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quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

O México do Nafta, da pobreza e dos baixos salários

07/01/2014- Nafta trouxe pobreza e baixos salários ao México
-Miguel do Rosário - Tijolaço

Começamos o dia com uma reportagem de ontem [06/01/2014] do Valor, que é de arrepiar os cabelos.

Não teve destaque no próprio Valor, nem terá em nenhuma outra mídia.

Foi feita, naturalmente, por repórter estrangeiro, Mark Stevenson, da Associated Press, pois duvido que algum barão da mídia permitisse que um jornalista brasileiro fosse tão ousado.

A reportagem diz, em suma, que a Nafta, o acordo comercial entre México e EUA (que inclui o Canadá também), que derrubou uma série de barreiras comerciais e trabalhistas entre os dois países, não trouxe contribuição social relevante ao México.

Ao contrário, a situação piorou. Confira os trechos abaixo:

“(…) o México é o único dos grandes países latino-americanos em que a pobreza também cresceu nos últimos anos.

Segundo a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), a pobreza caiu de 48,4% em 1990 para 27,9% em 2013 em toda a América Latina.

No México, onde estava em 52,4% em 1994, a taxa de pobreza chegou a cair para 42,7% em 2006; mas em 2012 tinha voltado a subir para 51,3%.”

“(…) os empregos do setor no México são notoriamente mal remunerados, e pouco se avançou em reduzir o fosso salarial em relação aos EUA.

(…) A média dos salários na indústria de transformação do México correspondia a cerca de 15% dos pagos nos EUA em 1997. Em 2012 esse percentual tinha aumentado para apenas 18%.

Em alguns setores, os salários praticados na China, na verdade, superaram os pagos no México.”

O Nafta corresponde a Alca, o acordo que os EUA queriam implantar em toda a América do Sul.

Foi enterrada com a eleição de Lula e outros governantes progressistas.

Agora sabemos os resultados a que ela se propunha.

Não teríamos o combate a pobreza que vimos por aqui e os EUA ficariam ainda mais ricos.

A íntegra da matéria está adiante.

Fonte:
http://tijolaco.com.br/blog/?p=12311

*****


06/01/2014 - O México conta poucos ganhos com o Nafta
- Por Mark Stevenson - Associated Press - Valor Econômico

Ao vermos um México coalhado de lojas da Starbucks, Walmart e Krispy Kreme, é difícil se lembrar de como era o país antes do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta, nas iniciais em inglês), que ampliou drasticamente as opções do consumidor e o comércio desde que entrou em vigor há 20 anos.

Embora o pacto tenha mudado o país em alguns aspectos fundamentais, ele jamais cumpriu muitas de suas promessas revolucionárias de acabar com o fosso salarial entre o México e os EUA, impulsionar o crescimento do nível de emprego, combater a pobreza e defender o meio ambiente.

A fragilidade dos sindicatos do México e a concorrência da Ásia e da América Central mantiveram os salários em níveis baixos;

- o reforço da segurança na fronteira com os EUA fechou a válvula de escape mexicana da imigração, e as cláusulas ambientais do acordo se mostraram menos potentes do que as destinadas a proteger os investidores.

O México se beneficiou com o acordo com os EUA e o Canadá em algumas áreas.

Os setores automobilístico, de produtos eletrônicos e agrícola cresceram, e bancos estrangeiros ingressaram no país, aumentando o acesso ao crédito.

Mas a maioria dos mexicanos não viu muitas vantagens em termos de renda.

Embora a classe média seja, sem dúvida, maior atualmente, o México é o único dos grandes países latino-americanos em que a pobreza também cresceu nos últimos anos.

Segundo a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), a pobreza caiu de 48,4% em 1990 para 27,9% em 2013 em toda a América Latina.

No México, onde estava em 52,4% em 1994, a taxa de pobreza chegou a cair para 42,7% em 2006; mas em 2012 tinha voltado a subir para 51,3%.

O economista Alfredo Coutiño [foto], diretor da Moody's Analytics para a América Latina, diz que "os benefícios vieram, mas talvez não na magnitude que se esperava".

Ele destaca que, "se esse acordo não tivesse sido assinado, o México estaria numa situação muito pior do que a dos últimos 20 anos".

Antes do Nafta, o México era uma economia fechada, dominada pelo Estado, que se ressentia do endividamento e dos problemas estruturais da agricultura mexicana - de baixa produtividade, em pequenas propriedades.

Isso originara uma tempestade perfeita de desemprego em massa.

O acordo comercial, a globalização e o investimento externo contribuíram, efetivamente, para criar empregos, embora mal remunerados.

Nos supermercados, os consumidores conhecem todos os produtos, desde amoras até o chai (bebida à base de chá preto, mel e leite) e o limão (em contraposição à lima mexicana) que poucos tinham experimentado antes de o tratado derrubar as barreiras comerciais e as tarifas praticadas entre México, Canadá e Estados Unidos.

Os endinheirados do México têm ampla variedade de produtos e opções para gastar, principalmente na esfera dos aparelhos eletrônicos e automóveis.

Coutiño lembra que "antes, no México, era uma questão de prestígio social ter um par de tênis importados, eles eram muito caros... Agora a maioria dos mexicanos pode ter essas coisas consideradas artigos de luxo no passado".

Os mexicanos continuam divididos: uma recente pesquisa do jornal "Universal" e da consultoria Buendía-Laredo revelou que, enquanto 50% da população aprovaria o pacto comercial se ele fosse reapresentado atualmente, cerca de 34% o rejeitariam. O restante não soube responder. A margem de erro foi de 3,5%, para mais ou para menos.

Mas não há volta.

Os três países da América do Norte estão se empenhando em aumentar seu grau de integração econômica.

Com a reforma energética recém-aprovada pelo México, que permite o investimento privado no setor petrolífero do país, eles pretendem declarar também a independência energética do continente.

O Nafta foi quase esquecido no mais recente e polêmico esforço de livre-comércio, a Parceria Transpacífico (TPP, nas iniciais em inglês), uma negociação entre 12 países, entre os quais os três do Nafta, para abrir o comércio entre a Ásia e as Américas.

A oposição ao TPP é reminiscência das previsões terríveis formuladas por ocasião das negociações em torno do Nafta, no início da década de 1990.

Na época, os opositores ao Nafta previram que milhões de postos de trabalho americanos seriam transferidos para o sul, e os grupos representativos de trabalhadores e agricultores prognosticaram um êxodo em massa da zona rural mexicana.

Mas, como afirma um relatório de 2010 do Serviço de Pesquisa do Congresso americano, "a maioria dos estudos realizados após a entrada em vigor do Nafta detectou que os efeitos sobre a economia mexicana tendem a ser, no máximo, modestos".

Do lado positivo, o comércio entre os três países aumentou grandemente, para níveis cerca de 3,5 vezes superiores aos de 1994, embora o intercâmbio dos EUA com a China e com outros países asiáticos tenha se expandido com rapidez ainda maior nas últimas duas décadas.

Um número maior de montadoras estrangeiras instalou unidades no México, que agora produz cerca de 3 milhões de veículos ao ano.

O México aumentou os postos de trabalho no setor automobilístico em aproximadamente 50% desde 1994.

Mas os empregos do setor no México são notoriamente mal remunerados, e pouco se avançou em reduzir o fosso salarial em relação aos EUA.

A média dos salários na indústria de transformação do México correspondia a cerca de 15% dos pagos nos EUA em 1997. Em 2012 esse percentual tinha aumentado para apenas 18%.

Em alguns setores, os salários praticados na China, na verdade, superaram os pagos no México.

O Nafta também não cumpriu todas as promessas no front ambiental.

O Banco de Desenvolvimento da América do Norte, parte dos acordos paralelos do tratado, gastou mais de US$ 1,33 bilhão no financiamento de projetos de tratamento de água potável, água servida e esgoto.

Mas o esgoto não tratado continua a fluir, e a qualidade do ar continua baixa em muitas comunidades fronteiriças.

As exportações dos EUA de baterias de automóveis usadas de chumbo-ácido para o México dispararam 500% entre 2004 e 2011.

Só agora as autoridades mexicanas estão começando a estudar a imposição de exigências de certificação a empresas que exportam baterias para processamento destinado a recuperar o chumbo.

O Nafta foi, porém, muito eficiente em proteger os investidores estrangeiros.

O pacto comercial instituiu grupos de arbitragem vinculantes, por meio dos quais os investidores podem contornar os tribunais com reclamações de que a regulamentação do governo afeta deslealmente seus negócios.

As queixas são muitas vezes contra a gestão dos recursos naturais ou as normas ambientais.

O México e o Canadá pagaram cerca de US$ 350 milhões em indenizações aos investidores estrangeiros, enquanto os Estados Unidos não pagaram nada.

"O processo [de arbitragem] não se assemelha ao Judiciário, não é justo e aberto", disse Scott Sinclair [foto], do Centro Canadense de Políticas Públicas Alternativas.

Fonte:
http://www.valor.com.br/internacional/3385498/mexico-conta-poucos-ganhos-com-nafta

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, pois inexistem no texto original.

Leituras afins:
- América Latina - fim de um ciclo - Elaine Tavares
- O fim de uma era - Fernando Brito
- Então, que venha do BRICS um desenvolvimento inteligente - Fabíola Ortiz
- Capitalismo sustentável, existe isso? - Eduardo Viveiros de Castro

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

O que explica a sinceridade desconcertante da Folha?

Por Paulo Nogueira, no Diário do Centro do Mundo
O jornalismo chapa branca, hoje, se pratica no interior das grandes empresas de jornalismo. Já escrevi sobre isso. Os jornalistas, lá, estão numa gaiola: só podem escrever o que os patrões querem que eles escrevam.

Isso quer dizer o seguinte: eles defendem os interesses particulares das empresas para as quais trabalham. Eles são, portanto, a voz do 1%.

Nunca foi tão claro isso. Compete aos jornalistas produzir, mecanicamente, textos, fotos, legendas, primeiras páginas e demais itens que compõem uma publicação.  Mas não pensar. Não ter ideias.

As ideias são exclusividade dos donos. Os jornalistas não podem pensar diferente deles. Ou melhor: podem. Mas não podem transformar isso em reportagens, artigos, entrevistas etc.

Não é um trabalho exatamente excitante. É mais parecido com propaganda do que com jornalismo propriamente: você vende ao seu público, como se fosse sabonete, os interesses de um pequeno grupo que fez o Brasil ser o que é, a terra da desigualdade.

Quanto isso pode durar?

É verdade que a internet abre aos jornalistas uma nova possibilidade – defender coisas que vão além dos interesses do 1%.

Mas para quem está engaiolado nas corporações o prolongamento de uma situação em que pensar é proibido pode tornar a situação mais e mais exasperante.

Entendo que isso possa explicar, ao menos em parte, o desabafo franco – e talvez suicida – da ombudsman da Folha, Suzana Singer.

Ao comentar a cobertura de uma pesquisa sobre a situação dos brasileiros, ela se referiu ao tradicional “catastrofismo” da Folha.

Os destaques dados pela Folha foram, todos eles, negativos. As más notícias estavam longe de representar o conjunto. Isso significou que foi oferecido ao leitor um quadro distorcido.

O desafio de um editor é ajudar o leitor a entender o mundo. Uma das armas, para isso, é buscar uma visão de floresta sobre as coisas, e não se limitar a uma árvore ou outra.

A Folha fez o oposto. Se conheço a vida numa redação, os editores da reportagem sobre a pesquisa acharam que, pinçando as estatísticas ruins, estavam agradando a seus patrões.

O acúmulo deste tipo de expediente pode ter esgotado a paciência da ombudsman. Catastrofismo é uma acusação séria. É desvio de caráter numa publicação. Não é um problema ocasional. É um drama no dia a dia do jornal e, sobretudo, dos seus leitores.

Outro episódio que tinha me chamado a atenção, na mesma linha, foi uma surpreendente crítica de Ricardo Noblat no site do Globo a Joaquim Barbosa. Sempre tão obediente à linha de pensamento dos Marinhos, ali Noblat foi para o lado oposto.

Cansaço? Exaustão? Frustração? Alguma preocupação com a posteridade? Problemas de consciência?

Situações extremas não podem perdurar por muito tempo. O jornalismo chapa branca que se faz hoje nas redações brasileiras – um ofício em que você faz pouco mais que beijar as mãos dos donos – é a negação do real jornalismo.

A beleza do jornalismo é dar voz a quem não tem. O jornalismo brasileiro dá voz a quem tem o monopólio da voz.

Uma hora a gaiola fica incômoda demais, por maiores que sejam os salários.

A seguir a coluna da ombudsman da Folha de S. Paulo publicada no domingo, 6/10.

Arauto das más notícias

Folha destaca apenas dados negativos da Pnad, apesar de a pesquisa ter apontado aumento de renda em 2012
A edição que a Folha fez da pesquisa Pnad, que traça anualmente um quadro social do país, é um prato cheio para quem acha que o jornal só publica más notícias. Todos os destaques pinçados no levantamento eram negativos.
O título na capa informava que "Analfabetismo e desigualdade ficam estagnados no país" (28/9). Em "Cotidiano", havia o aumento da diferença de renda entre homem e mulher, os salários inchados pela falta de mão de obra especializada e o celular como o único tipo de telefone em mais da metade dos lares. A análise dizia que o resultado da pesquisa pode significar "o fim da década inclusiva".
Outros jornais optaram por manchetes do tipo uma no cravo outra na ferradura: "Renda média sobe, mas desigualdade para de cair" ("O Globo"), "Analfabetismo para de cair no país; emprego e renda sobem" ("Estado"), "Em todas as regiões houve aumento de renda, mas a desigualdade ficou estagnada" (Jornal Nacional).
Com seu característico catastrofismo, a Folha fez uma leitura míope da pesquisa, que é muito importante pela sua abrangência -são 363 mil entrevistados respondendo sobre escolaridade, trabalho, moradia e acesso a bens de consumo.
O dado mais surpreendente era que a renda do brasileiro cresceu em 2012, ano em que o PIB subiu apenas 0,9%. Na Folha, esse fenômeno só foi citado no meio de uma reportagem sobre a desigualdade.
Coube ao colunista Vinicius Torres Freire, no dia seguinte, chamar a atenção para o fato de que o Brasil estava mais rico "e não sabíamos". "É possível dizer que a taxa de pobreza deve ter caído bem no ano passado", escreveu Freire.
Pelos cálculos de Marcelo Neri, 50, presidente do Ipea, 3,5 milhões de brasileiros saltaram a linha de pobreza em 2012. "No conjunto das transformações, foi a melhor Pnad dos últimos 20 anos", diz Neri.
A desigualdade parou mesmo de cair, mas foi porque os muito ricos (1% da população) ficaram ainda mais ricos (a renda subiu 10,8%), num ritmo mais rápido do que os muitos pobres (10% na base da pirâmide) ficaram menos pobres (ganho de renda de 6,4%). É claro que não se deve desprezar o abismo social, mas não dá para ignorar que houve uma melhora geral no ano passado, o que é um mistério a ser explicado pelos economistas.
Se o jornal subestimou o dado da renda, deu espaço demais para o fato de o analfabetismo ter parado de cair. Teve nesse ponto a companhia dos outros jornais e da TV.
Depois de 15 anos de queda contínua, a taxa de analfabetismo variou de 8,6% para 8,7%. A diferença, irrisória, pode ser apenas uma flutuação estatística. Nem o fato de a taxa ter parado de cair é importante, segundo os especialistas.
Os analfabetos brasileiros concentram-se, principalmente, na faixa etária mais alta (60 anos ou mais). Os mais velhos, que não tiveram acesso à escola na infância, são mais difíceis de serem alfabetizados. "Entre os jovens, a proporção de analfabetos continua caindo. A conclusão é que, embora nossa educação tenha muitos problemas, este não é um deles", explica Simon Schwartzman, 74, presidente do Iets.
O destaque dado à diferença entre a remuneração de homens e mulheres também foi descabido. Em 2011, a brasileira recebia 73,7% do salário de um homem. No ano passado, era 72,9%.
Além de não ser uma variação muito significativa, pode ser um problema amostral. "As mulheres não estão necessariamente ganhando menos do que os homens. Se elas já têm uma renda média menor, basta crescer a participação feminina no mercado de trabalho para aumentar a diferença entre os sexos", afirma Marcio Salvato, 44, professor de economia do Ibmec.
Entre os bens de consumo, o jornal destacou o celular e as motos. Wasmália Bivar, 53, presidente do IBGE, ressalta a máquina de lavar roupa, presente em 55% das casas. "Para a vida das famílias mais pobres, é um bem de grande significado, porque dá mais tempo livre para as mulheres."
Não é fácil escolher o que há de mais relevante em uma pesquisa extensa como a Pnad, mas não dá para adotar o critério dos piores números. O jornalismo deve ter como primeira preocupação o que vai mal, apontar os problemas, só que o necessário viés crítico não pode impedir que se destaque o que é de fato o mais importante.

sábado, 31 de agosto de 2013

Severinas: as novas mulheres do sertão

29/08/2013 - por Eliza Capai (*), para a Agência Pública (**)
- extraído do site Envolverde

Cada um tem que saber o seu lugar: a mulher tem qualidade inferior, o homem tem qualidade superior.”

É bem assim que fala, sem rodeios, um dos homens mais respeitados do município de Guaribas, no sertão do Piauí, pai de sete filhos (seis mulheres e um homem). “O homem é o gigante da mulher”, completa “Chefe”, como é conhecido Horacio Alves da Rocha na comunidade.

Para chegar a Guaribas são dez horas desde a capital, Teresina, até a cidadezinha de Caracol. Dali, 40 minutos de estrada de terra cercada de 
caatinga até o jovem município, fundado em 1997.

Titulares do Bolsa Família, as sertanejas estão começando a transformar seus papéis na família e na sociedade do interior do Piauí e se libertando da servidão ao homem, milenar como a miséria.

Em 2003, Guaribas foi escolhida como piloto do programa Fome Zero. Tinha então o segundo pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do Brasil, 0,214 – para efeito de comparação, o país com pior IDH do mundo é Burundi, na África com índice 0,355.

Hoje, Guaribas tem 4.401 habitantes, 87% deles recebendo o Bolsa Família. São 933 famílias beneficiadas, com renda média mensal de R$ 182. 

O IDH saltou para 0,508.
Em todo o Brasil, o Bolsa Família atende a 13,7 milhões de famílias – sendo que 93,2% dos cartões estão em nome de mulheres. São elas que recebem 
e distribuem a renda familiar.

Eu vivi a escravidão”, diz Luzia Alves Rocha, 31 anos, uma das seis filhas de Chefe. Aos três meses, muito doente, ela foi dada pelo pai para os avós criarem. Quando eles morreram, uma tia assumiu a menina. “Achei que ela não ia aguentar aquela vida de roça: era vida aquilo?”, pergunta a tia Delci.

Luzia trabalhou na roça, passou fome, perdeu madrugadas subindo a serra para talvez voltar com água na cabaça. “Quando tinha comida a gente comia, se não, dormia igual passarinho”, diz. Trabalhava sem salário, sem nenhum direito trabalhista, sem saber como seria a vida se a seca não passasse e a chuva não regasse o feijão e a mandioca. Era “a escravidão”.

Luzia Alves Rocha, 31 anos, fez laqueadura depois do segundo filho: “Se não a vida ia ser mais pior”, explica. Num outro momento, ela comemora: “Minha filha hoje já alcançou coisas que eu não alcancei.

Quando a seca piorou, Luzia pensou em migrar para São Paulo. Foi então que chegou o programa social do governo: “Com esta ajudinha já consigo levar”, diz. Luzia decidiu ficar em Guaribas. Os filhos estudam. O marido e ela cuidam da roça.

A libertação da ‘ditadura da miséria’ e do controle masculino familiar amplo sobre seus destinos permite às mulheres um mínimo de programação da própria vida e, nesta medida, possibilita-lhes o começo da autonomização de sua vida moral. O último elemento é fundante da cidadania”, analisam os pesquisadores Walquiria Leão Rego e Alessandro Pinzani, da Universidade de Campinas e da Universidade Federal de Santa Catarina, no livro Vozes do Bolsa Família: Autonomia, dinheiro e cidadania.

Durante a pesquisa, eles ouviram beneficiários do programa observando as transformações decorrentes do Bolsa-Família – em especial na vida das mulheres. Chegaram à conclusão que a mudança é grande: “Quando você tem um patamar de igualdade mínimo, você muda a sociedade. Claro que as coisas não são automáticas. Isto não pode ser posto como salvação da nação, mas é um começo.

Luzia conseguiu realizar o sonho de diversas das mulheres ouvidas pela socióloga Walquiria Leão. Ela juntou R$ 50 e seguiu para o hospital da cidade vizinha, de São Raimundo Nonato para fazer laqueadura das trompas: “se tivesse mais filho a vida ia ser mais pior”.

Segundo Walquíria, o desejo de controlar a natalidade foi manifestado por diversas das mulheres que ela entrevistou entre 2006 e 2011 em Alagoas, Vale do Jequitinhonha, Piauí, Maranhão e Pernambuco.

Serena, uma das filhas de Luzia, tem 8 anos e está na terceira série. Ela ajuda a arrumar a casa, já sabe cozinhar, ajuda na roça. Mas não perde suas aulas. Logo depois de cantar o alfabeto e os números, diz que quer ser “advogada e médica”. Quando perguntada sobre casamento, a pequena afirma, com a mão na cintura: “eu não vou casar, vou ser sol-tei-ra…”, diz, demorando nas sílabas.

Em maio o valor do Bolsa Família de Luzia saltou de R$ 70 reais para R$ 212. A mãe comemora: “Agora já posso comprar as coisas para minha filha: a sandália dela arrebentou e pude comprar outra”. No pé da menima, o calçado que custou R$ 7,50. “Primeiro comprei para a menina, num outro mês compro pra mim”, explica Luzia, com os pés descalços.

“Minha sina”
Do outro lado do vale que liga o centro de Guaribas ao bairro Fazenda, Norma Alves Duarte, 44 anos, vive numa casa de dois quartos. Na sala, paredes mal rebocadas mostram as marcas da massa corrida. No canto, um pequeno móvel com uma TV.

A vida toda ela ajudou a mãe doente, quase não estudou – cursou até a segunda série. Como todas as mulheres dali, as atividades de criança incluíam colher feijão, pegar lenha e buscar água no olho d’água, que fica a dois quilômetros.

Norma Alves Duarte, 44 anos, depois de falar que é casada com homem vaidoso e bebedor, emenda: “Fazer o que né? Destino é destino: quem traz uma sina tem que cumprir.

Norma tem 12 irmãos, 2 filhos e vive com o segundo marido – o primeiro a abandonou depois de 20 dias. “Era pau e cachaça. Aí depois arrumei o pai 
destes meninos. É bom mas é doido, vaidoso o velho, bebedor… Ele é bruto demais, ignorante que só. Fazer o que né? Destino é destino: quem traz uma sina tem que cumprir.”

“Esta palavra, sina, faz parte do que nós chamamos de cultura da resignação e acho que ela foi de fato rompida com o Bolsa Família”, diz a socióloga Walquiria Leão.

No início do programa, Norma ganhava R$ 42 com seu cartão. Agora “tira” R$ 200. “Mudou, porque eu pego meu dinheirinho, compro minhas coisas, assim mesmo ele (o marido) xingando. Eu não dou ele, ele tem o dele. Ele não me dá nenhum real, bota para comer dentro de casa mas não me dá nem um real, nem dez centavos.”

Para Walquíria Leão, “a renda liberta a pessoa de relações privadas opressoras e de controles pessoais sobre sua intimidade, pois a conforma em uma função social determinada, permitindo-lhe mais movimentação e, portanto, novas experiências”.

Mais divórcios
Ao saírem da miséria, “da espera resignada pela morte por fome e doenças ligadas à pobreza”, nas palavras de Walquiria, estas mulheres começam a 
protagonizar suas vidas.

Elenilde Ribeiro, 39 anos, vive em Cajueiro, bairro de Guaribas onde a água ainda não chegou mas o Bolsa Família já: “Tiro R$ 134 no meu cartão mas para mim está sendo mil.”

No vilarejo de Cajueiro, a uma hora do centro de Guaribas por uma estrada de terra esburacada, a água ainda não chegou às casas. Elenilde Ribeiro, 39 anos, caminha com a sobrinha por um areial com a lata na cabeça, outra na mão. É ela quem cria a menina. “Não quero que ela sofra como eu sofri”, diz.

Chegando na casa, o capricho se mostra nos paninhos embaixo de copos metálicos, na estante com fotos de família, o brasão do Palmeiras, e um gato de louça ao lado da imagem de Jesus. Do lado de fora, o banheiro – onde se usa caneca e penico –, um pátio bem varrido, uma horta suspensa, e uma pilha de lenha que Elenilde mesma coleta e quebra, apontando: “está aqui meu botijão de gás”.

Os olhos de Elenilde marejam quando conta ter sido abandonada pelo marido há treze anos, mas seu tom de voz muda ao falar do papel da renda em sua vida. “Tiro R$ 134 no meu cartão Bolsa Família mas para mim está sendo mil. Porque com este dinheirinho eu tenho o dinheiro certo para comprar (na venda) e o dono me confia. E eu sei que com isso, com ele me confiar, eu já estou comendo a mais”, explica.

Elenilde também se livrou de trabalhar na roça dos outros em troca de uma diária de R$ 5. “Eu quando pego o meu dinheiro (do cartão) vou na venda, pago a conta mais velha e espero pela vontade do vindião, aí ele vai e me franqueia… E eu vou e compro de novo”.

Segundo Walquíria Leão, isso tem ajudado a mulher a conquistar um novo papel na comunidade. “A experiência anterior de vida era sempre de ser desrespeitada, desconsiderada porque ela não tinha dinheiro”.

No final da mesma rua, Domingas Pereira da Lima, 28 anos, não se arrepende de ter abandonado o marido. “Ele ficava namorando com uma e com outra e eu num resisti, vim embora”.

Prendendo o choro, ela continua: “Deixava eu com as crianças e se tacava no meio do mundo. A vida não é fácil mas vou levando a vida devagarzinho aqui.” Desde então, Domingas cuida dos quatro filhos com o apoio das irmãs e da mãe.

Em 2003, quando chegou o Fome Zero, foram solicitados 993 divórcios no Piauí. Em 2011 o número saltou para 1.689 casos. Dos casos não consensuais, 134 foram requeridos por mulheres em 2003; em 2011 esse número saltou para 413 – um aumento de 308%.

Ainda assim, na pequena Guaribas, a mulher ficar presa em casa em dias de festa, o alcoolismo e a infidelidade masculina são histórias contadas com naturalidade. “Vixi, aqui se conta nos dedos as mulheres que não apanham do marido”, é comum as mulheres dizerem.

Na delegacia da cidadezinha, o delegado explica que por ali o clima é sempre “muito tranquilo, sem nenhuma ocorrência. Só umas brigas de casal, coisa que a gente aconselha e eles voltam” diz.

Mirele Aline Alves da Rocha é uma das que se conta nos dedos. Aos 18 anos, a bonita jovem explica: “Apesar da minha idade já ser avançada para os daqui, eu não estou nem aí para o que eles falam. Eu quero é estudar”.

A maioria das amigas se casaram aos 13 anos. Já Mirele, solteira, cursa o 
terceiro ano do Ensino Médio na escola estadual de Guaribas, onde vive com a tia – os pais moram no município de Cajueiro.

O cartão do Bolsa Família está no nome da mãe, que recebe R$ 102 por Mirele e pelo caçula de nove anos. Ambos estudam. “Eu vejo a realidade da minha mãe e não quero seguir pelo mesmo caminho. Eu quero estudar para ter um futuro, para ser independente, para não ficar dependendo de um homem”, decreta a jovem.

No primeiro bimestre de 2013, em Guaribas, a frequência escolar atingiu o percentual de 96,23%, para crianças e adolescentes entre 6 e 15 anos –
o equivalente a 869 alunos – e 82,29% para os jovens entre 16 e 17 anos, de um total de 175.

Mirele vai fazer o Enem e “ver o que dá”. Para cursar faculdade ela terá que sair de Guaribas mas planeja se graduar e voltar: “Gosto mesmo é daqui”.

Nunca é demais lembrar que nossa pobreza não é um fato contingente, mas deita raízes profundas na nossa história e na forma de conduzir politicamente as decisões estatais”, avalia Walquiria.

O Bolsa Família deveria se transformar em política publica, não mais política de um governo”.

É um processo, um avanço que mal começou. E ainda é muito insuficiente. Mas quem narra uma história tem que ser capaz de narrar todos os passos desta história”, finaliza.

(*) Eliza Capai é documentarista independente, autora do filme Tão Longe é Aqui. Esta reportagem foi realizada através do Concurso de Microbolsas de Reportagem da Pública.

(**) Publicado originalmente no site Agência Pública.

Fonte:
http://envolverde.com.br/sociedade/severinas-as-novas-mulheres-do-sertao/

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Brasil trabalha para acelerar a cooperação Sul-Sul

O Brasil tem usado sua força crescente para forjar laços com outros países no sul global. O país apoia, por exemplo, o desenvolvimento de uma estação experimental de algodão no Mali, uma estação de arroz no Senegal, um centro de ensino profissionalizante e um programa de segurança alimentar no Timor Leste e a produção de soja em Cuba. Apoiador da iniciativa, secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon diz que a Cooperação Sul-Sul é um componente vital para a resposta do mundo à luta contra a pobreza e a fome em todo o mundo.

Thalif Deen - AlJazeera

         Como uma das potências nacionais economicamente emergentes do mundo, o Brasil está perseguindo vigorosamente os objetivos do milênio da agenda para o desenvolvimento da ONU: a cooperação Sul-Sul.
         A Agência de Cooperação Brasileira está participando atualmente de uma série de projetos econômicos, a maior parte no setor agrícola, em mais de 80 países em desenvolvimento na África, na Ásia, na América Latina e no Caribe.
         Os projetos envolvem empreendimentos nas áreas de pecuária e pescaria, horticultura e produção de alimentos.
         O Brasil está apoiando o desenvolvimento de uma estação experimental de algodão no Mali, uma estação de arroz no Senegal, um centro de ensino profissionalizante e um programa de segurança alimentar no Timor Leste e a produção de soja em Cuba.
         Além disso, está fornecendo expertise tecnológica e assistência no desenvolvimento da tecnologia agrícola no Haiti, um centro vocacional no Paraguai e a criação e consolidação do Instituto de Agricultura e a Pecuária na Bolívia.
         Só em 2010 o Brasil assinou 21 acordos internacionais com uma única organização regional, a Comunidade Caribenha (CARICOM), juntamente a acordos bilaterais com a Jamaica, a Guiana, o Suriname e o Haiti.
         Os seis ministros brasileiros envolvidos nas iniciativas Sul-Sul de cooperação são os ministros do Desenvolvimento Agrário, do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; da Pesca; do Meio Ambiente; da Agricultura, Pecuária e Fornecimento e das Relações Exteriores.
         O papel do Brasil, no entanto, tem adquirido importância suplementar como um dos três parceiros, junto a Índia e a África do Sul, numa das coalizões mais vibrantes das nações em desenvolvimento: IBAS.
         O embaixador Gilberto Moura, diretor do Departamento de Mecanismos Inter Regionais disse que a identidade do IBAS é fortemente comprometida com a promoção do desenvolvimento não apenas dentre os seus membros, mas também no mundo em desenvolvimento como um todo.
         O Fórum IBAS, ele disse, apoia as nações em desenvolvimento por meio do Fundo IBSA de Facilitação para redução da pobreza e da fome. O fundo foi criado pelos três chefes de Estado do IBAS durante a sessão da Assembleia Geral da ONU em setembro de 2003.
         Moura disse que cada um dos países do IBAS doa 1 milhão de dólares por ano e esses recursos são usados para implementar projetos de cooperação para os países em desenvolvimento, especialmente os menos desenvolvimentos e aqueles em recuperação de conflitos.
         Essas iniciativas, ele anotou, conformam-se a alguns dos princípios da cooperação Sul-Sul, inclusive no que concerne ao fortalecimento das capacidades nacionais, na participação de acionistas nacionais bem como na promoção da aquisição nacional de empresas e na sua sustentabilidade.
         O secretário geral da ONU Ban Ki-moon, um forte apoiador da Cooperação Sul-Sul, disse que os países em desenvolvimento que reúnam know-how, troquem ideias e coordenem planos que possam gerar ganhos maiores do que se atuarem por conta própria.
         Ele diz que a Cooperação Sul-Sul é um componente vital para a resposta do mundo à luta contra a pobreza e a fome em todo o mundo.
         Helen Clark, a administradora do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que assinou um acordo no ano passo reforçando as atividades de sua agência no Brasil assinala que o PNUD está “comprometido com a facilitação da cooperação Sul-Sul, e pretende trabalhar mais proximamente do Brasil em programas ao redor do mundo”.
         Os projetos do IBAS financiados por três países incluem um complexo de esportes em Ramallah, nos territórios palestinos ocupados; um projeto sólido e amplo de arrecadação para o Haiti e a reconstrução de duas unidades de saúde em locais geograficamente isolados, no Cabo Verde.
         Moura disse que o fundo concluiu quatro projetos (no Cabo Verde, na Guiné-Bissau, no Haiti e na Palestina); está gerindo quatro (Burundi, Cabo Verde, Camboja e Guiné-Bissau) e tem sete para iniciar (dois na Guiné-Bissau, um no Laos, dois na Palestina ocupada, um em Serra Leoa e um no Vietnã).
         Outros projetos estão sendo analisados para aprovação no momento apropriado, inclusive para o Sudão, o Sul do Sudão e o Timor Leste, acrescentou.
         Questionado a respeito de áreas específicas sob o âmbito do IBAS, Moura disse que todas as atividades dentro do IBAS exigem engajamento ativo dois três países membros.
         Atualmente, o secretariado informal e rotativo, que coordena os encontros, está sob a responsabilidade da África do Sul, que sediará a próxima cúpula presidencial em Outubro, próxima a Durban.
         Antes dessa cúpula o Brasil sediará um seminário sobre Sociedade da Informação no Rio de Janeiro, nos dias 1° e 2 de setembro próximo. A sociedade civil foi convidada a participar num encontro paralelo à cúpula.
         Até agora sete encontros da sociedade civil foram anunciados: o Fórum das Mulheres, o Fórum dos Editores, o Fórum Acadêmico, o Fórum Parlamentar, o Fórum dos Pequenos Negócios, o Fórum dos Presidentes Executivos de Grandes Empresas e o Fórum de Autoridades Locais.
         Perguntado a respeito das áreas específicas de cooperação, Moura disse que esses campos estão sendo desenvolvidos por meio de 16 grupos de trabalho existentes.
         Eles cobrem diferentes áreas: administração de receita, administração pública, agricultura, turismo, assentamentos humanos, ciência e tecnologia, comércio, cultura, defesa, desenvolvimento social, educação, energia, meio ambiente, saúde, sociedade da informação e transporte.
         As ações desses grupos de trabalho fortalecem a troca de experiências e o desenvolvimento de iniciativas comuns, disse Moura.
         No campo da ciência e tecnologia, o IBAS tem desenvolvido um programa, intitulado IBASOCEAN, envolvendo cientistas de todos os três países. “Eles também estão trabalhando na construção de um satélite do IBAS”, acrescentou.
         No comércio tem havido forte colaboração com os Serviços da Receita Federal para facilitar trocas comerciais através da instituição de uma rede segura e protegida linha de comércio para operadores econômicos autorizados.
         Os esforços para normalizar as regras de comércio estão a cargo do grupo de trabalho para o comércio. No campo da saúde, ele disse, as delegações do IBAS na Organização Mundial da Saúde tem sido o de trabalhar conjuntamente num vasto espectro de resoluções.
         Tradução: Katarina Peixoto



sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

OBRIGADO, LULA

Frei Betto*
Nunca antes na história deste país um metalúrgico havia ocupado a presidência da República. Quantos temores e terrores a cada vez que você se apresentava como candidato! Diziam que o PT, a ferro e fogo, implantaria o socialismo no Brasil.

Quanta esperança refletida na euforia que contaminou a Esplanada dos Ministérios no dia de sua posse! Decorridos oito anos, eis que a aprovação de seu governo alcança o admirável índice de 84% que o consideram ótimo e bom. Apenas 3% o reprovam.

O Brasil mudou para melhor. Cerca de 20 milhões de pessoas, graças ao Bolsa Família e outros programas sociais, saíram da miséria, e 30 milhões ingressaram na classe média. Ainda temos outros 30 milhões sobrevivendo sob o espectro da fome e quem sabe o Fome Zero, com seu caráter emancipatório, a tivesse erradicado se o seu governo não o trocasse pelo Bolsa Família, de caráter compensatório, e que até hoje não encontrou a porta de saída para as famílias beneficiárias.

Você resgatou o papel do Estado como indutor do desenvolvimento e, através dos programas sociais e da Previdência, promoveu a distribuição de renda que aqueceu o mercado interno de consumo. O BNDES tornou as grandes empresas brasileiras competitivas no mercado internacional. Tomara que no governo Dilma seja possível destinar recursos também a empreedimentos de pequeno e médio porte e favorecer nossas pesquisas em ciência e tecnologia.

Enquanto os países metropolitanos, afetados pela crise financeira, enxugam a liquidez do mercado e travam o aumento de salários, você ampliou o acesso ao crédito (R$ 1 trilhão disponíveis), aumentou o salário mínimo acima da inflação, manteve sob controle os preços da cesta básica e desonerou eletrodomésticos e carros. Hoje, 72% dos domicílios brasileiros possuem geladeira, televisor, fogão, máquina de lavar, embora 52% ainda careçam de saneamento básico.

Seu governo multiplicou o emprego formal, sobretudo no Nordeste, cujo perfil social sofre substancial mudança para melhor. Hoje, numa população de 190 milhões, 105 milhões são trabalhadores, dos quais 59,6% possuem carteira assinada. É verdade que, a muitos, falta melhor qualificação profissional. Contudo, avançou-se: 43,1% completaram o ensino médio e 11,1% o ensino superior.

Na política externa o Brasil afirmou-se como soberano e independente, livrando-se da órbita usamericana, rechaçando a ALCA proposta pela Casa Branca, apoiando a UNASUL e empenhando-se na unidade latino-americana e caribenha. Graças à sua vontade política, nosso país mira com simpatia a ascensão de novos governantes democráticos-populares na América Latina; condena o bloqueio dos EUA a Cuba e defende a autodeterminação deste país; investe em países da África; estreita relações com o mundo árabe; e denuncia a hipocrisia de se querer impedir o acesso do Irã ao urânio enriquecido, enquanto países vizinhos a ele, como Israel, dispõem de artefatos nucleares.

Seu governo, Lula, incutiu autoestima no povo brasileiro e, hoje, é admirado em todo o mundo. Poderia ter sido melhor se houvesse realizado reformas estruturais, como a agrária, a política e a tributária; determinado a abertura dos arquivos da ditadura em poder das Forças Armadas; duplicado o investimento em educação, saúde e cultura.

Nunca antes na história deste país um governo respaldou sua Polícia Federal para levar à cadeia dois governadores; prender políticos e empresários corruptos; combater com rigor o narcotráfico. Pena que o Plano Nacional dos Direitos Humanos 3 – quase um plágio dos 1 e 2 do governo FHC –tenha sido escanteado por preconceitos e covardia de ministros que o aprovaram previamente e não tiveram a honradez de defendê-lo quando escutaram protestos de vozes conservadoras.

Espero que o governo Dilma complemente o que faltou ao seu: a federalização dos crimes contra os direitos humanos; uma agenda mais agressiva em defesa da preservação ambiental, em especial da Amazônia; a melhoria do nosso sistema de saúde, tão deficiente que obriga 40 milhões de brasileiros a dependerem de planos de empresas privadas; a reforma das redes de ensino público municipais e estaduais.

Seu governo ousou criar, no ensino superior, o sistema de cotas; o ProUni e o ENEM; a ampliação do número de escolas técnicas; maior atenção às universidades federais. Mas é preciso que o governo Dilma cumpra o preceito constitucional de investir 8% do PIB em educação.

Obrigado, Lula, por jamais criminalizar movimentos sociais; preservar áreas indígenas como Raposa Serra do Sol; trazer Luz para Todos. Sim, sei que você não fez mais do que a obrigação. Para isso foi eleito. Mas considerando os demais governantes de nossa história republicana, tão reféns da elite e com nojo do “cheiro de povo”, como um deles confessou, há que reconhecer os avanços e méritos de sua administração.

Deus permita que, o quanto antes, você consiga desencarnar-se da presidência e voltar a ser um cidadão militante em prol do Brasil e de um mundo melhor.
*Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Marcio Pochmann: Brasil poderia ter superado pobreza há 20 anos

Nota do EDUCOM: o governo pode estar perdendo um de seus melhores quadros...

Dayanne Sousa, do Terra Magazine
Pochmann, presidente do Ipea. Foto: A. Cruz/ABr
Se as políticas de desenvolvimento social tivessem acompanhado o crescimento da economia há décadas, a pobreza estaria extinta há pelo menos 20 anos, pondera o economista Marcio Pochmann. O presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) avalia que a presidente Dilma Rousseff tem condições de cumprir sua principal promessa de campanha: superar a miséria.

Um estudo do Ipea divulgado no início do ano prevê que a pobreza extrema seja erradicada no Brasil até 2016.
- A possibilidade de superarmos a pobreza é algo que faz parte da agenda de superação do próprio subdesenvolvimento. O que nós estamos vendo agora é um avanço mais rápido do padrão social e por isso que o Brasil consegue ter esse indicativo de superação da pobreza nos próximos cinco ou seis anos.

Em entrevista a Terra Magazine, Pochmann destaca o desenvolvimento dos últimos anos e os programas sociais do governo Lula.
- Eu acho que nós só podemos comparar o desempenho brasileiro deste ano com o que nós vivenciamos na primeira metade da década de 70, com o chamado Milagre Econômico. Mas esse crescimento de agora tem distribuição de oportunidades.

Apesar dos elogios, ele acredita que Dilma terá desafios maiores. Entre eles, lidar com novas características da economia como o aumento da população idosa e o crescimento da importância do setor de serviços. Além disso, o ministro da Fazenda, Guido Mantega - que continuará na pasta -, já anunciou a necessidade de cortes nos gastos públicos nos próximos anos.

Para Pochmann, o corte deve ser nos gastos improdutivos, como os provocados pelos altos juros.
- Nós vínhamos num ritmo bastante acelerado, crescendo acima de 7% ao ano. E possivelmente teremos um crescimento menor para 2011. Ao redor de 5%, o que já é bastante grande olhando o período recente do Brasil. Uma coisa é o custeio, outra coisa é o investimento. Espero que essas decisões considerem o teor do investimento, que é crucial.

Leia a entrevista na íntegra.

Terra Magazine - A ascensão social e o crescimento da classe C nos últimos anos foram destacados no governo Lula. A que isso se deve?
Marcio Pochmann - Se nós olharmos ao longo do século 20, o Brasil foi uma das nações que mais cresceu do ponto de vista econômico, ampliando a base material que permitiu que deixássemos de ser um país agrícola e nos transformássemos num país industrial. A despeito desse avanço econômico, os avanços sociais foram relativamente pequenos quando a gente olha o conjunto da população. O Brasil não fez o conjunto das reformas que os outros países fizeram, não fez reforma agrária, não fez reforma social, não fez reforma tributária. É natural que sem essas reformas não pudessem ser mais bem distribuídos os ganhos que o Brasil obteve. Apesar dessa característica de um processo muito concentrador, nós sempre tivemos uma forte mobilidade social. É uma característica do capitalismo brasileiro. Mas nas décadas de 80 e 90 essa mobilidade foi reduzida. Era cada vez mais difícil que os filhos de classe média conseguissem reproduzir o padrão de seus pais. O que nós temos nesta primeira década do século 21 é a forte mobilidade social. O desafio do próximo governo é como abrir as oportunidades não apenas para a base da pirâmide social, mas também acima dos níveis intermediários.

Como assim?
Isso depende não apenas do crescimento da economia, mas do tipo e da natureza do crescimento. Porque crescer é importante, mas depende do tipo. O desenvolvimento fundado na produção de commodities permite a economia crescer, mas as oportunidades, a qualidade das ocupações é diminuta. A expansão de setores de maior valor agregado pode permitir a contratação de pessoas com salários maiores.

No final de 2009, o senhor disse em entrevista a Terra Magazine que 2010 seria o melhor ano para o Brasil. Foi, de fato?
Eu acho que nós só podemos comparar o desempenho brasileiro deste ano com o que nós vivenciamos na primeira metade da década de 70, com o chamado Milagre Econômico. Só que esse desempenho de 2010 é diferente daquele. Nós crescemos um pouco menos, mas esse crescimento de agora tem distribuição de oportunidades. Com saída da pobreza de parcela significativa da população e ampliação das oportunidades escolares. Um país que está crescendo sem depender do mercado externo, contrário do que era no Milagre Econômico. É muito mais saudável o que está acontecendo neste ano de 2010. Especialmente pelo número de empregos formais, que é uma coisa impressionante.

A presidente Dilma fez uma promessa de erradicar a miséria. Isso é possível? Como?
Quando nós falamos em nova classe média no Brasil, causamos a falsa impressão de que se trata de uma classe média com padrão de vida europeu. Isso não é verdade, estamos num país que carrega as condições de um país subdesenvolvido. A possibilidade de superarmos a pobreza é algo que faz parte da agenda de superação do próprio subdesenvolvimento. É estranho que o Brasil - já sendo a oitava economia do mundo na década de 70 - tivesse 40% da sua população vivendo na condição de pobreza. Nós poderíamos ter superado a pobreza há 20 anos. É bastante peculiar no Brasil o disparate entre a base material e econômica que o país possui e o padrão social. O que nós estamos vendo agora é um avanço mais rápido do padrão social e por isso que o Brasil consegue ter esse indicativo de superação da pobreza nos próximos cinco ou seis anos. Isso é viável. É evidente que precisa crescer e sofisticar melhor as políticas sociais, mas não é impossível.

E quais os desafios, então?
Cada vez mais a gente vem enfrentando a nova pobreza. Ela é caracterizada, em primeiro lugar, pela transição demográfica que nós estamos vivendo. Um processo acelerado de envelhecimento dos brasileiros. Infelizmente o Brasil ainda não está preparado para lidar com uma parcela significativa da população em condição de pobreza. Temos 3 milhões de pessoas com mais de 80 anos e em 2030 pode ter cerca de 20 milhões de pessoas com 80 anos ou mais. Isso significa considerar um fundo público de políticas nesse segmento e políticas de saúde nessa direção. Também estamos vivendo uma transição do ponto de vista da organização da economia, que está cada vez mais centrada nos serviços. Isso não quer dizer que a indústria e a agricultura não sejam importantes, mas nós vamos gerar emprego é no setor de serviços. Isso pressupõe uma nova forma de olhar essas ocupações, pressupõe olhar o conhecimento como a principal forma de manejo. E nós temos problemas sérios na educação.

A necessidade já anunciada pelo ministro Guido Mantega de fazer cortes nos gastos públicos pode prejudicar os investimentos na área social?
Nós vínhamos num ritmo bastante acelerado, crescendo acima de 7% ao ano. E possivelmente teremos um crescimento menor para 2011. Ao redor de 5%, o que já é bastante grande olhando o período recente do Brasil. Uma coisa é o custeio, outra coisa é o investimento. Espero que essas decisões considerem o teor do investimento, que é crucial uma vez que o investimento é a melhor política para conter a inflação. O investimento permite ampliar a capacidade produtiva gerando mais produtos e serviços e evitando uma inflação de demanda.

O senhor acha que seja necessário reduzir os gastos públicos?
Sim. Se olharmos o gasto como um todo, incluída a despesa com juros, eu não tenho dúvida. Nós temos todas as condições de reduzir a despesa pública, especialmente aquela que é improdutiva para o país: a despesa com os juros. O Brasil está gastando de 5% a 6% do PIB. Isso é um gasto elevadíssimo, um absurdo.

A economia já cresce o suficiente para que seja possível haver ajuste fiscal sem que isso afete o crescimento da economia?
Eu acredito que nós já abandonamos essa fase de ajuste fiscal. Essa política sofreu uma derrota nas últimas três eleições. O Brasil, de uns tempos para cá, trocou o ajuste fiscal pelo desenvolvimento. O que está em jogo neste momento é: quais são as condições macroeconômicas para garantir o desenvolvimento brasileiro. As finanças públicas são o meio, não o fim. Nos anos 90, o ajuste fiscal era o fim. O governo estava organizado para o ajuste fiscal. E lamentavelmente o que nós vimos foi um aumento do endividamento público, especialmente comparado ao PIB. E o aumento da carga fiscal. Hoje o que estamos verificando é que a dívida pública caiu. E não porque teve ajuste fiscal, mas porque a produção cresceu mais rapidamente.

sábado, 27 de novembro de 2010

Segurança pra quem?

Por Silvana Sá*
Os acontecimentos dos últimos dias no Rio de Janeiro têm me levado a refletir especialmente sobre o papel da mídia nas ações e políticas de segurança do governo estadual. A todo o momento são veiculadas cenas de guerra. Em alguns pontos da cidade o caos está instalado. A Marinha e a polícia estão nas ruas com seus blindados.

O primeiro pensamento gerado por intermédio da mídia é de que a violência está instalada em todo o estado. O que não é verdade. A vida acontece normalmente em diversas partes tanto da região metropolitana, como serrana, Baixada... enfim, são conflitos localizados em pontos da cidade.

O segundo pensamento – e esse destoante do discurso pasteurizado apontado e massificado pela mídia – é que a onda de violência foi produzida pelo próprio Estado, em suas diferentes esferas, por mais de 40 anos de omissão. O único braço que o Estado se dignou a estender às comunidades sempre esteve armado. Sempre foi a polícia de repressão e apenas ela a representar o Estado nas favelas cariocas. Então, é uma questão produzida por anos de omissão.

A onda de violência que já chega ao terceiro dia e prejudica milhares, ajuda especificamente a um: ao governo estadual que agora tem ao seu lado o clamor popular para que continue a fazer o que sempre fez. O que faltava a Sérgio Cabral era ser tratado como heroi, como redentor das populações tanto das favelas quanto do “asfalto”.

Na quarta-feira, na Avenida Brasil, altura da Maré (entre as comunidades da Nova Holanda e Parque União) a polícia interceptou uma tentativa de incendiarem um ônibus. Chegaram a tempo de salvarem o coletivo. Muito bom. Acho importante. Ocorre que a população dessas comunidades ficaram reféns de tiros disparados tanto pela polícia quanto por bandidos da facção que domina aquela região. Então, quem perdeu de fato?

No Facebook, uma jornalista amiga minha e moradora da Maré escreveu na manhã de quinta: “Depois de uma noite não dormida, tiros, bombas e gritos, amanheci em cárcere privado... policiais que tentavam invadir a casa do vizinho, usaram o meu portão de escudo... eu e minha família viramos o inimigo público...”.

Pergunto: alguma coisa justifica essa política de segurança pública? Respondo: a política que aí está é apenas de resposta a mídia (inclusive internacional) para dizer que por aqui as coisas são controladas na base do cacetete e que sim, os jogos mundiais estão garantidos.

É guerra?
Fala-se muito em guerra contra o narcotráfico. Será? E se sim, em que medida? Será mesmo que são os traficantes varejistas quem controlam os bilhões de reais anuais gerados na fabricação e venda de drogas? Esse montante vultuoso de dinheiro está na Rocinha, no Complexo do Alemão, na vila Cruzeiro?

Está claro que é preciso, sim, dar um basta a essa situação. Não sou a favor de bandidos. Acho que é preciso que o Estado ocupe as comunidades, mas as comunidades não podem ser tratadas como caso de polícia! Não podem!!! Lá existem milhares de pessoas que trabalham, estudam, se dedicam a diversas atividades e que nada têm a ver com esse caos instalado. São cidadãos que, infelizmente, sempre foram tratados como “os outros”, como os que não têm direitos, como os que não podem ter acesso a bens e serviços, como se não fossem sociedade.

O que precisa é que as pessoas sejam tratadas como pessoas e não como animais que devem ser domesticados, marcados e controlados dentro de um curral. Não somos gado!
*é jornalista e atuou no Núcleo de Comunicação da Maré. Especial para o Blog EDUCOM - Aprenda a ler a mídia