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quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Créditos de carbono x o direito à terra

19/12/2013 - Projetos de carbono no Acre ameaçam direito à terra
- Por Verena Glass (*) - no site da ONG Repórter Brasil

Famílias de seringais nos rios Purus e Valparaíso sofrem restrições no manejo tradicional de agricultura para que latifundiários vendam créditos de carbono

Bacia dos rios Purus e Juruá
Uma das principais bandeiras da luta de Chico Mendes, a consolidação do direito dos seringueiros do Acre a seus territórios, continua sendo uma questão espinhosa 25 anos após a sua morte, completados neste domingo (22/12).

A falta de regularização fundiária de muitos seringais, ainda hoje áreas com alto nível de preservação ambiental, continua motivando sérios conflitos entre fazendeiros e seringueiros, mas também abre caminho para projetos de manejo da floresta que nem sempre beneficiam a população tradicional.

Problemas neste sentido têm sido relatados nos três primeiros projetos privados de crédito de carbono no Acre, propostos no contexto do Sistema de Incentivos aos Serviços Ambientais (Sisa, aprovado por lei em outubro do ano 2010) e que pretendem promover a preservação florestal e a venda de créditos de carbono através de iniciativas de REDD+ (Redução de Emissões provenientes de Desmatamento e Degradação Florestal).

Margens preservadas do rio Purus despertaram interesse pela venda de carbono.
Fotos: Verena Glass

São eles os projetos Purus, Valparaiso e Russas, que preveem restrições e até paralisação das atividades tradicionais de cultivo agrícola de famílias de seringueiros e posseiros, para que emissões assim evitadas possam ser vendidas no mercado internacional de créditos de carbono.

O Projeto Purus, idealizado pelo ex-prefeito de Sena Madureira, Normando Sales, e pelo advogado Wanderley Rosa, foi apresentado ao Instituto de Mudanças Climáticas (IMC) do Estado em junho de 2012.

Abrange cerca de 34,7 mil hectares dos seringais Porto Central e Itatinga, localizados às margens do rio Purus entre os municípios de Sena Madureira e Manoel Urbano, e onde vivem 18 comunidades de seringueiros, posseiros e pescadores.

Apresentando-se como donos dos seringais, em 2009 Sales e Rosa começaram a procurar os moradores locais – muitos dos quais vivem na área há mais de 40 anos – para discutir o projeto, e no início de 2011 propuseram a 17 famílias que firmassem um acordo [foto] pelo qual deixarão de fazer o manejo tradicional de lavouras (brocagem, a roçagem e queima de mato), caça, retirada de madeira, abertura de picadas e estradas, e qualquer outra ação de interferência na vegetação.

Para monitorar o cumprimento do acordo, seria criado um sistema de fiscalização de infrações e providências quanto à punição dos infratores.

Para viabilizar a parte econômica e técnica do projeto (que encontra-se ainda em fase de registro no IMC), foi acordado um investimento inicial com a empresa CarbonCO, LLC, subsidiária da Carbonfund.org Foundation, localizada em Bethesda, Maryland, EUA.

O inventário do carbono que deixaria de ser liberado sem os manejo tradicional dos seringueiros foi supervisionado pela empresa de consultoria TerraCarbon, LLC, de Illinois/EUA.

E a venda dos créditos de carbono resultantes será feita pela The Carbon Neutral Company, de Londres.

De acordo com os moradores dos seringais, desde o início o projeto causou desconfiança entre a comunidade.

Vários movimentos sociais do Estado, críticos às soluções de Economia Verde propostas para mitigar problemas ambientais a partir da financeirização dos bens naturais, e preocupados com possíveis violações de direitos, também questionaram a iniciativa, o que motivou uma visita da Relatoria do Direito Humano ao Meio Ambiente da Plataforma DHESCA (Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais) ao Acre entre final de novembro e início de dezembro deste ano, para verificação de eventuais problemas.

Em depoimento aos pesquisadores da relatoria, João (**), produtor de banana e morador do local há mais de 35 anos, relata: “um dia chegou aqui o Normando [Sales, dono do seringal Porto Central], e já começou ameaçando. 

Disse que aqui tudo era terra dele, mas ele nunca apresentou título do Incra. Eles chegaram com um documento para a gente assinar, desse negócio de carbono, e disse que quem assinava podia ficar na terra, quem não assinava tinha que sair”.

Em troca da assinatura, conta o seringueiro, Normando Sales prometeu que traria para a comunidade uma série de benfeitorias, como escola, posto de saúde, casas novas, barco e energia solar.

O documento mencionado (assinado por João, mas não entregue ao fazendeiro) reafirma por diversas vezes que o assinante reconhece a propriedade das terras em nome da empresa Moura e Rosa Investimentos Ltda, criada em 2009 por Normando Rodrigues Sales e Wanderley Cesário Rosa, seus diretores.

Legalmente, a empresa e a área do Projeto Purus pertenceriam a Felipe Moura Sales (filho de Normando) e Paulo Silva Cesário Rosa (filho de Wanderley).

Essa é uma das questões que mais preocupa a comunidade”, explica João, que afirma já ter dado entrada no programa Terra Legal para tentar a regularização de seu lote.

Independente disso, explica a advogada Laura Schwarz, do Centro de Memória das Lutas e Movimentos Sociais da Amazônia, que acompanha o caso, legalmente as famílias teriam direito ao usucapião da área em função do longo período de posse, mas ainda não existe nenhum o processo de regularização em andamento.

Futuro em cheque
No início de 2013, possivelmente por pressões das famílias, um relatório de execução do projeto, elaborado pelo técnico da Carbon.Co, LLC, Brian McFarland, aponta novas regras para o uso da terra.

Além de reconhecer que “existem comunidades assentadas sobre o que eram originalmente terras de propriedade privada”, o documento afirma que, “para resolver este conflito ou disputa Moura e Rosa irá reconhecer voluntariamente qualquer área desmatada e sob uso produtivo de cada família que vive no Seringal Itatinga, parcelas Seringal Porto e Central.

A área mínima a ser intitulado de cada família será de cem hectares, que é o tamanho mínimo que o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) diz que uma família no Estado do Acre necessita para uma vida sustentável.

As comunidades que desmataram e colocaram em uso produtivo mais de cem hectares receberão toda a área que foi desmatada. Todas as comunidades – que se unirem voluntariamente o Projeto Purus ou não – serão chamadas à terra que eles têm colocado em uso produtivo. Este processo será facilitado por um grupo independente, incluindo o Ministério Público do Acre”.

De acordo com a advogada Laura Schwarz, no entanto, a questão não se resolve.

Para justificar o Projeto Purus, baseado na hipótese do “desmatamento evitado” para a geração de créditos de carbono, a empresa Moura e Rosa alegou que, como proprietária, poderia converter parte da floresta dos seringais em pastagem (prevendo o corte raso de 20% de sua extensão total para acomodar de 10 a 12 mil cabeças de gado), além de desenvolver atividades madeireiras.

Numa lógica inversa e perversa, explica a advogada, criminaliza-se então o manejo tradicional dos pequenos agricultores, impondo-lhes restrições que justifiquem a venda de carbono (apesar de o próprio governo do Acre ter reconhecido que o uso do fogo é essencial na agricultura familiar de pequeno porte, e sua proibição poderia causar insegurança alimentar), e limita-se definitivamente o desenvolvimento futuro da comunidade através da restrição da área disponível.

Além da agricultura, as famílias também usam as áreas florestadas para caçar, para o extrativismo, retirada de madeira para casas ou construção de canoas.

Isso passaria a ser proibido, bem como o estabelecimento de atividades produtivas das próximas gerações. Como ficariam os filhos dos posseiros se não puderem estabelecer futuramente seus próprios lotes produtivos, com casas e roças?”, questiona.

Roça de banana de familia do Projeto Purus. Impacto do plantio sobre o ambiente tradicionalmente é mínimo

Desmatamento incentivado
Muito similar ao Projeto Purus, os projetos de REDD+ nos seringais Valparaíso e Russas ainda não foram oficializados junto ao governo do Estado, mas já estabeleceram uma série de restrições às suas comunidades.

Localizados em áreas de mata fechada no rio Valparaíso  afluente do Juruá no município de Cruzeiro do Sul, os dois projetos são gerenciados pelo ex-deputado federal e presidente do Partido da República (PR) no Acre, Ilderlei Souza Rodrigues Cordeiro [foto abaixo] (dono da I.S.R.C. Investimentos e Assessoria Ltda) , em parceria com as empresas americanas CarbonCo e Carbon Securities.

De acordo com os moradores das comunidades Valparaíso  Terra Firme de Cima (localizadas na área do Projeto Valparaíso  e Três Bocas (na área do Projeto Russas), apesar de lidarem diretamente com Ilderlei, o dono dos seringais seria o fazendeiro Manoel Batista Lopes, envolvido em sérios conflitos com os seringueiros na década de 1990.

A situação dos trabalhadores, segundo relatório feito  na época pelos procuradores do Trabalho Victor Hugo Laitano e João Batista Soares Filho era análoga à de escravos, conforme detalhado na pesquisa Trabalho compulsório, poder e transgressão no rio Valparaíso – Alto Juruá – Amazônia brasileira - 1980-90″.

Pelo que sabemos, o Ilderlei arrendou essas terras do Manoel pra fazer esse projeto de carbono. Ou comprou, não sabemos direito”, explica José (**), da comunidade Valparaíso.

Desde os anos 1980, estamos lutando pela titulação das terras, queremos a criação de uma Reserva Extrativista (Resex), mas eles vieram e falaram que resex não é um bom negócio pra nós. Já teve muito conflito aqui por causa disso”.

Produtores de farinha de mandioca, principal fonte de renda das comunidades, os seringueiros explicam que o processo de implantação do projeto de carbono nunca foi explicado direito.

Chamavam uma família aqui, umas cinco ali, nunca todo mundo junto, e falaram que ia ter projeto quer a gente queira, quer não.

Falaram que a gente vai ser proibido de brocar e botar fogo, e que em troca iam dar de colher a geladeira. E cursos. Falaram que iam dar máquinas, mas aqui, pra chegar, só se for de helicóptero.

Mas até agora não veio nada, só as placas (dos projetos) [foto acima: Projeto Valparaíso na comunidade Terra Firme de Cima]. Eles inclusive tomaram a madeira que a gente tinha cortado pra nossa igrejinha, pra fazer as placas.

Hoje temos placa do projeto, mas a igreja continua sem paredes”, [foto abaixo] afirma João.

Foto: Reunião na igreja da comunidade Valparaíso  cuja madeira foi confiscada para fazer placas do projeto

Moradora da comunidade Terra Firme de Cima, dona Rosa (**), 68 anos, confirma que o desconhecimento dos detalhes do projeto é geral.

O Ilderlei passou de casa em casa com um documento e fez a gente assinar, muitos nem sabem ler, ninguém sabe o que assinou.

Disse que a gente nunca mais ia poder botar fogo nas roças, mas que ele ia dar mucuna (semente de adubação verde) pra gente, que a gente ia produzir o dobro. Mas ninguém nem sabe o que é mucuna. E das outras coisas que ele disse que ia dar, não deu nada”.

De acordo com outro morador, Ilderlei teria dito que a proibição da brocagem e do fogo começaria em 2014.

Aí ele falou pra gente desmatar bastante esse ano, quem brocava dois hectares devia brocar quatro, mas que não era pra contar pra ninguém. E que ano que vem estaria tudo proibido”.

Em Três Bocas [foto], os moradores, preocupados com a sobrevivência das próximas gerações, confirmam o incentivo “secreto” ao desmatamento, mas acrescentam que houve também uma promessa de que as áreas de uso poderiam eventualmente ser tituladas para as famílias.

Mas a gente acha que quem titula terra é o governo. Se temos o direito à terra, não precisa ter promessa de fazendeiro dizendo que vai fazer, porque até agora tudo que prometeu não cumpriu. Faz quase um ano que o Ilderlei não aparece aqui”, afirma um morador.

Questionados se a comunidade foi suficientemente informada sobre o projeto, outro morador conta que certa vez estava andando com um “gringo” no mato e, quando quebrou um galho, “o gringo ficou todo ouriçado, disse que isso era crime. E carbono é que nem caviar, a gente ouviu dizer que existe, mas nunca viu. Alguém lá fora vai ganhar dinheiro porque nós vamos deixar de fazer roças para alimentar nossas famílias? Isto não me parece justo”.

Apesar de várias tentativas, a reportagem não conseguiu falar com representantes do IMC e do Incra sobre os projetos.

Já a relatora da Plataforma Dhesca, Cristiane Faustino [foto], que se reuniu com diversos órgãos do governo estadual e federal após as visitas de campo em dezembro, explicou que o Incra apontou que, de início, não acompanha os projetos de REDD e tem pouca intervenção na regularização fundiária das áreas envolvidas.

Quanto ao IMC, a informação coletada pela Relatoria é que os Projeto Purus e Valparaíso/Russas não foram ainda aprovados pelo órgão, que requereu informações adicionais sobre os mesmos.

“Do ponto de vista dos direitos humanos, é preciso fazer uma avaliação aprofundada sobre os riscos que os projetos de REDD impõem as comunidades, especialmente devido às desigualdades econômicas e políticas que permeiam suas ações.

A segurança  dos territórios para os posseiros e as comunidades tradicionais é a primeira condição para que seus direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais sejam garantidos.

Isso deve ser política básica para enfrentar as injustiças e riscos sociais e ambientais, e não devem estar submetidas à lógica do mercado, que tem outros interesses e linguagens", explica Cristiane.

(*) A jornalista Verena Glass esteve na região acompanhando missão da Plataforma Dhesca 
(**) Os nomes são fictícios para preservar a identidade dos comunitários

Leia também:
- 25 anos sem Chico Mendes e a realidade dos trabalhadores de Xapuri - Dercy Teles de Carvalho Cunha
- 25 anos depois, Chico Mendes vive mais indignado com o capitalismo verde - Elder Andrade de Paula
- Agronegócio e ecomercado ameaçam a vida - Zilda Ferreira
- O negócio europeu das emissões perversas (I) - Daan Bawens
- O negócio europeu das emissões perversas (II) - Daan Bawens

Fonte:
http://reporterbrasil.org.br/2013/12/projetos-de-carbono-no-acre-ameacam-direito-a-terra/

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Economia verde e financeirização da natureza


Transformar a atmosfera, o oxigênio, os rios, os oceanos, as florestas, os subsolos em mercadorias já é movimento bastante problemático. Permanecer aceitando que os rumos desse tipo de atividade sejam determinados apenas pelo ritmo da especulação financeira é colocar uma verdadeira pá de cal na já exígua credibilidade do conceito de economia verde.

Carta Maior - Paulo Kliass*
 
Às vésperas de completarmos um ano da organização da tão badalada “Rio + 20”, realizada em meados de junho de 2012, muito pouco temos a comemorar no campo das mudanças efetivas no modelo que determina, de forma hegemônica, as relações econômicas no mundo globalizado.

O clima de grandes expectativas criadas em torno do evento, que deveria propiciar um balanço de 2 décadas após a realização da Conferência da ONU de 1992, foi por demais otimista. Estava claro que tal animação não correspondia à realidade da crise econômica internacional e da quase impossibilidade de que os países mais importantes do mundo avançassem alguns milímetros na direção de um sistema menos comprometedor do futuro da Humanidade.

“Rio + 20” e a economia verde

A polêmica toda se deu em torno da avaliação de supostos avanços ou recuos que poderiam estar contidos nos termos da declaração final do encontro. O famoso documento “O futuro que queremos” sintetizava os limites da costura possível entre as proposições das delegações oficiais e das representações das associações e entidades da sociedade civil organizada. Ora, como toda peça resultante de evento de natureza multilateral, o documento procurava expressar algum grau de consenso, a ser obtido entre as representações diplomáticas participantes, a respeito dos temas em questão. Assim, o fato de incorporar o conceito de “economia verde” foi muito criticado por correntes vinculadas ao movimento ambientalista, ao passo que o fato do termo sempre estar acompanhado da expressão “no contexto do desenvolvimento sustentável e da erradicação da pobreza” era saudado por outros grupos como sinalização de um avanço importante.

O fato concreto é que a Rio + 20 deu-se num contexto de dominação política, social e econômica dos valores associados a um modelo que privilegia a exploração descontrolada e desregulada dos recursos naturais e da força de trabalho, na perspectiva da geração e da apropriação privada dos lucros de tais empreendimentos. Some-se a esse quadro a crença de que a solução do ainda tão idolatrado “mercado” seja sempre o mecanismo mais “eficiente” para a busca das soluções de equilíbrio entre os diversos fatores e atores envolvidos no complexo jogo de interesses do mundo globalizado.

Toda e qualquer avaliação mais realista e dotada de bom senso deveria levar em consideração os limites de tal conjuntura. Infelizmente, havia - como ainda continua a haver - pouco espaço para avanços expressivos no campo dos consensos diplomáticos. Afinal, nem mesmo os Estados Unidos aceitaram assinar o já antigo Protocolo de Kyoto (já referendado por mais de 170 países), a respeito de um compromisso para redução da emissão de gases comprometedores do efeito estufa. De outra parte, é necessário recordar que a maioria dos países se volta atualmente para a China, na esperança de que o ritmo de crescimento do gigante asiático seja o elemento de salvação para a recuperação da economia internacional.

As diferentes interpretações da economia verde

O termo “economia verde” vem sendo utilizado há mais tempo em vários circuitos: ambientalista, empresarial, governamental, organismos multilaterais, meios de comunicação, entre outros. Como toda novidade que ainda não foi devidamente digerida e serve para cobrir um nível de ansiedade social a respeito de tema que não apresenta soluções fáceis a curto prazo, ele ocupa o vácuo e preenche a carência. Assim a expressão é muitas vezes apresentada com uma verdadeira panacéia para todos os malefícios que o capitalismo tem proporcionado para o meio ambiente em escala planetária. No entanto, os problemas associados ao processo de degradação ambiental são muito mais complexos do que aparentam numa abordagem superficial. Não basta apenas adjetivar a dinâmica econômica de “verde” para que tudo se resolva, como num passe de mágica.

Exatamente por isso ainda existem diversas acepções do conceito circulando pelos circuitos que tratam do tema. De um lado, permanecem algumas interpretações ainda bem intencionadas no campo dos que estão sinceramente preocupados com a deterioração do sistema ambiental. De outro lado, porém, estão aquelas proposições que estão mais preocupadas em oferecer uma alternativa estratégica de sobrevivência para as grandes corporações multinacionais. Assim, a economia verde se amplia no largo espectro que vai desde os ambientalistas mais ingênuos até aqueles que defendem os interesses do grande capital em seu permanente processo de acumulação e reprodução.

Mecanismos de financiamento: do Protocolo de Kyoto aos dias de hoje

A realidade do sistema capitalista apresenta uma característica essencial: sua tendência a universalizar o conjunto dos processos sociais e transformá-los em relações mercantis. Com isso, o sistema econômico nos tempos mais modernos passou a incorporar a dimensão do “meio-ambiente” também como mecanismo de acumulação e de dinamização do mercado. As primeiras tentativas concentraram-se no espaço da emissão de gases do efeito estufa (GEE). Tendo por base as alternativas previstas no Protocolo de Kyoto, começaram a aparecer os “créditos de carbono”, que se converteram aos poucos em mecanismo de transação no interior do mercado financeiro. De acordo com as normas previstas, as empresas que diminuíssem sua quantidade de emissão de GEE teriam direito a lançar tais títulos de crédito de carbono. Estas novas modalidades de papéis passaram a ter seus preços cotados e negociados no mercado. Segundo os padrões atuais, um crédito de carbono seria equivalente à redução da emissão de 1 tonelada de dióxido de carbono (CO2). Portanto, em tese, a cotação de crédito de carbono deveria ser correspondente ao custo monetário do investimento necessário para obter tal redução de gases poluentes.

A intenção subjacente é que estaria em marcha um mecanismo para estimular, inclusive em termos de ganhos econômicos, a substituição de processos de produção considerados “sujos” por novos sistemas produtivos “limpos”. Esse tipo de ação passou a ficar conhecido como “mecanismo de desenvolvimento limpo” (MDL) e deveria contar com apoio da ONU para fins de regulação e fiscalização, com o objetivo de evitar que os títulos de crédito de carbono pudessem ser fonte de ações fraudulentas e sem nenhum tipo descontrole. O aumento da quantidade de títulos emitidos e a ampliação da escala de sua negociação terminaram por consolidar um verdadeiro mercado, com uma série de produtos financeiros associados. Os créditos de carbono passaram a ser cotados nas Bolsas de Mercadorias, com preços no mercado diário, no mercado futuro e demais características do mercado financeiro em geral. Em conseqüência, a exemplo do que ocorre com outros títulos similares, eles estão também bastante sujeitos a muita especulação.

A partir dessa experiência inicial, novos títulos de natureza financeira foram sendo incorporados pelas empresas multinacionais, mas ainda não contam com mecanismos de controle ou regulamentação. Trata-se dos papéis de “redução de emissão por desmatamento e degradação evitados” (REED), por meio do qual os conglomerados e seus empreendimentos de larga escala buscam obter retornos financeiros a partir de iniciativas que podem reduzir o ritmo de destruição ambiental. É o caso da diminuição de áreas de floresta ou de regiões com atividades de extração mineral. Os mercados financeiros podem facilitar a realização dos negócios e a obtenção de recursos para os projetos, pois todo o processo ocorre por meio de emissões de títulos que têm um valor definido e que são transacionados nos balcões de negócios em todas as principais praças do mundo. No entanto, o problema é que esses papéis – em tese, associados a atividades de “economia verde” - são operados também com base na especulação, a exemplo dos demais títulos financeiros. Ou seja, trata-se um nicho voltado para o meio-ambiente, mas sem quase nenhum lastro no setor real da economia.

Os riscos da financeirização sem regulação

Em termos mais gerais, o processo de financeirização pode ser compreendido como uma etapa de aprofundamento do processo de mercantilização. Assim, em uma primeira fase, observa-se a transformação generalizada dos recursos naturais, bens, serviços e relações sociais em mercadorias. Tudo passa a ser sintetizado e tratado sob a forma de preços e quantidades, tudo passa a ser analisado segundo a ótica da oferta e da demanda. A mercantilização em larga escala abre novas oportunidades à produção nos moldes capitalistas, ampliando os espaços para os mecanismos de acumulação de capital.

Em um momento posterior, não apenas a transformação em mercadorias se consolida pelo conjunto de setores e áreas da economia e da sociedade, mas também os instrumentos financeiros associados a elas se espraiam pelos mercados. Um dos aspectos que fascina e intriga no processo de financeirização é sua dupla face. De um lado, a capacidade de criar as condições de geração de recursos para as atividades onde esteja envolvido.

De outro lado, a sua capacidade de se tornar autônomo em relação ao próprio objeto que foi a razão de seu surgimento. E assim, ele ganha vida independente nos circuitos e searas dos mercados financeiros primários, secundários, terciários e por aí vai. Nos mercados especulativos espalhados pelo mundo, por exemplo, as cotações dos papéis de carbono caíram mais de 90% entre as vésperas da crise de 2008 e os dias de hoje. Ou seja, um movimento no circuito financeiro que tem muito pouco a ver com a realidade concreta dos setores da economia verde.

A resistência dos interesses do financismo em aceitar critérios mais sérios de regulamentação, fiscalização e controle das operações dos mercados de títulos converte-se em um grande obstáculo. As catástrofes observadas a partir da crise financeira não foram suficiente para tanto. Uma das causas foi, sem dúvida, o exagerado grau de financeirização e o descontrole sobre os mercados especulativos. Assim, a insistência na ilusória “liberdade de ação das forças dos mercados” termina por comprometer qualquer busca mais responsável para criação de mecanismos de financiamento de uma economia verde, que seja sustentável em termos econômicos, sociais e ambientais.

Transformar a atmosfera, o oxigênio, o gás carbônico, os rios, os oceanos, as florestas, os subsolos, enfim a natureza, em mercadorias já é movimento bastante problemático. Permanecer aceitando que os rumos de empreendimentos nesse tipo de atividade sejam determinados apenas pelo ritmo da especulação na esfera puramente financeira é colocar uma verdadeira pá de cal na já exígua credibilidade do conceito de economia verde.

Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.

Fonte:Carta Maiorhttp://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=6105

Leita também: http://brasileducom.blogspot.com.br/2012/03/quem-ganha-e-quem-perde-com-o-redd-e.html
   

segunda-feira, 11 de março de 2013

Uma agenda à procura de um partido

02/03/2013 - Saul Lebon - Carta Maior

O PT não ganhou com a saída de Marina Silva, que deixou o partido em agosto de 2009.

E Marina ainda precisa provar que a ruptura fortaleceu a agenda ambiental no país.

O debate sobre o tema guarda silencio obsequioso no interior do partido desde então.

Mas mereceu sintomática salvaguarda de princípios nas conclusões do seu IV Congresso, em 2011:

"O Brasil não tratará a questão ambiental como apêndice, senão como parte essencial, de seu projeto de desenvolvimento. Como socialistas democráticos, queremos uma alternativa de civilização ao capitalismo".

Talvez tenha chegado a hora inadiável de adicionar nervos e musculatura a essa declaração de intenções.

Quatro anos e 18 milhões de votos depois, obtidos na campanha presidencial de 2010, Marina articula um novo partido.

A 'Rede' flerta com a trama evanescente da 'terceira via verde'.

Nem de esquerda, nem de direita. Nem situação, nem oposição.

Há um tipo de neutralidade que só enxerga os erros da esquerda.

E costuma rejuvenescer o cardápio da direita, sempre que esta se ressente de espaços e agendas para retomar a disputa pelo poder.

Não será algo propriamente inédito se vier a ocorrer de novo.

No México, os ambientalistas do Partido Verde Ecologista (PVEM), apoiaram o candidato vitorioso da direita, Henrique Peña Nieto, do PRI, contra Obrador.

Na Venezuela, o Movimento Ecológico Venezuelano entregou-se de corpo e alma à candidatura do engomadinho Henrique Capriles Randonski, com a qual golpistas de ontem testam a 'versão jovem' de hoje.

Em São Paulo, o PV apoiou José Serra, em 2010.

Em Salvador, embarcou na candidatura vitoriosa do demo Antonio Carlos Magalhães Neto, nas eleições municipais do ano passado.

O ziguezague verde reflete a dificuldade histórica de uma agenda complacente.

Ela agrega desde rótulos espertos de detergentes de limpeza, a militantes sinceros da resistência à destruição da natureza.

O ambientalismo precisa decidir se quer ser um rótulo, uma tecnologia ou uma proposta de nova sociedade.

Quer ser um guia de boas maneiras para o 'capitalismo sustentável'; ou um projeto alternativo à lógica desenfreada da exploração da natureza e do trabalho.

Não são escolhas postergáveis.

O mesmo se pode dizer em relação às do PT.

A dissociação entre a sigla e o empenho específico em evitar que a humanidade seja jogada a um ponto de não retorno no século 21, não deixa o partido em situação propriamente confortável.

Agora mais do que nunca.

Não se trata apenas de precificar o prejuízo eleitoral da 'Rede' – que existe

É mais grave que isso.

Agudiza-se um desafio objetivo, sobre o qual o partido não tem refletido nem avançado.

A saída em massa dos ambientalistas abriu um buraco na evolução do seu discernimento histórico e programático.

Perdeu-se a virtuosa tensão de um convívio e de um debate incômodo, inconcluso, nem sempre conduzido com habilidade, mas crucial.

Perdeu-se o sentido de urgência na construção das linhas de passagem que devem conduzir a um ponto de encontro entre socialismo, desenvolvimento, democracia e sociedade sustentável.

A história não oferece o mapa pronto de caminhos ainda não trilhados.

Tropeços são inevitáveis.

Mas ignorar as urgências sistêmicas escancaradas pela desordem do capitalismo, desde 2008, equivale a adotar como bússola os rótulos oportunistas das ''empresas ambientalmente responsáveis".

Vive-se um crepúsculo histórico.

O colapso financeiro e a multiplicação de eventos climáticos extremos são evidencias de uma exaustão que atinge ao mesmo tempo a economia, a sociedade e a civilização.

Mas que tem um determinante claro.

A supremacia do capital financeiro – negligenciada pelos adeptos da 'terceira via'.

Ela condiciona todo o cálculo econômico com a ganância intrínseca a uma lógica dissociada da produção. Indiferente à sorte da sociedade.

É o moinho satânico do nosso tempo.

Taxas de retorno incompatíveis com a exploração sustentável dos recursos naturais – de ciclo mais lento e mais longo – tornaram-se o paradigma de um regime de extorsão insaciável.

Ele se instalou no metabolismo da economia, da sociedade e da natureza.

Dá as ordens no terreiro globalizado.

A voragem do capital fictício encontra na ganância dos acionistas um roteador à altura na esfera da produção.

Sob ameaça de migrar para opções especulativas de maior retorno, exige-se a maximização permanente dos dividendos pagos pelas corporações.

A espoliação irradia-se das plantas produtivas ao chão dos direitos sociais ('o custo Brasil').

Até contaminar as conexões com as reservas que formam as fontes da vida na Terra.

Dissemina-se um padrão globalizado de retorno financeiro, incompatível com a manutenção dos valores compartilhados que ordenam a vida em sociedade e com as taxas de regeneração dos sistemas naturais.

A dissociação entre socialismo e ambientalismo configura-se uma contradição nos seus próprios termos.

A atrofia de um desarma e derrota o outro.

E vice-versa.

Acenada por ambientalistas simpáticos à 'terceira via', a bandeira do 'não crescimento' elide a essência predatória do sistema de produção de mercadorias.

Em vez de respostas, atualiza velhas perguntas dirigidas às utopias centristas.

Quem decidirá o quê e quanto a sociedade vai produzir, ou deixar de produzir?

Que tipo de Estado é necessário para viabilizar esse planejamento?

Quais critérios definirão o rateio sustentável dos recursos entre nações e dentro de cada nação?

Como serão superadas as desigualdades históricas acumuladas até o presente?

A tese do não crescimento responde aos desequilíbrios sociais e ambientais tanto quanto a panaceia do crescimento é sinônimo de justiça social.

Não isenta o PT de responsabilidade na formulação desses contrapontos, o fato de ser o guarda-chuva de um governo de coalizão.

Distinguir entre 'consumismo' e sociedade justa, por exemplo, e extrair consequências práticas disso é obrigação de um partido de esquerda.

A década de governos do PT tirou 50 milhões de brasileiros da miséria.

Nunca é demais reiterar aquilo que desespera o conservadorismo: isso mudou a geografia política do país. Talvez de forma irreversível nos marcos da legalidade.

O que mais o PT tem a dizer a esse universo que ascendeu ao consumo e, sobretudo, como pretende chegar a ele?

Há nessa pergunta uma arguição sobre o que o partido entende por sociedade sustentável e justa.

O PT já foi capaz de respostas ousadas no passado, sendo depositário de um salto significativo na história da consciência ambiental.

A travessia se deu na prática.

Interior da Amazônia brasileira; anos 70/80.

Chico Mendes (1944-1988), associado às pastorais da terra, vinculou então, pioneiramente, a defesa da floresta à luta contra a miséria e a opressão.

Rompeu-se aí uma tradição preservacionista europeia, branca, elitista e excludente.

No limite, ela preconizava o ostracismo de populações pobres para salvar paisagens.

Políticas bem sucedidas de combate ao desmatamento (que caiu 75% na Amazônia nos últimos 4 anos e 50% no Cerrado); avanços significativos na expansão de reservas indígenas; incentivos às fontes renováveis de energia e zoneamentos agrícolas, como o da cana-de-açúcar, sucederam-se a esse salto nos dois governos Lula.

Nunca mais, porém, desde o estirão percorrido por Chico Mendes, houve um aprofundamento estratégico da interação entre desenvolvimento, justiça social e sociedade sustentável.

O maniqueísmo que marcou o debate sobre o papel das hidrelétricas na matriz brasileira de energia, ilustra o ônus decorrente do espaço exíguo reservado a essa reflexão. Dentro e fora do PT.

O saldo é desconcertante: reservatórios reduzidos das hidrelétricas atendem ao clamor ambiental; mas exigem a ativação permanente de termelétricas, de alto teor poluente...

Mitigar o cerco conservador ao governo Lula, com respostas rápidas, explica uma parte da atrofia do debate e do programa nessa esfera.

Mas nada justifica que o tema ambiental continue engavetado na prateleira dos desafios remotos.

Não é um problema brasileiro. A abrangência planetária apenas reforça a urgência de ação enquanto o mundo ainda rasteja em postergações.

O sopro da barbárie já respira entre nós.

Administrações de grandes manchas urbanas pagam o preço mais alto por essa convivência incômoda.

Picos de calor que costumavam ocorrer uma vez a cada 20 anos, obedecem agora a um padrão anual e bianual.

A informação é da Nasa.

No seu rastro, multiplicam-se eventos extremos de brutal teor destrutivo.

Populações das metrópoles, cada vez mais castigadas pela nova regularidade das descidas ao inferno, vão cobrar respostas estruturais de um poder público despreparado para fornecê-las.

O que os partidos de esquerda têm a dizer em seu socorro? O que tem a propor para ordenar a discussão na sociedade?

A equação é mais complexa do que a nova contabilidade eleitoral gerada pelo surgimento da ‘Rede’.

Há uma agenda à procura de um protagonista.

A mera recitação de boas intenções, como as do IV Congresso do PT, não basta para contemplá-la.

Todo o desafio da política é dar respostas coerentes com os princípios, no tempo certo dos acontecimentos, dentro da relação de forças existente.

É honesto admitir que nem o PT, nem a Rede, de Marina, ou a esquerda de um modo geral, têm propostas críveis para o desafio ambiental que atendam a essa consistência prática.

O V Congresso do PT, em fevereiro de 2014, ganhará muito em relevância política se for antecedido de um debate estratégico.

Que avance com desassombro sobre essa que é a mais importante fronteira de atualização do campo da esquerda em nosso tempo: o ponto de encontro entre socialismo e desenvolvimento sustentável.

A Fundação Perseu Abramo, o think tank do PT, desempenharia um papel encorajador se exercitasse essa reflexão reavivando o debate ambiental no interior do partido.

A partir de seminários tão ecumênicos quanto a complexidade dos desafios a serem tratados.

Fonte:
http://www.cartamaior.com.br/templates/postMostrar.cfm?blog_id=6&post_id=1202

Não deixe de ler:
- O mito do capitalismo “natural” - Rafael Azzi
- “É preciso sair do capitalismo” – Marcela Valente (entrevista com o escritor francês Hervé Kempf)
- Um mundo de águas, minérios e nomes que parecem poemas - parte final 6/6 - UM JOGO EM QUE NEM TODOS TRAPACEIAM - Antonio Fernando Araujo
- Discurso de Pepe Mujica no Rio de Janeiro - por ocasião da Rio+20 (junho/2012)

E mais:
- A disputa pela terra em Copenhague - Zilda Ferreira
- Os limites da pátria - Mauro Santayana
- Já temos a resposta, senadora Marina - Carlos Tautz
- A centralidade da água - Mônica Bruckman

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade e, excetuando uma ou outra, inexistem no texto original.

terça-feira, 5 de março de 2013

Discurso de Pepe Mujica no Rio de Janeiro

20/06/2012 - original do “Discurso de Pepe Mujica en Río”, por ocasião da Rio+20 (junho/2012)
- extraído do El Heraldo, da Argentina, de 21-11-2012
Tradução: Christina Iuppen

“El discurso ya se está considerando histórico, Mujica habló ante una audiencia de mandatarios que con desgano escucharon las verdades brutales que les decía, recien a días del discurso, la prensa internacional y el mundo comienzan a tener en cuenta que no fue un simple discurso el que dijo el presidente uruguayo.” (El Heraldo)

Autoridades presentes de todas as latitudes e organismos, muito obrigado. Muito obrigado ao Brasil e à Senhora sua Presidente, Dilma Roussef. Muito obrigado também à boa-fé manifestada por todos os oradores que me precederam.

Expressamos a íntima vontade, como governantes, de apoiar todos os acordos que esta nossa pobre humanidade possa subscrever. No entanto, permitam-nos fazer algumas perguntas em voz alta.

Tem-se falado por toda a tarde do desenvolvimento sustentável. De retirar as imensas massas da pobreza.

Que nos vem à mente?

O modelo de desenvolvimento e consumo que queremos é o modelo atual das sociedades ricas?

Faço-me esta pergunta: que aconteceria com o planeta se os indianos tivessem a mesma proporção de carros por família que têm os alemães?

Quanto oxigênio nos restaria para respirar?

Mais claro: tem o mundo os elementos materiais para possibilitar que 7 ou 8 bilhões de pessoas possam ter o mesmo grau de consumo e desperdício que têm as mais opulentas sociedades ocidentais?

Será isto possível?

Ou teremos que dar-nos outro tipo de discussão?

Criamos esta civilização em que vivemos: filha do mercado, filha da competição, que redundou num portentoso e explosivo progresso material.

Mas a economia de mercado criou sociedades de mercado. E nos deparamos com esta globalização cujo olhar alcança todo o planeta.

Estamos governando esta globalização ou é ela que nos governa a todos?

É possível falar de solidariedade e de que ‘estamos todos juntos’ numa economia embasada na competição sem piedade?

Até onde vai nossa fraternidade?

Não digo isto para negar a importância deste evento. Pelo contrário: o desafio que temos pela frente é de uma magnitude e caráter colossais, e a grande crise que temos não é ecológica, é política.

O homem não governa hoje as forças que desencadeou, mas essas forças desatadas governam o homem. E a vida.

Não viemos ao planeta para desenvolver-nos, simples e generalizadamente. Viemos ao planeta para ser felizes. Porque a vida é curta e se nos esvai. E bem nenhum vale tanto como a vida. Isto é elementar.

Mas a vida me vai escapar, trabalhando e trabalhando para consumir um ‘plus’, e a sociedade de consumo é o motor disto. Porque, definitivamente, se se paralisa o consumo, detém-se a economia, e se se detém a economia aparece o fantasma da estagnação para cada um de nós.

Mas é esse hiper-consumo que vem agredindo o planeta.

E é preciso gerar esse hiper-consumo, fazer com que as coisas durem pouco, porque é preciso vender muito. E uma lâmpada elétrica, então, não pode durar mais de 1000 horas acesa.

Mas há lâmpadas que podem durar 100 mil horas acesas! Mas essas não, não podem ser feitas; porque o problema é o mercado, porque temos que trabalhar e temos que manter uma civilização de ‘use-o e jogue-o fora’. E assim estamos em um círculo vicioso.

Estes são problemas de caráter político.

Indicam-nos que é tempo de começar a lutar por outra cultura.

Não se trata de reivindicarmos a volta do homem às cavernas, nem de erguer um monumento ao atraso. Mas não podemos seguir, indefinidamente, governados pelo mercado: temos nós que governá-lo.

Por isto digo, em minha humilde maneira de pensar, que o problema que temos é de caráter político.

Os velhos pensadores – Epicuro, Sêneca, e também os aymarás, definiam: ‘pobre não é o que tem pouco, mas o que necessita infinitamente muito’. E deseja ainda mais. Essa é uma chave de caráter cultural.

Sendo assim, vou saudar o esforço dos acordos que se façam. E vou acompanhá-los, como governante.

Sei que algumas coisas que estou dizendo ‘rangem’. Mas precisamos dar-nos conta de que a crise da água e da agressão ao meio ambiente não é causa.

A causa é o modelo de civilização que montamos. O que temos que repensar é nossa forma de viver.

Pertenço a um pequeno país muito bem dotado de recursos naturais para viver. No meu país há pouco mais de 3 milhões de habitantes.

Mas há uns 13 milhões de vacas, as melhores do mundo. E uns 8 ou 10 milhões de estupendas ovelhas.

Meu país é exportador de comida, de lácteos, de carne. É uma peneplanície, e quase 90% de seu território é aproveitável.

Meus companheiros trabalhadores lutaram muito pelas 8 horas de trabalho. E estão conseguindo agora as 6 horas. Mas o que tem 6 horas consegue dois trabalhos e, portanto, trabalha mais do que antes.

Por quê? Porque tem que pagar uma quantidade de coisas: a moto, o carro, quotas e quotas e, quando acorda, vê que é um velho cuja vida se foi.

E fica a pergunta: é esse o destino da vida humana?

Apenas consumir?

Essas coisas que digo são muito elementares: o desenvolvimento não pode ser contra a felicidade.

Tem que ser a favor da felicidade humana, do amor à terra, do cuidado com os filhos, junto aos amigos. E ter, sim, o essencial. Precisamente porque é o mais importante tesouro que temos.

Quando lutamos pelo meio ambiente, temos que recordar que o primeiro elemento do meio ambiente se chama ‘felicidade humana’.

Fonte:
http://www.elheraldo.com.ar/noticias/79643_discurso-de-pepe-mujica-en-rio.html

Não deixe de ler:
- “É preciso sair do capitalismo” – Marcela Valente (entrevista com o escritor francês Hervé Kempf)
- Um mundo de águas, minérios e nomes que parecem poemas - parte final 6/6 - UM JOGO EM QUE NEM TODOS TRAPACEIAM - Antonio Fernando Araujo

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade e, excetuando uma ou outra, inexistem no texto original.

sábado, 16 de junho de 2012

Desenvolvimento Sustentável: Estado Sólido, Líquido ou Gasoso?

30/05/2012 - Patricia Almeida Ashley(*)
Original publicado no site Rede EConsCiencia e Ecocidades - UFF

Faço aqui uma reflexão sobre as discussões em andamento sobre Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (Sustainable Development Goals) para uma possível ação a ser acordada entre os países representados na Rio+20.

Percebo uma ansiedade por um “estado sólido”, paupável, mensurável, segurável, assegurável, verificável, comprovável, comparável, planejável, previsível, reproduzível, sempre que se fala em Objetivos de Desenvolvimento Sustentável como resultados e impactos a serem desdobrados em Indicadores e Metas para serem usados por todos os países e regiões no mundo. Haja números e estatísticas e equações!!!. Para mim, reflete uma racionalidade mecanicista, positivista, típica da abordagem científica hipotético-dedutiva e cartesiana, que pressupõe equações lineares, métodos estatísticos e métricas parametrizáveis para comparações, rankings, previsões. Típica de formação de engenharias e outras ciências que requerem, para a sua contribuição na formação do conhecimento humano, estruturas mensuráveis.

Quando passamos a conceber os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável como algo mais pertinente a processos e capacidades para que as sociedades renovem seus sistemas jurídicos, normativos, suas lógicas anacrônicas para a educação, reprodução, produção e consumo, estamos passando para um “estado líquido” de concepção de desenvolvimento sustentável, algo como a água que não se perde ao cruzar com as pedras, mas as contorna, sofre com contaminações, mas se evapora, se desmancha para um novo ciclo de vida. Ou seja, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável não passam mais a ser comparáveis em métricas entre países, pois somos águas e terrenos distintos, mas somos passíveis de trocas, intercâmbios, aprendizagens, intenções e ações para que nossas águas sempre se renovem e gerem vida.

E se caminharmos para os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável como algo mais pertinente a princípios, valores, sensações, sentimentos, afetos, daí caminharemos para a qualidade espiritual da humanidade em harmonia com a Terra e com o Cosmos, passando a enxergar o quão grande é a família a que pertencemos e o que viemos fazer aqui e agora e com todos que percebemos estar e viver e morrer. Digo que é desenvolvimento sustentável como “estado gasoso” que trabalha pela inteligência espiritual, pela evolução de consciências, pelo desapego à limitação da expressão sólida apenas perceptível pelos cinco sentidos. Como medir em indicadores e metas o que atingimos e atuamos quando podemos nos abraçar profundamente e sem medo? Já experimentou algo assim? Percebe o que muda em sua hierarquia de valores?

Entende por que podemos ser plenamente realizados sem ter que ter que ter que ter, mas sendo o ser para ser o ser entre seres? 

O artigo Why we need sustainable development goals?, que replico aqui e originalmente publicado em Why we need Sustainable Development Goals – SciDev.Net, foi o que me provocou as reflexões que escrevi acima. Coloco, como contraposição, o excelente artigo elaborado por Benedito Silva Neto e David Basso, publicado na Revista Ambiente e Sociedade, em 2010, sob título A ciência e o desenvolvimento sustentável: para além do positivismo e da pós-modernidade, que nos ajuda a sair do estado sólido, transitar pelo necessário estado líquido para atingir e recuperarmos o estado gasoso do desenvolvimento sustentável.


(*) Colunista de Plurale, professora e coordenadora da Rede EConsCiência e Ecocidades da Univesidade Federal Fluminense (UFF).


Artigo publicado originalmente no site Plurale. Postado por Equipe Rede EConsCiencia e Ecocidades em:
http://redeeconsciencia.blogspot.com.br/2012/05/desenvolvimento-sustentavel-estado.html