília. Foi rechaçada pelas justiças locais. Em Belém encontrou abrigo certo. Afinal, também não foi promovida ao topo da carreira uma juíza, Maria Edwiges de Miranda Lobato, que mandou soltar o maior traficante de drogas do Norte e Nordeste do país. O ato foi revisto, mas a polícia não conseguiu mais colocar as mãos no bandido e no seu guarda-costas. Punida com mera nota de censura reservada, a magistrada logo em seguida subiu ao tribunal.

Foi esse o tribunal que teve todas as oportunidades de reformar a iníqua, imoral e ilegal sentença dada contra mim por um juiz que só atuou na vara por um dia, só mandou buscar um processo (o meu), processo esse que não estava pronto para ser sentenciado (nem todo numerado se achava), levou os autos para sua casa no fim de semana e só o devolveu na terça-feira, sem se importar com o fato de que a titular da vara (que ainda apreciava a questão) havia retornado na véspera, deixando-o sem autoridade jurisdicional sobre o feito. Para camuflar a fraude, datou sua sentença, de quatro laudas, em um processo com mais de 400 folhas, com data retroativa à sexta-feira, quatro dias antes. Mas não pôde modificar o registro do computador, que comprovou a manobra.

De posse de todos os documentos atestando os fatos, pedi à Corregedoria de Justiça a instauração de inquérito contra o juiz Amílcar Bezerra. A relatora, desembargadora Carmencim Cavalcante, acolheu meu pedido. Mas seus pares do Conselho da Magistratura o rejeitaram. Eis um caso a fortalecer as razões da Corregedora Nacional de Justiça, Eliana Calmon, contra o corporativismo, que protege os bandidos de toga.

Apelei para o tribunal, com farta documentação negando a existência do ilícito, já que a grilagem de terras não só foi provada como o próprio judiciário paraense demitira, por justa causa, os serventuários de justiça que dela foram cúmplices no cartório de Altamira. O escândalo se tornara internacional e, por serem federais partes das terras usurpadas, o interesse da União deslocou o feito para a justiça federal, que acolheu as razões do Ministério Público Federal e anulou os registros fraudulentos no cartório de Altamira, decisão ainda pendente de recurso.

O grileiro morreu em maio de 2008. Nesse momento, vários dos meus recursos, que esgotavam os instrumentos de defesa do Código de Processo Civil, estavam sendo sucessivamente rejeitados. Mas ninguém se habilitou a substituir C. R. Almeida. Nem herdeiros nem sucessores. Sua advogada continuou a funcionar no processo, embora a morte do cliente cesse a vigência do contrato com o patrono. E assim se passaram dois anos sem qualquer manifestação de interesse pela causa por parte daqueles que podiam assumir o pólo ativo da ação, mas a desertaram.

A deserção foi reconhecida pelo juiz titular da 10ª vara criminal de Belém, onde o mesmo empreiteiro propusera uma ação penal contra mim, com base na extinta Lei de Imprensa. Passado o prazo regulamentar de 60 dias (e muitos outros 60 dias, até se completarem mais de dois anos), o juiz declarou minha inimputabilidade e extinguiu o processo, mandando-o para o seu destino: o arquivo (e, no futuro, a lata de lixo da história).

Na instância superior, os desembargadores se recusavam a reconhecer o direito, a verdade e a lei. Quando a apelação estava sendo apreciada e a votação estava empatada em um voto, a desembargadora Luzia Nadja do Nascimento a desempatou contra mim, selando a sorte desse recurso.

A magistrada não se considerou constrangida pelo fato de que seu marido, o procurador de justiça Santino Nascimento, ex-chefe do Ministério Público do Estado, quando secretário de segurança pública, mandou tropa da Polícia Militar dar cobertura a uma manobra de afirmação de posse do grileiro sobre a área cobiçada. A cobertura indevida foi desfeita depois que a Polícia Federal interveio, obrigando a PM a sair do local.

Pior foi a desembargadora Maria Rita Xavier. Seu comportamento nos autos se revelou tão tendencioso que argüi sua suspeição. Ao invés de decidir de imediato sobre a exceção, ela deu sumiço à minha peça, que passei a procurar em vão. Não a despachou, não suspendeu a instrução processual e não decidiu se era ou não suspeita. Ou melhor: decidiu pelos fatos, pois continuou impávida à frente do processo.

Meus recursos continuaram a ser indeferidos ou ignorados, quando alertava a relatora e os desembargadores aos quais meus recursos foram submetidos sobre a ausência do pólo ativo da ação e de poderes para a atuação da ex-procuradora do morto, que, sem esses poderes, contra-arrazoava os recursos.

Finalmente foi dado prazo para a habilitação, não cumprido. E dado novo prazo, que, afinal, contra a letra da lei, permitiu aos herdeiros de C. R. Almeida dar andamento ao processo (e manter o desejo de ficar com as terras) para obter minha condenação. Nesse martírio não lutei contra uma parte, mas contra duas, incluindo a que devia ser arbitral.

Voltar a ela, de novo? Mas com que crença? Quando, quase 20 anos atrás, me apresentei voluntariamente em cartório, sem esperar pela citação do oficial de justiça (gesto que causou perplexidade no fórum, mas que repeti outras vezes) para me defender da primeira das 33 ações sucessivamente propostas contra mim (19 delas pelos donos do maior conglomerado de comunicação da Amazônia, afiliado à Rede Globo de Televisão), eu acreditava na justiça do meu Estado.

Continuo a crer em muitos dos seus integrantes. Mas não na estrutura de poder que nela funciona, conivente com a espoliação do patrimônio público por particulares como o voraz pirata fundiário Cecílio do Rego Almeida.

Por isso, decidi não mais recorrer. Se fui submetido a um processo político, que visa me destruir, como personagem incômodo para esses bandidos de toga e as quadrilhas de assalto ao bem coletivo do Pará, vou reagir a partir de agora politicamente, nos corretos limites da verdade e da prova dos fatos, que sempre nortearam meu jornalismo em quase meio século de existência.

Declaro nesta nota suspeito o Tribunal de Justiça do Estado do Pará, que não tem condições de me proporcionar o devido processo legal, com o contraditório e a ampla defesa, que a Constituição do Brasil me confere, e decide a revelia e contra os fatos.

Se o tribunal quer minha cabeça, ofereço-a não para que a jogue fora, mas para que, a partir dela, as pessoas de bem reajam a esse cancro que há muitos anos vem minando a confiabilidade, a eficácia e a honorabilidade das instituições públicas no Pará e na Amazônia.

O efeito dessa decisão é que, finalmente, para regozijo dos meus perseguidores, deixarei de ser réu primário. Num país em que fichas de pessoas se tornam imundas pelo assalto aos cofres do erário, mas são limpas a muito poder e dinheiro, serei ficha suja por defender o que temos de mais valioso em nosso país e em nossa região.

Como já há outra ação cível – também de indenização – em fase de execução, a perda da primariedade me causará imensos transtornos. Mas, como no poema hindu, se alguém tem que queimar para que se rompam as chamas, que eu me queime.

Não pretendo o papel de herói (pobre do país que precisa dele, disse Bertolt Brecht pela boca de Galileu Galilei). Sou apenas um jornalista. Por isso, preciso, mais do que nunca, do apoio das pessoas de bem. Primeiro para divulgar essas iniqüidades, que cerceiam o livre direito de informar e ser informado, facilitando o trabalho dos que manipulam a opinião pública conforme seus interesses escusos.

Em segundo lugar, para arcar com o custo da indenização. Infelizmente, no Pará, chamar o grileiro de grileiro é crime, passível de punição. Se o guardião da lei é conivente, temos que apelar para o samba no qual Chico Buarque grita: chame o ladrão, chame o ladrão.

Quem quiser me ajudar pode depositar qualquer quantia na conta 22.108-2 da agência 3024-4 do Banco do Brasil, em nome do meu querido irmão Pedro Carlos de Faria Pinto, que é administrador de empresas e fiscal tributário, e assim administrará esse fundo. Essa conta estava em vias de fechamento, mas agora servirá para que se arque com esse constrangedor ônus de indenizar quem nos pilha e nos empobrece, graças à justiça.

Farei outros comunicados conforme as necessidades da campanha que ora se inicia. Espero contar com sugestões, opiniões e avaliações de todos que a ela se incorporarem. Convido-os a esta tarefa difícil e desgastante de não se acomodar na busca de um mundo melhor para todos nós.

Belém (PA), 14 de fevereiro de 2012
LÚCIO FLÁVIO PINTO - Editor do Jornal Pessoal

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Uma visita à Christiania, uma comunidade sem leis

Antonio Fernando Araujo

Prinsessegade, Copenhague, é a rua de paralelepípedos que vai nos deixar diante da entrada de Christiania. Para um turista desavisado quase não é percebida. Vamos começar a descobrir esse “mundo novo”, que em termos de Ocidente, cristão e civilizado, é de um significado incomparável, dessas coisas singulares manifestadas a cada século e de uma maneira tão especial que a gente custa a crer que sobreviverão por muito tempo.

Meses mais tarde eu haveria de imaginar que Christiania bem que poderia deixar de ser apenas uma "pedra no sapato" da Dinamarca, mas assumisse a dimensão e o alcance de toda uma Europa, imersa em um delírio anarquista que contrariasse a idéia dominante de que a humanidade se auto-destruirá se não existir um controle sobre a liberdade individual. Embora seu enredo possa ser visto como fruto de um devaneio quando apregoa um estilo de vida que propõe uma nova ética de convivência baseada na irrestrita solidariedade e na honestidade a toda prova, Christiania ainda assim, se apresentaria - de um lado - como uma lenda da liberdade na contra-mão da história e - de outro - permanentemente na vanguarda iluminando a Europa e o mundo desse cantinho discreto de Christianshavn, um bairro boêmio-turístico de uma Copenhague fria, de uma Dinamarca há séculos encravada na nobreza feudal, no mercantilismo e no capitalismo europeu.

Seguimos na direção daquela entrada e sob o primitivo e tosco pórtico de madeira escura, entalhada como totens e encimado com o nome CHRISTIANIA em letras douradas, pegamos um folheto e adentramos nesse mundo à parte onde algumas pessoas nos parecem cordiais e outras nem tanto, exibindo uma fisionomia de barbas e cabelos desalinhados capazes de suscitar temores variados, por conta da chegada a um território evidentemente hostil. Decidimos não tirar fotos quando vimos uma placa onde, por sobre o desenho de uma câmera, uma tarja vermelha indicava a proibição. Mas tanto essa impressão quanto a proibição não tardaram a se desfazer e na medida em que percorríamos as ruas coloridérrimas por conta dos imensos painéis pintados nas laterais ou mesmo em algumas fachadas dos prédios e dos adereços de toda sorte pendurados em árvores e alpendres, pelos moradores comuns caminhando pelas ruelas, por alguns dos trajes de jovens e de mulheres, pelos edifícios de tijolinhos aparentes com janelas no nível da rua, pelos jardins bem cuidados diante de casas simples com suas portas escancaradas, pelos sons ardentes de uma música que não entendíamos, pelos ateliês abertos para os olhares de quem passa, pelos triciclos e bicicletas espalhados por toda a parte e que aparentemente substituem aqui os automóveis, pelos bares povoados por figuras andróginas algumas delas desconcertantes, enfim, por tudo o que cada personagem desse universo mágico representa, fomos aos poucos percebendo que, apesar da estupenda diferença cultural, certamente esses homens e mulheres buscam, assim como nós, um círculo de paz e de harmonia, tanto com as outras pessoas quanto com a natureza, longe dos ódios, das guerras, da destruição do verde, do extermínio dos animais e da cada vez mais crescente insegurança das metrópoles.

Mesmo sendo uma sociedade absolutamente livre e aberta, tendo sido criada ao sabor da lucidez e das controvérsias dos movimentos hippies e anarquistas das décadas 60/70 do século passado – e talvez até por isso – hoje o colorido prospecto que distribuem assinala claramente:

“Existem quatro e inquebrantáveis regras em Christiania:

NÃO, às drogas pesadas (haxixe, heroína, cocaína, crack, etc.) e qualquer pessoa pega com elas é sumariamente expulsa da área” - porém a maconha e a erva "skunk", podem,
NÃO, a qualquer comércio que envolva moradias ou áreas residenciais,
NÃO, às armas de qualquer espécie e
NÃO, à violência seja ela de que tipo for.”

E conclui: “Não cremos que os nossos visitantes possam ter qualquer espécie de problema aqui, se obedecerem a essas regras.”

Mas eles não ficam só nisso. Outras normas, com o passar do tempo, foram sendo incorporadas, até para estabelecer certa disciplina na conduta de cerca de um milhão de visitantes que a cada ano passam por aqui. Êi-las:

- Christiania é uma vila aberta ao tráfego de automóveis, embora não sejam benvindos e onde você estaciona nas ruas; mas, o melhor mesmo é pegar o metrô e descer em Christianshavns Torv ou o ônibus da linha 66 (na direção da Refshaledøen) descendo na Prinsessegade.
- Aqui é proibido trafegar de motos e assemelhados.
- Bicicletas são permitidas e estimuladas até, mas lembrando sempre: em qualquer circunstância a prioridade é do pedestre.
- O lixo é todo separado e classificado: orgânico, vidros, papéis, inflamáveis, plásticos, baterias, etc.
- Toaletes: use as públicas, não a natureza; procure-as no mapa ou então, pergunte.
- Respeite a privacidade: não entre nas casas e nem nos jardins sem ser convidado. Existem muitas áreas arborizadas aonde você pode sentar-se e saborear seu almoço em paz e gozando da quietude desses lugares.
- Fotografar: tente perturbar o mínimo possível e peça permissão às pessoas antes de fotografá-las.
- Animais: não traga seus animais domésticos mesmo sendo eles dóceis e mansos.
- Não discrimine ninguém.

Dessa maneira todos são bem-vindos a Christiania, garantem. E mais: pode-se caminhar livremente por suas calçadas e alamedas e quando alguma delas passar próximo das janelas, não se acanhe, pode-se bisbilhotar para dentro e observar o que fazem seus moradores. Isso não é considerado “invasão de privacidade” e ponto final.

Falando em moradia: sempre que uma é desocupada, põe-se um anúncio e a Cooperativa que administra os imóveis reúne os interessados e os vizinhos mais próximos e escolhem os novos moradores. Não corre dinheiro nem por cima e nem por baixo da mesa. É feito às claras levando-se sempre em conta o bem estar dos moradores e a filosofia de vida dessa "Cidade Livre", como eles se autodenominam, e que já acumula mais de 40 anos de história.
Christiania, essa original mistura de um estilo de vida tipicamente dinamarquês com um modo livre e progressista de organizar uma comunidade com cerca de mil habitantes, já se tornou conhecida em vários cantos do mundo. Não é à toa que várias organizações internacionais e estudiosos do comportamento social a visitam para conhecer essa experiência inédita e vitoriosa, que abriga não só pessoas, social e economicamente bem sucedidas, como, jovens desempregados, mães solteiras e sem teto, vagabundos e desafortunados de vários quilates. Novamente: todos são benvindos a essa mistura mágica de aldeia secular com metrópole de vanguarda e que tanto põe a nu seus valores artísticos e culturais e a exuberante criatividade do conjunto de seus moradores.

Basta ver o projeto arquitetônico de algumas de suas moradias, admirado e estudado até pela vizinha Escola de Arquitetura de Copenhague, as apresentações de música ao vivo, teatro e exposições de pintura e de esculturas, para se ficar de acordo com o rótulo, inúmeras vezes atribuído a Christiania, de que ela é uma “ilha de cor cercada de arte” e de se ter a convicção de que consagra um capítulo inteiro do seu senso comum à contínua valorização dessas atividades, não apenas agora, mas ao longo de toda sua incerta existência. Essa existência de cores, longa e recheada de batalhas, vitórias e derrotas é a história incomum dessa comunidade que um dia sonhou com uma vida plena de liberdade e com a idéia de um lugar regulado e administrado por seus próprios habitantes.

Christiania nasceu em 1970 a partir de uma invasão hippie junto com jovens desempregados a uma antiga base da OTAN, na ocasião desativada, visando a construção de uma sociedade alternativa, cujo lema principal seria a mais ampla liberdade. Até hoje, quando já possuem representantes no Parlamento, ainda vivem às turras com o Ministério da Defesa, o legítimo proprietário da área. Muitos daqueles que viram Christiania nascer, não estão mais aqui, mas parece que os ideais desses pioneiros não se perderam, ao contrário, se atualizaram e se mostram mais vivos do que nunca: continua sendo uma comunidade sem leis (apesar daquelas regrinhas) mas com um senso comum altamente desenvolvido. Se hoje seu futuro promete passar distante dos utópicos mandamentos propostos por seus idealizadores, pois muitas de suas características se perderam no tempo, pelo menos permanece intacto seu status de santuário contemporâneo da paz, do amor e da liberdade. Os problemas são debatidos e resolvidos em cada Conselho de Cidadãos – por consenso e não por maioria -, o que faz com que as decisões sejam demoradas, mas permitem um grau maior de satisfação.

Como ninguém é proprietário de sua moradia, cabe também ao chamado Conselho Comum tomar as providências junto ao Conselho de Christianhavn, um bairro vizinho e do qual Christiania participa, à Prefeitura de Copenhague e ao Governo da Dinamarca, que dizem respeito ao fornecimento de água, eletricidade, gás, pavimentação, esgotos, telecomunicação, paisagismo, etc. Já aos moradores restam aquelas atividades econômicas que os aproximam: mercados, padarias, jardins da infância, escolas, creches, casa comunitária de banhos, prestadores de serviços diversos, de marceneiros aos técnicos de informática, bares e cafés, artesãos da madeira, metais e tecidos nos mais variados produtos, plantadores de ervas, produtores de chá, cosméticos, pastas de dente, produtos homeopáticos e por aí vai. A educação infantil compõe um capítulo todo especial, cuja ênfase aponta para um mundo político e ecologicamente mais correto e mais de acordo com o futuro livre e saudável da comunidade, muitas vezes até contrária às posições oficiais assumidas pelo governo.

Algumas empresas se instalaram aqui e utilizam com sabedoria a mão de obra local. Tais empresas são aquelas que, pela natureza de seus produtos, exigem um alto grau de inventividade, como as dos segmentos de telefonia móvel, as de eletroeletrônica, as de som e imagens, etc. Foi essa inventividade que produziu a moeda local, a Løn – equivalente a 50 krones (cerca de 20 reais), aceita apenas aqui dentro e fez nascer, lá pelos idos de 1984, uma indústria tipicamente local, levada adiante por habilidosos serralheiros, cujos produtos, seguros e de alta qualidade, projetados para durar e atender necessidades específicas tornou Christiania ainda mais conhecida: o das bicicletas e triciclos com bagageiros. Projetadas em estreita cooperação com os usuários, hoje são vistas em toda a Dinamarca – como as bicicletas-táxi de Copenhague – e até exportadas. Christiania ainda se orgulha de ter sido um dos primeiros lugares do país a utilizar a “banda larga” a baixo custo permitindo assim o emprego da internet pela grande maioria de seus moradores. E mais: da reciclagem da sua água, do uso da energia solar em larga escala e de vários outros projetos de natureza ecológica e que se voltam para um estilo de vida cada vez mais saudável.

Esta é a síntese da Christiania dos dias atuais: uma experiência que o governo, pressionado pela União Européia, quer acabar porque incomoda a grande indústria. Experiência que insiste em ficar distante daquele modelo de um mercado consumidor, que ela, a grande corporação, prefere ver estruturado para se manter sempre igual e disciplinado e não para ficar dando "maus exemplos", criando e oferecendo alternativas comunitárias, fora de uma cartilha padrão preconizada por um mundo que se pretende global, único, uniforme. Algo que parece ter saído de um conto de fadas ainda que saibamos que fadas não costumam fumar maconha.

Ainda terei que viver muitos anos com a esperança de que apenas a intuição me ensine a navegar com destemor nos pantanais e nos alpendres floridos dessa comunidade imprevisível, de saias rodadas e franzidas, de tranças longas até a cintura, sem uma bússola e contra a corrente do mundo ajuizado que não se arrisca fora do leito banal da existência. Confesso ainda sentir dificuldade em discorrer sobre Christiania e sobre o impacto ou o desconforto intelectual que me causou. Esse mundo, situado no outro extremo da nossa galáxia, não pode ser inteiramente percebido em uma visita turística de 40 minutos. Contudo aquelas coisas que penetram logo pela retina, que tocam de imediato nossa pele e entram pelos nossos ouvidos ao primeiro contato, me levam a imaginar a exuberante aldeia, aquela que um dia foi preconizada pelos anarquistas do século 19. No crisol onde costumam arder todas as utopias, quiçá ela possa nos servir como um magnífico norte, um exemplo a ajudar-nos a dar uma guinada - não mais apostando inteiramente “de que a Ciência [e os banqueiros] haverá de nos dar a Terra Prometida” -, aquela mudança de rumo e de estilo que, logo de cara, nos convença de que estaremos caminhando firmemente na direção de um novo código de conduta para o homem, de uma nova moralidade, modernos, mais justos e mais fraternos, para a Humanidade se reorganizar e continuar povoando essa terra-mãe.

Hoje, quando europeus encontram-se socialmente fragmentados, financeiramente moídos, triturados em suas camadas mais pobres pelas ambições de um sistema que a cada crise se revela algoz de parcelas cada vez mais consideráveis da humanidade "vale, então, apostar numa atitude de confiança e de entrega radical (é o sentido bíblico de fé) de que o mundo é salvável e o ser humano resgatável a ponto de descobrir a irmandade universal até com as formigas do caminho,” assinalou Leonardo Boff.

Christiania, com tudo o que essa pequena vila significou para mim – tenha eu apreendido ou não os sinuosos e insondáveis meandros do seu enredo essencialmente humano - vai ficar, em caráter permanente e antes que a União Européia e a Dinamarca a varram sem remorsos do mapa, catalogada num lugar dos mais serenos e reservado a futurologias da série Lugares Inesquecíveis, pois dela ainda haverão de soprar ventos ainda mais promissores de uma rebeldia que proponha contornos novos para uma sociedade menos injusta.

"O movimento hippie chegou ao fim junto com os anos 70. Na ocasião, escrevi no jornal Aktuelt, do Partido Socialista Dinamarquês, que deveríamos utilizar o melhor do seu legado: a busca da sabedoria, a luta pela liberdade, a procura da integridade com a natureza, a simplicidade no trajar, as comunidades familiares, a guerra a preconceitos odiosos e assim por diante. Ocorreu exatamente o contrário. (...) Nos últimos 35 anos, vem se tentando destruir o pensamento em favor do lucro. Quem pensa não compra o que lhe é imposto, e quem não compra o que é imposto é inútil para o sistema. (...) É verdade que, para os que tinham algum dinheiro, a vida melhorou bastante, pois o cérebro pouco exigente nada mais pede que casa, carro e novela de TV." Se vivo fosse, Fausto Wolff testemunharia o quanto de seu presságio se constata na Europa dos nossos dias, meia destroçada pela ganância de alguns e ainda assim e por suas elites, apostando o que lhe resta em um modelo econômico onde a solidariedade, a paz e a harmonia não são levados em conta.
 Quando deixamos a Pusher Street (a "Rua do Traficante") e voltamos a cruzar o mesmo umbral de madeira, onde, agora no seu reverso, se lê, "estamos de volta à Comunidade Européia" e a percorrer a Prinsessegade, regressando ao nosso planeta em Christianshavn, o relógio já assinalava 5 da tarde. Seguíamos na direção da parada do ônibus dessa vez margeando a Overgaden Oven Vandet, uma rua povoada de bares com mesas nas varandas e calçadas, apinhados de gente e o Christianshavn Kanal, o anfitrião que hospeda centenas de barcos ancorados nas margens permitindo que alguns, transportando turistas, naveguem placidamente por suas águas. Alheios a esse burburinho todo Christiania, ali ao lado, preparava-se para mais uma noite sem iluminação nas ruas, exceto as luzes provenientes dos bares, ateliês, oficinas e mercadinhos, de reuniões de moradores em seus respectivos Conselhos, sem a necessidade das leis que controlem a organização social, de construção, enfim, de uma vida comunitária sem a presença de um governo "caretamente" institucionalizado. Com uma temperatura em torno de 15ºC, podíamos nos dar por satisfeitos, pois apesar do céu meio encoberto não chovia e não sentíamos o vento gélido que, não raro, sopra do Mar do Norte. 

Nos despedimos de Christianshavn com essas imagens todas, de um sonho que por enquanto ainda não acabou, de uma utopia que ainda está dando certo. Sua vizinhança com Christiania bem que a faz merecedora de boa parte da brisa saudável que já sopra daquelas bandas e chega até aqui. O chope que tomamos em pé no balcão de um dos bares funcionou como um inesquecível brinde a esse passeio - repleto de surpresas - por este lado luminoso de uma surpreendente Copenhague.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Atropelar de jet ski e fugir de helicóptero. É o Brasil cinematográfico

20/02/2012 - Leonardo Sakamoto em seu blog

Uma das primeiras reportagens que produzi como jornalista foi sobre atropelamentos por jet ski em praias do litoral de São Paulo no final de 1995. Conversei com famílias que haviam perdido seus entes queridos depois que condutores irresponsáveis não respeitaram a distância mínima de 200 metros da areia e ficaram se exibindo onde os banhistas se divertiam. Ou estavam mamados de cerveja e caipirinha e foram dar uma voltinha de jet mesmo assim. Afinal, água não machuca, né?

Havia ainda outros que não faziam ideia de como pilotar a embarcação (é necessário habilitação de arrais amador concedida pela Marinha e ter, no mínimo, 18 anos), mas seus pais provavelmente achavam bonito o filhão montado em tantos cavalos de potência e incentivaram a maluquice. Os mesmos pais não dariam o carro para que seu filho ou filha dirigisse, mas entregam um jet. Ou até dariam, vai saber o que esse pessoal com cérebro de camarão ao alho e óleo não faz…

Como o jet ski não tem leme, é necessário acelerar para virar. Ou seja, se você vê um obstáculo à sua frente, por instinto, para de acelerar. Se fizer isso com um jet, ele ignora o comando e segue a trajetória. Dessa forma, muita gente já perdeu a vida.

Em diversas histórias que colhi, houve o padrão básico dos covardes: atropelamento e fuga, tanto para tentar se livrar de um flagrante quanto para dar tempo aos advogados da família de constituírem uma defesa ou encontrar alguém com carteira de arrais para assumir a culpa.

Para não dizer que nada mudou nos últimos 17 anos (ai, tô me sentindo velho com essa…), o número de jets aumentou nas praias e a quantidade de pessoas com recurso para alugá-los também. Apesar de ações do poder público, as regras continuam a ser sistematicamente desrespeitadas e pessoas vem morrendo por causa disso.
Retomei o tema porque fiquei surpreso com uma morte ocorrida neste domingo (19) de carnaval, no mesmo litoral de São Paulo. Uma menina de três anos foi atingida na cabeça, em Bertioga, por um jet ski pilotado, segundo testemunhas, por um adolescente de 14 anos. Chegou a ser socorrida, mas não resistiu.

O que me surpreendeu foi a notícia, veiculada pela Folha de S. Paulo (para assinantes), de que a família do jovem infrator, que fugiu do local sem ajudar no atendimento, teria saído de helicóptero do condomínio onde estava. Quando procurada pela polícia, ela não foi encontrada. Outra versão diz que carros de luxo deixaram o condomínio logo após o ocorrido. Por terra ou por ar, o que importa é que a escapada parece ter sido com estilo, confirmadas qualquer uma das versões.

A menina teria esperado 40 minutos pelo helicóptero da Polícia Militar que fez o resgate. Segundo parentes, era a primeira vez que via o mar.

(Abro um parênteses: li as matérias a respeito e encontrei poucas que o tratassem pela alcunha de “menor”, o que – a meu ver – não é o melhor tratamento para se referir a um jovem que infringiu a lei. Se fosse pobre e tivesse atropelado alguém com um Fusca 73, a história poderia ser diferente. Por aqui, rico é jovem, pobre é menor. Um é criança que fez coisa errada, o outro um monstro que deve ser encarcerado. Nós, jornalistas, precisamos ficar de olho para não propagarmos determinados preconceitos com as palavras que escolhemos.)

É duro constatar que certas coisas não mudam. Apenas ganham contornos cinematográficos.

Comentário feito às 16h20 do dia 20/02: Vendo os comentários a respeito do ocorrido, alguns dos quais pedindo o nome do adolescente e vingança, gostaria de ressaltar que, mesmo tendo cometido um crime, a lei brasileira – acertadamente – proíbe a divulgação dos nomes das crianças e adolescentes com menos de 18 anos envolvidos, sejam eles ricos ou pobres. Não raro, casos como este levam à comoção pública que, por sua vez, aplica linchamentos físicos e psicológicos a vidas e reputações. Isso não é Justiça e sim barbárie. Esperar o inquérito policial e julgar os responsáveis é o melhor, e mais civilizado, dos caminhos.

Carnaval subordinado ao mercado

19/02/2012 - Mário Augusto Jakobskind - Direto da Redação

É carnaval. Muita gente vai perguntar: e daí? Daí que a maioria cai na folia e muitas vezes não se dá conta que a festa está deixando de ser popular para se institucionalizar na base do deus mercado. As escolas de samba entraram nessa lógica e hoje os desfiles viraram espetáculo industrializado com regras castradoras. E para assistir no sambódromo o custo é alto.

O tema é polêmico por natureza. Outro exemplo é dos blocos de rua. Agora, o senso comum anda entoando a cantiga segundo a qual o carnaval de rua ressurgiu com o monobloco etc e tal. Não é verdade, antes da apropriação industrial dos blocos como começa a acontecer, o carnaval de rua sempre se fez presente. Neste 2012 tem até bloco que nem apresenta samba ou marcha, optando pelos Beatles e se dizendo responsável pelo “ressurgimento” do carnaval de rua.

As exigências que a prefeitura cria para permitir o desfile dos blocos são tantas que muitos desistiram de seguir as normas. A burocratização do carnaval faz parte do esquema industrial que visa a tornar a festa apenas uma fonte de lucros para poucos, como determina a lógica do capital.

Mas, enfim, como o tema é muito sério e complexo, tem muito folião que considera tal discussão chata. Prefere então embarcar na festa, sem perceber que com o andar da carruagem em pouco tempo o carnaval vai se afunilar e será para poucos pagando muito, como exige o mercado.

Tem mais. Nestes dias de Carnaval, muita coisa que acontece por aqui e pelo mundo afora fica em segundo plano. A mídia de mercado aproveita o embalo e não divulga questões relevantes. É o caso da repercussão que poderia ter um fato ocorrido na França e que envolve uma empresa conhecida nesta plagas abençoadas por Deus e bonita por natureza.

A empresa estadunidense Monsanto foi julgada por um Tribunal da cidade de Lyon, na França, e considerada legalmente “responsável” pela intoxicação de um agricultor. Foi uma decisão judicial em primeira instância e a empresa deverá apelar, o que retardará a decisão final. Mesmo assim, a primeira decisão pode ser considerada uma vitória, pois remete a questão para o debate e questionamento da Monsanto.

É importante os brasileiros serem informados a respeito do acontecido na França, porque de um modo geral a Monsanto por aqui tudo pode e conta com total apoio dos meios de comunicação de mercado, que ignoram os protestos e denúncias contra a empresa acusada de provocar sérios danos ao meio ambiente e à saúde das pessoas ou manipulam o noticiário criminalizando os movimentos de protesto.

Outro tema que continua a ocupar grandes espaços de discussão e matérias mesmo na mídia de mercado é o que se passa em Cuba. Recentemente, por exemplo, a TV Bandeirantes apresentou uma série de matérias completamente manipuladas e equivocadas.

O repórter ouviu apenas um dos lados, ou seja, exatamente o que faz oposição ao regime e sempre com o estímulo dos setores extremistas radicados em Miami que nunca se conformaram com a perda de privilégios.

Foram mostradas imagens com o objetivo de o telespectador concluir ser Cuba um inferno na Terra e que seu povo vive no pior dos mundos. O repórter apurou mal certos fatos, um deles ao afirmar que o CUC, a moeda do turismo, pode ser convertido em dólar pelos cubanos e assim sucessivamente. Esqueceu de dizer o principal, ou seja, que o turista troca a sua moeda, dólar ou euro, pelo CUC para então usar para os gastos em território cubano. Se reconverter, cubano ou turista, para dólar ou euro vai perder, claro. Mas o repórter ignorou essa obviedade.

Os CUCs deixados pelos turistas, que em 2011 vieram num total de dois milhões e 700 mil, permitem ao Estado cubano aplicações nas áreas de saúde, educação, moradia etc. Ou seja, as divisas do turismo são destinadas exatamente para a utilização em favor do povo. Aí o senso comum prefere dizer apenas que apesar de permitido são pouco os cubanos que têm acesso aos locais frequentados pelos turistas.

Saúde e educação de boa qualidade e de graça é salário indireto. Se contabilizado, utilizando como termo de comparação muitos países latino-americanos, europeus e mesmo os Estados Unidos, chega-se a cifras altas e até astronômicas. E tem mais um detalhe: saúde cara não raramente pouco acessível a muitos assalariados sem condições de pagar planos de saúde de empresas particulares. E em não poucos países com a saúde pública em péssimas condições.

Mas como as reportagens objetivam apenas reforçar o sentimento contra Cuba, mostrar a realidade sem manipulações não interessa a mídia de mercado, muito menos ao esquema Barack Obama, que corre atrás dos votos de Miami, onde os cubano-americanos têm peso eleitoral.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Paralelismos: Sankara, o herói que desafiou os credores

sábado, 18 de fevereiro de 2012 - rede castorphoto
em 16/2/2012 - Leonidas Oikonomakis* - Λεωνίδας Οικονομάκης - ROARMAG.org - “Parallelisms: Sankara, the hero who defied his creditors”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu para Eduardo Galeano

Nos retumbantes protestos anti-austeridade da Grécia, podemos ouvir o eco de Sankara – o Che Guevara da África - o herói que desafiou os seus credores.


 Aconteceu em 1987

A Conferência da Organização da Unidade Africana reuniu-se em Addis Abbeba, Etiópia, nos últimos dias daquele julho de muito calor. E lá estava ele. No uniforme caqui, com seu invencível bom humor, Thomas Sankara, presidente revolucionário de Burkina Faso, o Che Guevara da África. Foi seu último discurso, e ali conquistou os corações dos pobres e explorados. Hasta siempre.

Não podemos pagar essa dívida, primeiro porque, se não pagarmos, os credores não morrem. Isso é garantido. Mas se pagarmos, morremos nós. Isso também é garantido” – disse ele. E continuou: “Os que nos empurraram para que nos endividássemos, jogaram como se estivessem num cassino. Enquanto ganharam, ninguém discutiu coisa alguma. Mas agora, que estão perdendo muito, exigem pagamento. E nós só falamos de crise. Não, Sr. Presidente. Eles jogaram e perderam. É a regra do jogo. Não pagaremos. E a vida continua”.

Mas Sankara também sabia muito bem que não poderia estar sozinho na resistência. E portanto conclamou os demais chefes de Estado africanos a seguir seu exemplo:

“Se Burkina Faso for o único Estado que se recusa a pagar a dívida, eu não estarei aqui, na nossa próxima Conferência”, disse ele, profético. E todos riram.

Hoje, está acontecendo outra vez.

O Parlamento Grego reuniu-se no domingo à noite (na madrugada da 2ª-feria, para ser bem preciso) para votar um novo memorando que imporá ainda mais restrições à classe média e aos mais pobres naquele país, que já enfrentam terríveis dificuldades. E, isso, para obter mais um empréstimo, 70% do qual será gasto para pagar o serviço da dívida anterior. A sessão foi orquestrada por um governo preposto (não eleito) – comandado por um primeiro-ministro banqueiro (também preposto, não eleito) – formado, dentre outros, de gente da extrema direita.

As novas medidas incluem corte de 22% no salário mínimo (32% para os de menos de 25 anos), 15.000 demissões no setor público em 2012 e 150 mil até 2015 (num país cuja taxa de desemprego já é superior a 20%!), cortes em serviços públicos (saúde, educação e assistência social), privatização de patrimônio público (rentável!), mais a promessa assinada de que as medidas serão implementadas, seja qual for o resultado das eleições previstas para abril – como decretou recentemente “Sua Alteza” Wolfgang Schäuble.
Adote-me

Adote-me
Na rua, à frente do Parlamento, centenas de milhares de pessoas (entre as quais Manolis Glezos e Mikis Theodorakis, heróis da resistência grega) reuniram-se para manifestar sua oposição ao memorando, à “Troika”, ao modelo econômico dominante e àqueles políticos gregos que votavam, no Parlamento. No que gritavam, ouvia-se um eco que chegava de Addis Abbeba e do fundo dos tempos:

“Não podemos pagar essa dívida, primeiro porque, se não pagarmos, os credores não morrem. Isso é garantido. Mas se pagarmos, morremos nós. Isso também é garantido”.

À primeira vista, parece que não fez diferença alguma. O memorando foi aprovado pelo Parlamento. Mas, agora, a “Troika” está em pânico, com medo de ser derrubada pelo poder do povo, nas eleições de abril. Então, os credores tentam pateticamente adiar o pagamento do “resgate” para depois das eleições, quando o novo governo grego, depois de eleito, tiver sido obrigado a jurar que também cumprirá os termos do memorando.

Temam o povo! Vivemos grandes tempos para a democracia!

Thomas Sankara, o homem que acreditava que revolucionários podem ser assassinados, mas não suas ideias, não chegou à Conferência da Organização da Unidade Africana do ano seguinte. Foi assassinado três meses depois daquele famoso discurso em Addis Abbeba, por seu ex-amigo e companheiro em armas, Blaise Compaoré, que continua lá, presidente de Bukina Faso, até hoje.

*Leonidas Oikonomakis é um ativista, membro do grupo de hip hop Social Waste. Bacharel em Estudos Internacionais e Europeus da Universidade de Piraeus (2005) e mestrado em Desenvolvimento Internacional: Pobreza, Conflitos e Reconstrução pela Universidade de Manchester (2006). Foi professor associado para Pesquisas na Universidade de Creta, bem como no Centro de Estudos Europeus da Middle East Technical University, em Ankara, na Turquia. Atualmente é pesquisador do Instituto Universitário Europeu, Florença. Seus principais interesses de investigação incluem teorias e práticas de desenvolvimento internacional, mudança social, pobreza, sustentabilidade e os movimentos sociais. Seus artigos têm sido traduzidas para o francês, o urdu, hindi, árabe, bahasa da Indonésia e italiano.