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quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

A violência que usurpa a democracia

15/02/2014 - A violência usurpou a democracia
- Wanderley Guilherme dos Santos - Carta Maior

Sim, há algo de podre na política brasileira, mas enganam-se os que presumem que a podridão esteja só no Legislativo ou que de lá provenha.

Há algo de podre na política brasileira.

O discurso do ódio contaminou a cultura.

A violência física que assusta não é mais condenável do que a degradação pela palavra.

Introduzido durante os debates da Ação Penal 470, a televisão propagou Brasil a fora o escárnio como argumento, a salivação como prova irrefutável e a falta de compostura de alguns magistrados como aparte retórico.

Surpreendente a cada dia, durante todo o segundo semestre de 2013, os indiscutíveis mestres do STF, solidamente preparados, transformavam-se em arengueiros pernósticos a vociferar vitupérios em latim, em alemão e em inglês.

À língua portuguesa reservaram-se rebuscadas construções gramaticais com que degradavam de modo vil os réus em julgamento.

O valor intrínseco das evidências, muita vezes nulo, era irrelevante para o altissonante juízo que os homens de capas fúnebres proferiam.

Foi negado aos acusados a preservação última da dignidade de pessoa, a mesma que foi concedida ao assassino de Tim Lopes, Elias Maluco, ao ser descoberto: “prende, mas não esculacha”.

Com linguajar de estilo maneirista, as capas fúnebres do Supremo Tribunal Federal esculacharam quanto quiseram os réus da Ação Penal 470 perante uma audiência nacional, nela incluídos os “Elias Malucos” em liberdade.

E continuam, buscando proibir que sejam depositários da solidariedade de cidadãos e cidadãs em pleno gozo de seus direitos civis e políticos.

Não podendo oficialmente matá-los ou bani-los, apostam impor-lhes o ostracismo. 

É o discurso da vingança impotente movido a ódio.

O estímulo ao linguajar desabrido e ao julgamento apressado e irrecorrível encontrou na já virulenta blogosfera a ecologia apropriada para reprodução cancerosa.

Com a ferramenta do anonimato e a indulgência prévia a qualquer desvario, o Caim em nós desabrochou com velocidade sônica.

A filosófica vontade de morte, a definição humana de um ser para morte, revela-se menos conceitual e inocente na real inclinação para matar.

A internet veicula milhares de assassinatos virtuais e de convocatórias à destruição. Sem não mais do que o subterfúgio de códigos primários, quando muito, ações predatórias são incentivadas a qualquer título.

É total o descompasso entre avanço social e econômico do País e as toscas bandeiras eventualmente desfraldadas.

Na internet ou nas manifestações selvagens até mesmo os partidos radicais perdem importância. Não são eles que se aproveitam da turba para propaganda e crítica ao governo, é a violência irracional que se serve deles como escudo e defesa ideológica.

As antigas irrupções de quebra-quebra, de confronto entre polícia e manifestantes, e até mesmo episódios de grande magnitude, como a destruição das barcas em Niterói, no século passado, não têm parentesco próximo com o vírus do ódio contemporâneo.

Aquelas eram manifestações tópicas, de enredo conhecido e de duração previsível. Estas são projetos de vida e morte.

Tempo mal empregado o debate sobre a responsabilidade partidária dos confrontos atuais. O novo é a capacidade de mobilização a-e-trans-partidária das convocações subliminarmente homicidas.

A agressão pela palavra é companheira da agressão à palavra, à linguagem. A amputação da língua portuguesa tem sido o resultado não antecipado da linguagem de Caim.

São as frases, os verbos, as concordâncias as primeiras vítimas de todos os blocos de suposta vanguarda. Essas agressões são antigas, mas da blogosfera estão sendo trasladadas ao vocabulário jornalístico e da televisão.

Não só os textos de colunistas, repórteres e comentadores trazem conteúdo hiperbolicamente crítico, mas o vocabulário que utilizam é vulgar e de cada vez mais miserável. Não mais m..., pqp, fdap ou c......o.

Agora, intelectuais e jornalistas se esmeram  por extenso na vulgaridade da frase e na crueza dos termos.

É uma violência à palavra, ajudando a violência pela palavra, destruindo importante fonte de transmissão de cultura.

Não se aprimora o aprendizado da língua portuguesa lendo os jornais, as revistas, seus colunistas e editoriais rasteiros. Tornaram-se tão decadentes quanto o ressentimento que difundem.

Nem se discorda mais, se ofende. A violência está usurpando a democracia.

Sim, há algo de podre na política brasileira, mas enganam-se os que presumem que a podridão esteja só no Legislativo ou que de lá provenha. Para essa há remendos que asseguram a sobrevivência democrática.

Em putrefação está a cultura nacional pelo envenenamento de parte de suas fontes de elite: a cultura jurídica, o debate político e a cultura da informação. 

O péssimo é que, tal como os políticos costumam absolver seus pares, é mínima a probabilidade de que juízes ou professores ou jornalistas reconheçam a responsabilidade que lhes toca nessa podridão. São castas auto-imunes.  

Fonte:
http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/A-violencia-usurpou-a-democracia/4/30269

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, pois inexistem no texto original.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

As duas facetas da grande mídia

11/02/2014 - A alteridade cínica da grande mídia
Venício A. de Lima - de Brasília - Jornal Correio do Brasil

A Rede Globo de Televisão recomendou a seus jornalistas, inclusive os que trabalham em suas 122 (cento e vinte e duas) emissoras afiliadas, “que a Copa e a seleção brasileira são uma paixão nacional, mas que irregularidades deverão ser denunciadas e ‘pautas positivas’ deverão ser evitadas, a não ser que ‘surjam naturalmente’."

"Reportagens que mostram como a Copa está beneficiando grupos de pessoas, como os comerciantes vizinhos a estádios, já não estão sendo produzidas para o Jornal Nacional” (ver aqui, e aqui a resposta da Globo).

No telejornal SBT Brasil, a âncora fez aberta apologia de “justiceiros” vingadores que espancaram, despiram e acorrentaram pelo pescoço um suspeito adolescente, de 15 anos, a um poste no Flamengo, no Rio de Janeiro (ver aqui).

A recomendação da Globo e a posição defendida no SBT – concessionárias do serviço público de radiodifusão – teriam alguma relação com o aumento da violência urbana?

Mídia e violência

Em artigo recente, neste Observatório [da Imprensa], comentei a “pauta negativa” do jornalismo regional em Brasília que chamei de “jornalismo do vale de lágrimas” (ver "O vale de lágrimas é aqui").

O que me traz de volta ao tema é, especificamente, a alteridade cínica do jornalismo do vale de lágrimas na cobertura da violência urbana.

Esse tipo de jornalismo “faz de conta” de que a mídia não tem qualquer responsabilidade em relação ao que ocorre na sociedade brasileira.

Ela seria apenas uma observadora privilegiada cumprindo o seu papel de tornar pública a violência e cobrar mais policiamento dos governos local e federal – como se a solução da violência fosse um problema apenas de mais ou menos policiamento.

Por várias vezes tratei dessa alteridade cínica neste Observatório [da Imprensa], sobretudo em função das evidências acumuladas ao longo de anos de pesquisa em vários países que relacionam a violência ao conteúdo da programação da mídia, sobretudo da televisão (ver “A violência urbana e os donos da mídia“, “A responsabilidade dos donos da grande mídia“, “As lições do caso Santo André“, “A liberdade de comunicação não é absoluta“, “A mídia e a banalização da violência“ e “A lógica implacável da mercadoria“).

Ainda na década de 1990, em palestra que fez na Universidade de Brasília, Jo Groebel [foto] – professor da Universidade de Utrecht, na Holanda, e representante da Sociedade Internacional de Pesquisa sobre Agressão nas Nações Unidas – não deixou dúvidas sobre a existência de uma relação entre a predominância da violência na programação da televisão e a tendência para a agressividade de jovens e adultos.

Baseado em mais de 20 anos de pesquisa ele afirmou que a televisão “faz com que as pessoas pensem que a violência é normal” e que “quanto mais desigual a estrutura da sociedade maior o impacto da violência mostrada na TV”.

Nos Estados Unidos, os “National Television Violence Studies”, financiados pela National Cable Television Association (NCTA), também realizados nos anos 1990 por um pool de grandes universidades – Califórnia, Carolina do Norte, Texas e Wisconsin –, confirmaram as conclusões de Groebel e geraram uma série de recomendações sobre o conteúdo da programação para a indústria de entretenimento.

Em 2008, foram divulgados os primeiros resultados de uma longa pesquisa realizada por professores da Rutgers University, nos EUA, que vincula violência na mídia e agressividade em jovens.

No estudo, foram entrevistados 820 adolescentes do estado de Michigan. Destes, 430 eram alunos do ensino médio de comunidades rurais, suburbanas e urbanas.

Outros 390 eram delinquentes juvenis detidos em instituições municipais e estaduais, distribuídos equilibradamente entre os sexos masculino e feminino. Pais ou guardiões de 720 deles também foram entrevistados, assim como os professores ou funcionários que lidavam com 717 dos jovens.

A pesquisa revelou que mesmo considerando outros fatores como talento acadêmico, exposição à violência na comunidade ou problemas emocionais, a “preferência por mídia violenta na infância e adolescência contribuiu significativamente para a previsão de violência e agressão em geral”. 

E conclui: “você é o que assiste”, quando se trata da população jovem.

Certamente outras pesquisas atualizam e confirmam esses resultados, além de incluir também o cinema e os videogames, estes últimos um fenômeno mais recente.

Será que a presença maciça da violência na programação de entretenimento da mídia eletrônica e da televisão brasileira (aberta e paga), em especial, não é um dos fatores que contribui para o aumento da violência urbana?


A mídia e a Constituição
Um dos artigos não regulamentados da Constituição de 1988, o 221, reza:

A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:

I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;

II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;

III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;

IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.

Será que praticando o jornalismo do vale de lágrimas, excluindo a pauta positiva e defendendo os “justiceiros” vingadores, a grande mídia brasileira está cumprindo a Constituição de 1988?

A quem cabe a fiscalização dos contratos de concessão desse serviço público?

Com a palavra o Ministério Público e o Ministério das Comunicações.

(*) Venício A. de Lima, é jornalista e sociólogo, professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado)

Fonte:
http://correiodobrasil.com.br/noticias/opiniao/a-alteridade-cinica-da-grande-midia/684148/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=b20140212

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Nas escolas, o beabá dos direitos humanos

10/12/13 - ONU: “Necessitamos que a educação nas escolas ensine direitos humanos”
- Danilo Mekari - Portal Aprendiz

“Necessitamos que a educação nas escolas ensine direitos humanos e respeito mútuo e inspire as e os jovens a serem líderes a favor da igualdade.” 

É o que defende Nadine Gasman [foto acima], representante da ONU Mulheres no Brasil, sobre o papel do ensino na erradicação da violência contra mulheres e meninas.

Na data em que se encerra a campanha “16 Dias de Ativismo”, que envolveu mais de 130 países em ações simultâneas em prol de maior comprometimento social para prevenir, punir e erradicar a violência de gênero, Nadine falou ao Portal Aprendiz sobre os desafios que o Brasil enfrenta para reverter a questão.

Uma mulher morta a cada duas horas.

Em comparação a outros países, o Mapa da Violência 2012 apresenta o Brasil na sétima posição em um ranking que mede a ocorrência de assassinatos de mulheres em 84 nações. Só na última década, mais de 43 mil brasileiras foram vítimas de homicídio, o equivalente a uma mulher morta a cada duas horas, em sua maioria no ambiente doméstico.

É preciso reconhecer que a violência contra as mulheres e meninas é uma expressão de um fenômeno social e cultural de exercício de poder e subordinação entre homens e mulheres, que implica em violações de múltiplos direitos humanos e que não é natural, aceitável ou tolerável em nenhuma cultura, classe social ou religião.

No Brasil, segundo pesquisa realizada pelo DataSenado, aproximadamente uma em cada cinco mulheres já foi vítima de violência doméstica ou familiar provocada por um homem.

Os percentuais mais elevados foram registrados entre as mulheres que possuem menor nível de escolaridade, entre as que recebem até dois salários mínimos e entre aquelas que têm idade de 40 a 49 anos.

No entanto, a própria pesquisa demonstra que a violência está presente em todas as classes sociais”, afirma Nadine.

De acordo com ela, o fim da violência contra as mulheres será uma realidade “à medida que mais pessoas a considerarem inaceitável e passível de ser evitada, e à medida que mais agressores receberem a punição devida”.

Abertura oficial da campanha "16 Dias de Ativismo" em Novo Hamburgo (RS)

Leia mais:
Campanha 16 Dias de Ativismo pede fim de violência contra mulheres

Portal Aprendiz – Qual a importância da Campanha 16 Dias de Ativismo no contexto brasileiro de combate à violência contra a mulher? Quais ações ocorreram durante esse período?

Nadine Gasman – A campanha é uma forma chamar a atenção da comunidade internacional para que se conscientize e se esforce para combater a violência contra as mulheres fortalecendo o marco dos direitos humanos.

Diversas ações foram realizadas por diferentes pessoas, grupos sociais, instituições públicas e privadas.

(Veja aqui um mapa interativo com as ações que ocorreram no dia 25/11).

Entre as atividades da campanha estavam marchas com o objetivo que denunciar os altos índices de violência praticados contra a mulher no Brasil.

Aprendiz – Como realizar um trabalho educativo com crianças e adolescentes, a longo prazo, que vise eliminar a violência de gênero? E, para além disso, como levar essa educação para a sociedade como um todo?

Gasman - Para citar a Secretária Geral Adjunta das Nações Unidas e Diretora Executiva da ONU Mulheres, Phumzile Mlambo-Ngcuka, [foto] “necessitamos que a educação nas escolas ensine direitos humanos e respeito mútuo, e inspire as e os jovens a serem líderes a favor da igualdade."

"Necessitamos oportunidades econômicas equitativas e acesso à justiça para as mulheres.

Necessitamos escutar a opinião delas.

Necessitamos mais mulheres na política, na polícia e nas forças de manutenção da paz”.

Temos que envolver os Ministérios da Educação para garantir que os direitos humanos, a educação sexual, a igualdade de gênero e a resolução não violenta de conflitos sejam temas centrais nos currículos em todos os níveis da educação.

Os professores e professoras também precisam receber formação para ensinar sobre esses temas.

Aprendiz –  Qual a avaliação da ONU Mulheres acerca dos sete anos de implementação da Lei Maria da Penha? Quais os principais desafios a serem superados?

Gasman – A Lei Maria da Penha é citada entre as três melhores legislações do mundo com relação ao enfrentamento à violência contra as mulheres no relatório “O Progresso das Mulheres no Mundo 2008/2009″, junto com a lei da Violência Doméstica na Mongólia (2004) e a lei de Proteção contra a Violência na Espanha (2004).

É realmente uma lei especial, porque 98% da população a conhece e sabe que a violência contra as mulheres é um crime passível de punição.

A Lei Maria da Penha é essencial, pois deu às mulheres a certeza de que podem falar e denunciar.

As mulheres que sofrem violência já não se sentem obrigadas a se calar e aguentar tudo sozinhas.

Elas sabem que existe proteção legal para elas, e estão se sentindo encorajadas a denunciar.

Então, o que vem aumentando é a visibilidade, a possibilidade de tornar pública a violência doméstica e buscar uma solução.

A lei é muito popular, todo mundo sabe que ela existe, e tem sido muito útil na proteção da vida e da integridade das mulheres vítimas de violência.

Porém, o sistema de justiça precisa acompanhá-la.

O sistema de justiça brasileiro reconhece de forma irregular a gravidade da violência doméstica e
familiar.

Apenas um terço dos casos que chega aos tribunais resulta em condenação, e a impunidade ainda é um problema crítico.

O Brasil tem uma rede de atendimento que tem que ser fortalecida para garantir que as mulheres que são agredidas tenham acesso a serviços integrais de qualidade.

A prioridade do governo através do programa “Mulher, viver sem violência” tem potencial de garantir esse acesso.

Fonte:
http://portal.aprendiz.uol.com.br/2013/12/10/onu-necessitamos-que-a-educacao-nas-escolas-ensine-direitos-humanos/

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, pois inexistem no texto original.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Violências invisíveis

28/10/2013 - Ieda Estergilda de Abreu
- Revista Fórum, edição 125

A pesquisadora Luciane Lucas dos Santos [foto] fala sobre como o atual modelo de desenvolvimento e a sociedade de consumo se relacionam com as formas de violência presentes em nosso cotidiano

Como o atual modelo de desenvolvimento, adotado não apenas no Brasil, mas também em outros em países, afeta a dignidade humana?

A questão do modelo neoextrativista de desenvolvimento, a violência intrínseca a ele, o consumo e a questão indígena brasileira, temas entrelaçados, são estudados e discutidos pela professora e pesquisadora em Sociologia do Consumo, Luciane Lucas dos Santos.

Carioca com doutorado em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ela hoje é pesquisadora pós-doc no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, em Portugal, e em junho esteve em São Paulo, onde conduziu o 105º Fórum do Comitê de Cultura de Paz, parceria Unesco-associação Palas Athena.

Na entrevista abaixo, Luciane aborda as inúmeras formas de violência presentes no nosso cotidiano e como a sociedade de consumo e o modelo de desenvolvimento nutrem a invisibilidade desses fenômenos.

Fórum – Como se manifesta a violência hoje, na sua avaliação?
Luciane Lucas dos Santos – Muitos imaginam a violência como sendo apenas algo que tem a ver com o mal que um vai causar ao outro, com o contexto da guerra, da limpeza étnica, da violência das cidades. Há muitas formas de violência.

Caminhões com ameixas apodrecendo ao sol, que não chegam ao território palestino, é, por exemplo, uma forma de violência. 

Pode-se pensar também na humilhação social e na invisibilidade de algumas minorias – caso dos moradores de rua – como uma forma agressiva e silenciosa de violência.

Morador de rua em São Paulo:
uma forma de violência não
identificada pela sociedade em geral
(Valter Campanato / ABr)
É comum pensarmos que morador de rua quer vida fácil, não faz nada, não gosta de trabalhar. Não é verdade.

Estive com alguns numa feira de trocas embaixo do Viaduto do Glicério [região central de São Paulo] e aprendi muito.

Muitos estão diretamente envolvidos na organização da feira de trocas do Glicério. 

Trabalham montando e desmontando as barracas, na limpeza dos banheiros, no apoio às tarefas da cozinha. Recebem mirucas (moeda social) por este trabalho e, com elas, obtêm aquilo de que necessitam – alimento, roupas, produtos de higiene pessoal.

Nós temos uma concepção equivocada sobre a população em situação de rua. Muitos trabalham. 

Tem gente que veio de outros estados, da construção civil, perderam o emprego, não tiveram como voltar e ficaram por aqui. Muitos não voltam para casa, para sua terra, por vergonha.

A razão para se estar na rua também pode ser diversa: o abandono e a desagregação familiar, assim como o desemprego, estão entre os motivos. A droga e o álcool chegam, às vezes, depois. A invisibilidade social a que eles são muitas vezes relegados é, sem dúvida, uma forma de violência.

Fórum – A senhora diz que o modelo de desenvolvimento de um país pode vir a ser, paradoxalmente, um vetor de violência. Como é isso?
Luciane – As ideias de progresso e desenvolvimento não raro transformam-se em desrespeito às diversidades e às diferentes temporalidades que marcam as múltiplas formas de organização da vida.

O Brasil faz parte de um grupo de países que têm apostado no neoextrativismo – ou seja, trata-se de uma aposta nos hidrocarbonetos, na mineração, no alargamento dos latifúndios. 
As correlações, no entanto, nos escapam.

O hidrocarboneto pode estar no batom; quanto mais você compra, mais petróleo é necessário; quanto mais renova o celular, mais é necessário o coltan.

Muita gente não sabe que por trás da sede de novidades tecnológicas (laptops, celulares, pads), existe uma demanda crescente por este minério – o coltan (columbita-tantalita) – e que, muitas vezes, a demanda de coltan no mercado internacional implicará o acirramento da guerra civil em países como a República Democrática do Congo, onde há uma grande quantidade desse minério.

Não se trata de não ter celular, mas de discutir a violência invisível que habita os produtos, serviços e tudo mais que está no nosso cotidiano.

Fórum – Qual o papel do consumo nesse contexto?
Luciane – A maneira como eu me visto, onde eu como, que lugares eu frequento, tudo isto diz algo sobre mim. Os hábitos de consumo estão diretamente relacionados à questão da identidade.

Há um mito, aqui, que precisa ser desfeito: o de que o consumo seja um ato individual. Embora ele pareça ancorar-se na escolha do indivíduo, o repertório que sustenta e valida o consumo é social.

Isto quer dizer que, embora os indivíduos re-signifiquem, a todo momento, os conteúdos que recebem eles estão sempre presos a uma teia de significados validada socialmente.

Outra questão a considerar é que, no mundo contemporâneo, os nossos afetos têm sido mediados pelo mundo dos bens. Há riscos nisto.

Uma mãe atarefada que leva o filho, no fim do dia, para comer numa destas grandes lojas de fast food está tentando propiciar à criança uma experiência de bem-estar instantânea.

Ela pode pensar: “meu filho, não temos muito tempo para estarmos juntos…. quero que esta experiência seja alegre pra você… se você gosta tanto de ficar aqui, então vambora”.

Mas de todas as coisas que precisamos repensar acerca do consumo, uma me parece urgente: o reconhecimento de que o consumo constitui um sistema de classificação social.

Este modelo de consumo que hoje alimentamos contribui para que se naturalize uma hierarquia entre diferenças. Hierarquia entre gêneros, etnias e classes sociais. Mas, também, entre saberes, entre temporalidades, entre modos de estar no mundo e organizar a reprodução material da vida.

Fórum – O que o carro significa nesse contexto?
Luciane – Tem tudo a ver, estamos falando da violência estrutural, cotidiana e que tem muito da nossa aceitação. E aí entram as relações de trabalho.

Falemos do combustível que alimenta nossos carros – carros que associamos ao conforto.

Um trabalhador, no canavial, corta 12 toneladas diárias de cana. Ele anda quase nove quilômetros para cortar essas toneladas, segundo uma pesquisa da Embrapa. Faz cerca de 800 trajetos diários, dá 133 mil golpes de podão por dia. É uma violência silenciosa de que não temos notícia.

Ainda assim, queremos que aumente o valor do etanol no mercado internacional porque significa que o Brasil vai crescer. De que modelo de desenvolvimento estamos falando, afinal?

Fórum – E sobre os impactos sociais e culturais por trás do nosso consumo?
Luciane – Vamos ao caso dos megaeventos, tendo em vista o “consumo” da cidade.

Veja o que se passa no Rio de Janeiro. Bairros inteiros estão sendo afetados para facilitar o tráfego entre o Galeão e a Barra. 

Em São Paulo são organizadas visitas a Paraisópolis, que fica ao lado do Morumbi, por R$ 300.

Você sai da Vila Olímpia, por exemplo, e vai até Paraisópolis fazer um city tour.  Os pobres viram, simplesmente, objeto de consumo.

De repente, torna-se in subir o bondinho do Alemão ou ir aos restaurantes bacanas que agora estão dentro das favelas. 

Usando um termo empregado por Boaventura de Sousa Santos, estamos diante de uma relação de “apropriação e violência”.

A favela tem sido espetacularizada.

Não estou dizendo que tudo o que esteja acontecendo em função da Copa seja ruim, que as pessoas não estejam se reorganizando e criando oportunidades, mas quando transformamos a favela noutra coisa, estabelecemos com ela uma relação de violência.

Fórum – A questão indígena é outro tema de sua pesquisa. Como encaixaria no contexto da violência?
Luciane – Vou dar alguns exemplos do que tem acontecido com os povos indígenas para mostrar a situação de insegurança jurídica e fundiária.

Inúmeros documentos – entre projetos de lei, decretos etc – tratam de questões candentes sob uma perspetiva claramente anti-indígena.

A PEC 215 e a PEC 38 são bons exemplos. A PEC 215 propõe que seja do Congresso Nacional a responsabilidade pela demarcação das terras indígenas e quilombolas (já a PEC 38 propõe que seja o Senado a fazê-lo).

Isto significa, todos sabemos, uma barreira política aos processos de demarcação.

A Portaria 303, por sua vez, em consonância com o Código Florestal, separa os povos originários dos recursos que estão em suas terras. Ou seja, restringe o usufruto dos bens e recursos por parte destas populações, ainda que tais bens e recursos se encontrem em terras indígenas.

Se o Código Florestal abre o caminho ao retrocesso em relação aos direitos coletivos, a Portaria 303 pavimenta a estrada que confirma o grande latifúndio. Mas a questão não pára aí: a partir da Portaria 303, as demarcações já estabelecidas podem ser revistas e reconsideradas.

Outro exemplo é o projeto de lei 1610/96, bem como seu texto substitutivo, que complementam o cenário de retrocesso. 

Versam, ambos, sobre a exploração de recursos minerais em terras indígenas – sempre, é claro, com a alegação do interesse nacional. Segundo este Projeto de Lei, alcunhado de PL da Mineração, a consulta pública passa a ser um ato mais simbólico do que deliberativo e não interfere na continuidade do processo de exploração mineral.

Fórum – O que fazer?
Luciane – Primeiro, precisamos entender que dentro da diferença existem diferenças, para podermos perceber a dignidade de forma mais ampla.

Na luta das mulheres, por exemplo, é comum acharmos que o movimento feminista é um só, que vai reunir todas as lutas numa luta única. Há também violência quando as mulheres são tratadas como se falassem em uníssono, como se seus mundos fossem de uma única cor ou matiz.

Os problemas das mulheres não são sempre os mesmos; tampouco elas têm uma essência platônica a compartilhar.

Cair nesta cilada epistemológica é desconsiderar que os problemas vividos por estas mulheres podem ser ampliados diante de outras questões vividas na própria carne, como, por exemplo, o racismo, a intolerância religiosa, o preconceito com a opção sexual e as diferenciações de classe que abatem ainda mais o corpo da mulher pobre.

Já ouvi de uma mulher da periferia de São Paulo dizendo: “Quero saber como é que vocês podem me apoiar no final de semana, que é quando o bicho pega.”

É uma pergunta interessante. As condições de resposta de uma mulher de classe média à situação de violência doméstica não são as mesmas de uma mulher que vive na periferia.

Assim, não dá para, em nome dos direitos humanos, acharmos que a luta é a mesma para todo mundo; não necessariamente ela será.

Fórum – A senhora diz também que precisamos repensar a paz.
Luciane – Sim, fala-se muito na cultura de paz, mas acho importante pensarmos de que paz estamos falando e como ela é possível.

Evocar a paz implica, primeiro, não esquecer a diferença dentro das diferenças e perceber que não é possível evocar a paz, a dignidade, passando por cima de desigualdades e dívidas históricas.

Não estou dizendo que a paz não é possível, quero deixar claro. Contudo, é importante ter em conta que esta paz branca que tudo dilui – inclusive a história – é também violenta.

A cultura de paz só poderá efetivamente acontecer mediante efetivos processos de tradução intercultural e, portanto, de respeito às diferenças.

A tradução intercultural, nos termos propostos por Boaventura de Sousa Santos, configura-se como um antídoto poderoso contra o esgarçamento do tecido social, constituindo também uma forma preciosa de articulação política das minorias silenciadas.

Queremos a paz, sim, mas uma paz justa, que não seja construída em cima do silenciamento e da diluição da diferença.

Fonte:
http://revistaforum.com.br/blog/2013/10/violencias-invisiveis/

sábado, 10 de agosto de 2013

Colunista do 247, Latuff reage a ameaças de morte


:
Em carta aberta, cartunista faz apelo pelo fim dos 'grupos de extermínio oficiais como a Rota e o Bope, que só fazem matar pretos e pobres; pelo fim da “guerra contra as drogas”; pelo fim da filosofia militarista nas polícias'


247 – O cartunista e colunista do 247 Carlos Latuff reagiu às frequentes ameaças de morte que tem sofrido em represália a sua arte. Em carta aberta em apelo ao fim dos ‘grupos de extermínio oficiais como a ROTA e o BOPE, que só fazem matar pretos e pobres; Pelo fim da “guerra contra as drogas”; Pelo fim da filosofia militarista nas polícias’. Leia:

“Era de se esperar que houvesse reação violenta diante da minha provocação de que o garoto que matou o pai, um policial da ROTA, merecia atendimento psicológico e uma medalha. No estado policial em que vivemos no Brasil, as organizações da repressão são alçadas a condição sacrossanta. Quem ousar denunciar seus abusos corre sério risco de vida. Isso não é novidade pra mim, desde 1999, quando fiz meu primeiro protesto contra a violência policial, realizando uma exposição virtual de charges intitulada “A Polícia Mata”. Ao longo dos meus 23 anos de profissão como cartunista já fui detido três vezes por desenhar contra a truculência da polícia brasileira, e já recebi inúmeras ameaças, seja de judeus sionistas por conta de minhas charges em favor dos palestinos, seja de extremistas muçulmanos pelas minhas charges sobre a questão egípcia e síria. Portanto, ameaças fazem parte do meu trabalho.

Dessa vez, com as redes sociais, estas ameaças são potencializadas, graças a comunidades relacionadas a organizações policiais, que reúnem não só membros ativos das forças de repressão, como também simpatizantes com perfil fascista, anti-comunista, anti-petista, machista e homofóbico. É sabido que dois desses perfis, Fardados e Armados e Rondas ostensivas tobias de aguiar “Rota” estão incitando seus membros a tomarem ações violentas contra mim. E é bem possível que isso aconteça, afinal de contas, a polícia mata! Não seria eu o primeiro, e muito menos o último. Essa é a característica de nossas polícias, de nosso estado. E se acontecer, que sejam responsabilizados os administradores destas comunidades e o estado brasileiro.

Fico feliz que essa polêmica esteja acontecendo. Diante de casos como o desaparecimento do pedreiro Amarildo na Rocinha, e de tantos outros pelo Brasil, herança maldita da ditadura militar que torturou, matou e sumiu com diversos militantes de esquerda, é sempre bom discutir sobre a violência policial, que é um tabu que poucos tem coragem de tocar.

Me sinto orgulhoso de receber ameaças assim. Me sinto no mesmo patamar dos corajosos militantes do Mães de Maio e da Rede de Comunidades que cotidianamente se arriscam para defender as vítimas do terrorismo de estado no Brasil. Se eu tiver que cair pelo que acredito, cairei. Meu pai, um cearence chucro de Nova Russas, não me criou pra ser frouxo.

Espero que todo esse esforço não tenha sido em vão, ou termine com minha morte. Que os partidos de esquerda, PSOL, PSTU Nacional Partido Comunista Brasileiro – PCB (Oficial) PCdoB – Partido Comunista do Brasil Partido Comunista Revolucionario Partido da Causa Operária e os movimentos como a Liga dos Camponeses Pobre MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e o Mtst Trabalhadores Sem Teto e mesmo a esquerda do Partido dos Trabalhadores defenda sempre a bandeira dos direitos humanos e contra a violência policial.

Pelo fim de grupos de extermínio oficiais como a ROTA e o BOPE, que só fazem matar pretos e pobres. Pelo fim da “guerra contra as drogas”. Pelo fim da filosofia militarista nas polícias.

Valeu gente! Não passarão!

Carlos Latuff

Cartunista

Fonte: Site 247

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Onde estão os Amarildos?




por Martha Neiva Moreira, Rogério Daflon e Camila Nobrega, do Canal Ibase*

O assessor Guilherme Pimentel, da Comissão de Direitos Humanos, foi convocado, no último dia 17, a ir a uma manifestação de moradores da Rocinha, que, à noite, fechavam a AutoEstrada Lagoa-Barra na altura da comunidade. O protesto vinha em forma de pergunta: Cadê o Amarildo? O clima era de tensão e revolta. Na véspera, alertada por residentes da favela de São Conrado, a comissão já informara o desaparecimento do pedreiro Amarildo de Souza à Polícia Civil, à Coordenação das UPPs.

- É preocupante essa história de um cidadão desaparecer, logo depois de ter sido levado para averiguação na polícia na sede da UPP da Rocinha. Isso demonstra a fragilidade da democracia em algumas áreas da cidade – disse Guilherme, que informou que a família depôs na Comissão de Direitos Humanos da Alerj na presença do delegado que investiga o caso, Orlando Zaccone.

O pedreiro foi visto pela última vez na noite do dia 14 de julho, após uma operação da Polícia Militar para prender 30 pessoas da comunidade suspeitas de participação no tráfico local. Testemunhas dizem que ele entrou na sede da UPP, mas não saiu. A entrada foi filmada, enquanto, na saída, de acordo com a polícia, as câmeras não estavam funcionando. Para o delegado Orlando Zaccone, os protestos são legítimos.

- Eles mostram que não existe vida mais importante que outra – disse Zaccone.

O caso deve ir para a Delegacia de Homicídios nos próximos dias.

A Comissão de Direitos Humanos da Alerj, com a presença do deputado Marcelo Freixo, do PSOL, reuniu-se com cúpula de segurança pública, para fazer um pedido simples: uma resposta mais densa sobre o desaparecimento de Amarildo. Nela, estiveram presentes o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, a chefe da Polícia Civil Martha Rocha e o major Paulo Henrique, da UPP da Rocinha. Mas até agora não houve nenhuma resposta convincente.

Em 2011, primeiro caso de morte de morador de UPP

O primeiro caso de morte de um morador de uma favela pacificada de que se tem notícia ocorreu em 12 de junho de 2011, dia dos namorados, no Pavão-Pavãozinho. André Ferreira, de 19 anos, saiu apressado para uma festa onde a namorada, grávida de 9 meses, o esperava. No caminho, foi abordado por policiais e, logo depois, foi encontrado nas ruas da comunidade ferido por tiros. À época, a polícia classificou o caso como um “auto de resistência”, em menção a uma possível reação brusca do jovem à abordagem. A perícia concluiu, no entanto, que o jovem foi ferido pelas costas. No mesmo dia, moradores que assistiram à cena foram às ruas protestar. Os policiais envolvidos ainda respondem em liberdade por processo referente ao caso.

A morte de André estarreceu moradores e também pessoas que trabalhavam na favela. Segundo relatos de pessoas que não quiseram se identificar, a comunidade tem uma relação difícil com a UPP instalada lá e já houve outros casos de abuso policial.

Embora André tenha sido o primeiro caso, não foi o único. Segundo informações do site da Rede contra a Violência, no morro do Fogueteiro, no Catumbi, também em junho de 2011, a comunidade delatou o assassinato do mecânico Jackson Lessa dos Santos e do adolescente Thales Pereira Ribeiro. Policiais seriam os principais suspeitos da ação.

Os moradores protestaram, mas não houve respostas. Na Fallet, ocupada pela mesma UPP do Fogueteiro, uma menina de 10 anos foi baleada na perna durante uma operação policial pouco tempo depois. E, em março de 2012, um morador de 22 anos foi alvejado por um PM que teria agido, segundo moradores, por ciúmes da namorada que mora na comunidade.

No Complexo do Alemão, o jovem Abraao Maximiano, de 15 anos, teria sido executado, sem que tenha havido investigação. A Rede contra Violência ressalta que esses são casos que se tornaram públicos. A maior parte das famílias não chega a fazer denúncias por medo.

Outras formas de violação

Não apenas conflitos com policiais terminaram em morte nas comunidades pacificadas. Um caso que se tornou conhecido entre os moradores do Morro dos Macacos, em Vila Isabel, na Zona Norte, é o do comerciante, fundador e presidente da Associação Comercial dos Macacos, Flávio Duarte de Melo, de 40 anos. Ele foi assassinado em setembro de 2012, dentro de sua padaria. Ele era considerado um colaborador da UPP e havia sido chamado, pouco tempo antes, para ser mestre de cerimônia de um casamento comunitário organizado pela unidade pacificadora. Para moradores do local, a morte foi uma resposta do tráfico ao envolvimento de Flávio com os policiais, que não encontraram suspeitos. Menos de 48 horas depois, Gilmar Campos, amigo de Russo, também foi executado. Os dois casos foram divulgados na imprensa, mas a investigação não solucionou nenhum dos dois.

Para além destes casos, há outras violações policiais em favelas pacificadas. Uma pessoa que trabalha em uma instituição no morro do Andaraí e preferiu não se identificar contou à reportagem que o comando da UPP no local têm ações de intolerância religiosa. Ao proibir músicas a partir das 22h em determinada região, o objetivo principal seria coibir os rituais realizados em terreiros da favela.

- As mortes são os fatos que mais assustam, claro. Mas até que se chegue a esse extremo, há uma série de violações de diversas naturezas acontecendo nas favelas – contou a fonte.

No Santa Marta, uma das principais reivindicações dos moradores que foram às ruas em passeata realizada no início deste mês foi a liberação do uso da quadra da própria comunidade. A UPP coordena o uso do local e coibiu eventos realizados pelos moradores.

Em outras comunidades há denúncias de que policiais entram em casas de moradores para acabar com festas, proibindo sons de funk e outras músicas. Antes que haja agressões, há princípios da dignidade humana feridos. Por mais que se saiba da dificuldade de coibir a violência nas comunidades cariocas e a atividade dos traficantes, não há justificativa para tais ações frente aos moradores.

Papa pede justiça social em UPP

Em visita ontem ao Complexo de Manguinhos, no Rio, o papa Francisco disse que o esforço de pacificação tem que ser acompanhado de justiça social. No entanto, para os moradores da região esta realidade parece não existir nem em sonho. Há três meses a equipe do Fórum Social de Manguinhos se reúne com grupos do complexo de favelas para saber, entre outras informações, como eles imaginam que seja uma comunidade segura. Mas não consegue extrair qualquer impressão.

Segundo Fransérgio Goulart, uma das lideranças dali, por falta de parâmetros, a população local sequer vislumbra este cenário. Os anos de opressão e insegurança, explica ele, embaçam a visão de quem nunca teve paz. A violação de direitos, traduzida pela truculência policial e abandono por parte do poder público, naturalizou uma situação de exceção em Manguinhos, que se reproduz em outras favelas da cidade, mesmo depois da implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs).

- Nos grupos focais com moradores que estamos realizando para produzir uma cartilha reunindo os direitos do cidadão que mora em favela, não conseguimos ter uma resposta deles de como seria uma favela segura. Simplesmente não conseguem vislumbrar sequer que uma rua iluminada possa trazer segurança. Nem em sonho parece possível imaginar uma favela mais segura – disse Fransérgio.

Por isso mesmo o sumiço recente do pedreiro Amarildo na Rocinha não causou espanto a Fransergio nem há outras lideranças de favelas que a equipe do Canal Ibase ouviu. Pelo contrário, eles reafirmaram que viver em território pacificado hoje é sinônimo de ter que lidar, diariamente, com violação de direitos por parte da polícia.

- Não me causou espanto – e acho que a ninguém que mora em favela – a história do Amarildo. Este não foi o primeiro caso suspeito em comunidades com UPP. Logo que foi implantada no Borel (2010), um rapaz foi parado em uma blitz dos policiais da UPP e ninguém mais soube dele. Foi visto pela última vez com os policiais. O Estado garantiu que os policiais de UPP seriam diferentes, mas o que vemos é que o treinamento é o mesmo de sempre. A polícia não mudou – contou Mônica Francisco, da Rede de Mulheres do Borel e do grupo Arteiras.

No Borel, como ela explica, a polícia parece não ter uma norma de conduta pois até crianças estão sendo revistadas, ferindo o artigo 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que estabelece que “é dever de todos zelar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório e constrangedor”.

Já cedo, por volta das sete da manhã, os moradores que estão levando filhos para a escola ou descendo para o trabalho se deparam com revistas de policiais. Nem idosos costumam ser poupados.

- É uma rotina de desrespeito com os moradores que o comportamento da polícia impõe. Outro dia, meu marido e filho estavam descendo do ônibus no ponto em frente à favela. Logo que saíram, tinha um policial fazendo revista de todos, de forma truculenta – observou Mônica.

Borel vive em meio a arbitrariedades

A lista de arbitrariedades no Borel não para por aí. No morro, é a UPP que tem o controle do mototáxi. Os moradores se perguntam porque o transporte tem que ser controlado pela força policial. Por que não por outra instância do Estado ou mesmo uma cooperativa organizada por meio de alguma ação do Sebrae, por exemplo?

Em Manguinhos a realidade não é diferente. Segundo Fransérgio Goulart, na favela persiste o toque de recolher não-oficial, às 23h, todos os dias, indicando que a presença de policiais da UPP ainda não deu tranquilidade à população para transformar uma rotina imposta durante anos pelo tráfico. Para fazer qualquer atividade cultural, é preciso pedir autorização do comandante da UPP.

A juventude é que mais sofre com as revistas arbitrárias e achaques em Manguinhos. Tanto é que passaram a só andar em grupo pelas ruas da comunidade como medida de proteção. Não faltam casos, segundo Fransérgio, de garotos que perderam seus CD players porque estavam ouvindo funk e policiais desligaram na marra e levaram o aparelho. Ele contou que o abuso é tamanho que policiais entram arbitrariamente na casa das pessoas sem pedir licença.

- Outro dia, próximo da minha casa, um grupo de policiais entrou na residência de uma vizinha porque queria saber o que o filho dela, que dormia, fazia da vida. O rapaz acordou e mostrou a carteira profissional. Era soldado do Exército. A polícia foi embora. Mas e se ele não fosse soldado ou não tivesse carteira de trabalho? O que aconteceria com este rapaz, arbitrariamente escolhido para uma revista pelos policiais?.

Os anos de opressão do tráfico e agora a vivência de situações desrespeitosas geram, na população das favelas cariocas, a sensação de medo:

- Quem mora em favela tem medo, originalmente. Isso tem que ser considerado em qualquer política pública. Existe muita desconfiança por parte da população. É um território que passou anos dominado pela institucionalidade do tráfico e, agora, pela da polícia dita pacificadora que segue a mesma lógica militar da polícia convencional – disse Fransérgio.

Nas últimas semanas, os debates sobre o assunto se tornaram ainda mais acalorados nas favelas cariocas, em função dos protestos que tomaram as ruas do Rio de Janeiro. Pela primeira vez, moradores estão encontrando apoio para denunciar a situação de opressão imposta pelas UPPs. Um twitaço realizado esta semana deixou a pergunta “cadê o amarildo” entre os trending topics – os tópicos mais recorrentes, segundo lista do próprio Twitter – no Brasil. O caso ganhou repercussão no país inteiro e ganhou adeptos pelo mundo.

Pela internet, a pergunta pelo paradeiro do morador já apareceu em pelo menos outras seis linguas. Amarildo se tornou um símbolo de um cotidiano onde os amarildos se proliferam. Onde estão todos eles? E para onde o Rio de Janeiro caminha nessa ótica de pacificação – sim, e com seus benefícios -, mas calcada na repressão? É o que milhares de pessoas perguntam a mais de um mês nas ruas. Sem resposta.

E cadê Amarildo?


Fonte: Site Envolverde

* Publicado originalmente no Canal Ibase.

domingo, 14 de julho de 2013

Leitores, eu vi


Escrito por  Mário Augusto Jakobskind - Rede Democrática


O Rio de Janeiro, na quinta (11),  foi palco mais uma vez da selvageria da Polícia Militar comandada por Sérgio Cabral, o governador que vive nas alturas com helicópteros utilizados por sua família nos fins de semana. Quem esteve na passeata organizada pelas centrais sindicais e prestou bem atenção pôde perceber perfeitamente a colocação em prática de uma estratégia objetivando prejudicar o movimento dos trabalhadores. A receita, já utilizada em manifestações anteriores, deveria ser investigada com todo rigor. O Ministério Público poderia se encarregar disso.

Um amigo chileno informou que o mesmo tipo de estratégia é utilizado no país andino durante as manifestações estudantis e a mídia de mercado no dia seguinte informa sobre as arruaças. Será coincidência?

No Rio de Janeiro aparecem grupos provocadores de pessoas notoriamente de classe média, alguns até com máscara protetora ou com as caras cobertas como se estivessem preparados para um confronto.

Passeata e repressão pela PMEntram de repente e em grupo, não tendo nada a ver com as manifestações. No caso da passeata das centrais sindicais, apareceram intimidando os manifestantes e na prática chamando a polícia para agir ao jogarem objetos sobre os soldados. Como se fosse algo combinado, e pode ser que o seja, a PM passou a arremessar gás lacrimogêneo e de pimenta, além da balas de borracha sobre os manifestantes. Foi o que aconteceu no final da passeata, o que impediu, como estava programado, o encerramento com discursos dos representantes sindicais.

Mas os agentes provocadores mais uma vez não foram admoestados. Saíram incólumes e não foram identificados.

Brutalidade e covardia

A PM, mais uma vez obedecendo ordens de comando, leia-se Sérgio Cabral e Mariano Beltrame, o Secretário de Segurança, passou a agir de forma brutal e a todo momento atacando indiscriminadamente com bombas contra qualquer grupo que encontrasse pela frente. Fazendo dobradinha com o batalhão de choque podiam ser vistos, facilmente reconhecidos, agentes da P2, a polícia secreta da PM em trajes civis. Para cúmulo, ainda por cima surgiu um carro de combate, mais conhecido como “caveirão”, utilizado pela PM na rotineira repressão em áreas carentes da cidade.

A mesma PM e os P2 fizeram vista grossa quando apareceram os jovens suspeitos, alguns com indumentária negra, para tumultuar a manifestação dos trabalhadores. Receberam a denominação de Black Blocs, uma suposta organização internacional que joga para o confronto. Centenas deles foram vistos intimidando as pessoas, como historicamente agem grupos de extrema direita, exatamente com o objetivo de criar fatos prejudiciais ao movimento de massa. No Chile, os provocadores fazem o mesmo.

É importante divulgar esses fatos, porque a mídia de mercado, sobretudo a Rede Globo, tanto nas manifestações anteriores como agora filmava dos helicópteros cenas de confrontos, com o visível objetivo de fazer com que a opinião pública deplorasse o que denominam de “vandalismo” . Mas onde entra a desonestidade jornalística? Exatamente pelo fato de apresentarem imagens pinçadas para dar a impressão que a passeata do movimento sindical aconteceu transformando o centro da cidade numa batalha campal.

Aí aparece a mídia de mercado utilizando o termo vândalos de uma forma manipulativa. Na verdade, vândalos foram as tropas da PM e os agentes provocadores, que, vale sempre repetir, não têm nada a ver com os trabalhadores.

Manipulação grosseira

O jornal O Globo, como sempre, também entrou pesado no circuito manipulativo, primeiro informando deliberadamente errado o número de participantes, reduzindo-os a cinco mil. Mas as próprias fotos tiradas dos helicópteros ou de andares altos dos prédios mostravam claramente um número bem maior de manifestantes. Por baixo, bem por baixo, o número ultrapassou os 30 mil, o que, para os dias atuais para um ato convocado por centrais sindicais e alguns movimentos sociais, como o MST-RJ pode ser considerado significativo.

Mas a mídia de mercado tentou descaracterizar a manifestação. Não há termos de comparação com os atos anteriores convocados nas redes sociais pelos mais diversos segmentos. Mas para a mídia de mercado, o que vale é a comparação pura e simples, sem analisar mais fatos específicos, como, por exemplo, a própria covarde e violenta ação policial ordenada exatamente com o objetivo de esvaziar os movimentos de protestos que se seguiriam a histórica quinta-feira (20 de junho).

Não podia ser diferente o noticiário de O Globo, porque historicamente o jornal da família Marinho sempre destilou ódio contra qualquer manifestação classista. Está no DNA das Organizações com o mesmo nome.

Já no início da concentração, na Candelária, houve um princípio de tumulto, desta vez por culpa única e exclusiva da PM. Testemunhas garantem que a PM achou que um manifestante sentado estava puxando um baseado e o prendeu arrastando-o pelo chão alguns metros. De nada adiantou a explicação do atônito manifestante preso. Houve uma reação natural em função da covardia. A PM, com a colaboração da mídia de mercado, informou que o manifestante foi preso porque jogou uma pedra quebrando vidro da Igreja da Candelária, quando isso aconteceu depois da prisão e da ação policial.

Repressão no Palácio Guanabara

A covarde e violenta repressão policial contra manifestantes, na prática fomentada por agentes provocadores, não se resumiu à Avenida Rio Branco e Cinelândia. Nas imediações do Palácio Guanabara, a PM utilizou também métodos repressivos violentos e covardes, que se estenderam até pelo menos um quilômetro do local onde despacha Sérgio Cabral. Nem mesmo um hospital naquele área foi poupado do gás lacrimogêneo. Numa praça (São Salvador) cerca de 500 metros do Palácio Guanabara, a PM arremessou gás lacrimogêneo atingindo pessoas que se encontravam em bares e restaurantes, inclusive crianças.

Uma semana antes, o próprio Governador dizia que os manifestantes poderiam protestar no Palácio Guanabara e não na esquina de sua residência particular, no Leblon. Depois de reprimidos, também covardemente, segundo inúmeras testemunhas de moradores da rua Aristides Espindola, os jovens que não aguentam mais Sérgio Cabral, foram ao Palácio Guanabara.

A violência policial não pode continuar impune. A responsabilidade é do comandante em chefe, Sérgio Cabral, que a todo momento justifica a truculência da PM. A Anistia Internacional já protestou e agora até a Organização das Nações Unidas (ONU) está pedindo explicação (fato ainda não divulgado) às autoridades sobre os acontecimentos ocorridos sobretudo no Rio de Janeiro.

Registro um fato: John Jeremiah Sullivan, o escritor estadunidense que participou do Flip, fará matéria especial para o New York Times Magazine, sobre os acontecimentos. Depois de ser informado sobre temas que a mídia de mercado nacional silencia, como fatos relacionados com a questão dos leilões de petróleo, as mobilizações do MST e a importância para o Brasil da democratização dos meios de comunicação, Sullivan esteve acompanhando a manifestação classista das centrais sindicais no Rio junto com o autor destas linhas. Tem material de sobra para informar aos leitores norte-americanos, como disse que faria.