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segunda-feira, 14 de maio de 2012

A cultura como campo de combate

14.05.2012 - por Vladimir Safatle
na Carta Capital


Um dos fenômenos sociais mais importantes dos últimos anos é a transformação da cultura e da modernização dos costumes em setor fundamental do embate político.

Durante os anos 1970 e 1980, a cultura fora um campo hegemônico das esquerdas. Este não é mais o caso. Há de se perguntar o que ocorreu para encontrarmos atualmente um processo de politização da cultura por parte, principalmente, de representantes da direita.

Poderíamos dizer que a direita do espectro político teria compreendido que a população, em especial as classes populares, é naturalmente conservadora nos costumes, pois avessa a questões como aborto, casamento homossexual e políticas de discriminação positiva. Da mesma maneira, ela seria conservadora em cultura, pois mais sensível ao peso dos valores religiosos na definição de nossas identidades e de nossos “valores ocidentais”. É possível, porém, que o movimento em questão seja de outra natureza.

Tom Frank

Em um astuto livro chamado O Que Há de Errado com o Kansas?, o ensaísta norte-americano Tom Frank lembra como o pensamento conservador soube se aproveitar do sentimento de abandono social das classes populares. Frank serve-se do Kansas para perguntar: como um dos estados politicamente mais combativos dos EUA nas primeiras décadas do século XX tornou-se um bastião conservador? Sua resposta é: sentindo-se abandonado pelas elites intelectuais esquerdistas cosmopolitas que, à sua maneira, não foram completamente prejudicadas pelos desmontes neoliberais, as classe populares deixaram que um conflito de classe se transformasse em um conflito cultural.

Em vez de se voltarem contra os agentes econômicos responsáveis por tais desmontes, elas se voltaram contra o modo de vida que representaria as elites liberais. Neste deslocamento, os responsáveis pelo empobrecimento dos setores mais vulneráveis da população apareceram como os portadores dos “verdadeiros valores de nosso povo”.

Desta forma, a direita pode falar menos sobre economia e mais sobre hábitos e cultura.


Ela pode, inclusive, tentar instrumentalizar o anti-intelectualismo, como vimos nas reações caninas contra a Universidade de São Paulo e seus departamentos de Ciências Humanas à ocasião dos conflitos com a Polícia Militar.


Mesmo a discussão europeia sobre a imigração deve ser lida nesta chave. Qualquer pessoa séria sabe que a discussão sobre imigração nada tem a ver com economia. Quem quebrou a Europa não foram os imigrantes pobres que servem de mão de obra espoliada e desprovida de direitos trabalhistas. Na verdade, quem a quebrou foi o sistema financeiro e seus executivos “brancos e de olhos azuis”. A discussão sobre imigração é um problema estritamente cultural. Maneira de deslocar conflitos de classe para um plano cultural.

Hamadi Jebali, líder tunisiano do partido islâmico Ennahda
Este é um fenômeno parecido ao ocorrido em países como a Tunísia após a Primavera Árabe. Feita por jovens esquerdistas diplomados e filhos da classe média tunisiana, a revolução permitiu a vitória de um partido islâmico (Ennahda) porque, entre outras coisas, eles souberam captar a lassidão das classes populares em relação à classe média europeizada de cidades como Túnis e Sfax. Os islâmicos souberam dizer: “O desprezo a que vocês foram vítimas durante todos esses anos é, no fundo, desprezo aos valores que vocês representam, desprezo ao nosso modo de vida de alta retidão moral contra a lassidão dos mais ricos”. Mudam-se os agentes, mas a estrutura do discurso é a mesma.



Contra isso, a esquerda não deve temer entrar no embate cultural e dos costumes.

Devemos quebrar as tentativas de nos fazer acreditar que as classes populares são naturalmente conservadoras e mostrar como a cultura virou uma forma de o capitalismo absorver o descontentamento com o próprio capitalismo. A melhor maneira é mostrar como o modo de vida baseado na modernização dos costumes e da cultura tem forte capacidade de acolher as demandas populares.


Por exemplo, boa parte dos absurdos falados contra o casamento de homossexuais vem do medo de desagregação das famílias em ambientes onde elas aparecem como núcleos importantes de defesa social. Talvez seja o caso de lembrar que nenhum estudo demonstra que famílias homoparentais são mais problemáticas do que famílias tradicionais. Famílias tradicionais também são bons núcleos produtores de neuroses. Ou seja, os impasses e dificuldades da família continuarão, com ou sem famílias homoparentais.

Mostrar a fragilidade de nossos “valores” e “formas de vida” é uma maneira de quebrar a fixação a um estado de coisas que não entrega o que promete.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Primavera Árabe só deu outra cor à censura

31/1/2012 - por Simba Shani Kamaria Russeau, da Inter Press Service - postado em Envolverde - Jornalismo & Sustentabilidade


Cairo, Egito, 31/1/2012 – Os esforços dos regimes do Oriente Médio e do norte da África, para impedir o fluxo de informação durante as revoltas populares do ano passado, deixaram uma grande quantidade de jornalistas mortos, feridos ou detidos. Hoje, a censura continua. “No começo da Primavera Árabe, o controle de informação foi uma prioridade para as autoridades”, contou à IPS (Inter Press Service) a pesquisadora para o Oriente Médio e a África do Norte da organização Repórteres Sem Fronteiras, Soazig Dollet. “Os governos tratam de censurar a cobertura da repressão lançada pelas forças de segurança contra os protestos, impedindo o acesso à internet e bloqueando os telefones celulares, bem como atacando jornalistas locais e internacionais”, denunciou.

O levante popular na Tunísia, em janeiro de 2011, que levou à queda do presidente Zine al-Abidine Ben Ali, deu origem a uma onda de protestos que rapidamente se propagou pelo resto do mundo árabe. No dia 25 daquele mês, foi a vez do Egito, quando manifestantes começaram a reclamar o fim do regime de 30 anos do presidente Hosni Mubarak. Após o êxito de Egito e Tunísia, outros países como Bahrein, Marrocos, Líbia, Iêmen e Síria lançaram suas próprias revoltas.

A imprensa teve um papel fundamental informando sobre as manifestações e a consequente repressão, mas os profissionais correram sérios riscos quando as autoridades trataram de bloquear a propagação de notícias. Um informe da Repórteres Sem Fronteiras diz que pelo menos 20 jornalistas foram mortos e 553 agredidos ou ameaçados na Primavera Árabe, o que fez do Oriente Médio e do norte da África uma das regiões mais perigosas para os trabalhadores da imprensa.
Os regimes dos países onde houve levantes populares tentaram, no começo, censurar a informação”, apontou Ayman Mhanna, diretor-executivo da Fundação Samir Kassir. “Começaram bloqueando o acesso a redes sociais como Facebook e Twitter, mas depois se deram conta de que podiam abrir esses sites para controlar quem escrevia e o que escreviam. Depois restringiram o acesso a jornalistas estrangeiros e independentes, a menos que estivessem totalmente sob seu controle”, disse Mhanna à IPS.

A situação melhorou um pouco, salvo na Síria e no Bahrein. No primeiro país, os jornalistas estrangeiros só entram furtivamente, a menos que aceitem trabalhar sob controle das autoridades, que, por outro lado, não garantem sua segurança. A morte de Gilles Jacquier (no dia 11) é um exemplo disso”, afirmou Mhanna. “No Bahrein, a situação é muito difícil. Os países do Conselho de Cooperação do Golfo têm interesses em bloquear a revolução nesse país. Todos os meios de comunicação opositores estão censurados, e os que são afinados com o regime distorcem totalmente a informação”, ressaltou.

Defensores dos direitos humanos consideram o Oriente Médio e o norte da África uma das regiões com maior censura pela abundância de controles, leis, normas, hostilidades, detenções e restrições físicas. Disposições legais de todo tipo são usadas para deter jornalistas, acusando-os de prejudicar a reputação do Estado, freando, assim, denúncias de corrupção contra funcionários públicos. As autoridades do Bahrein utilizaram a Lei de Imprensa de 2002 para censurar. O Código Penal da Síria criminaliza a propagação de notícias no estrangeiro. Além disso, Egito e Síria têm leis de emergência que permitem perseguir e deter sem o devido processo jornalistas, trabalhadores de imprensa em geral e ativistas políticos.

Durante o regime de Mubarak houve muitas formas de censura, como pressão sobre os editores, proibições de impressão de determinados números em particular, confisco de edições diárias, hostilidades contra jornalistas e apreensão de seus pertences”, contou Ramy Raoof, diretor de mídia na internet para a Iniciativa Egípcia de Direitos Pessoais. “Estas coisas continuam ocorrendo, mas com diferentes funcionários. No lugar do pessoal do Ministério do Interior, entra o do sistema militar. Por exemplo, no dia 22 de fevereiro de 2011, uma carta da Marinha enviada aos jornais egípcios dizia, de modo resumido, que não publicassem nada sobre o exército”, afirmou Raoof à IPS.

Os códigos de imprensa da maioria dos países árabes pretendem respeitar a liberdade de imprensa, mas na realidade deixam amplos espaços para serem violados pelos regimes da vez. Alguns de seus artigos, como ‘desmoralizar a nação’, são usados muito nos últimos tempos na Síria. Acusar ativistas de traição ou de cooperar com inimigos estrangeiros é outra acusação à qual se recorre frequentemente”, esclareceu Mhanna.

No entanto, um ano depois do começo da Primavera Árabe, quando vários países lutam para construir um futuro democrático e em outros continuam ocorrendo manifestações reclamando democracia, ainda é difícil para os jornalistas fazerem seu trabalho.

Agora “os jornalistas podem expressar suas opiniões com maior liberdade porque quebraram a barreira do medo. Porém, continua sendo perigoso expressar sua opinião onde as revoluções conseguiram derrubar o regime ou onde cresce o peso de grupos religiosos extremistas”, alertou Mhanna. “De certa forma, mudou a natureza da censura. Agora, são perigosas as consequências do que escreve ou diz um jornalista”, acrescentou.

Envolverde/IPS

sábado, 21 de janeiro de 2012

Classe e capitalismo no Golfo - A Economia Política do Conselho de Cooperação do Golfo

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012 - Adam Hanieh - redecastorphoto

Adam Hanieh (entrevistado por Ed Lewis), Socialist Register, New Left Project Class and Capitalism inthe Gulf – The Political Economy of the GCC
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


- Para o senhor, os seis estados do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) – Arábia Saudita, Kuwait, Emirados Árabes Unidos, Qatar, Bahrain e Omã – são o centro político e econômico do Oriente Médio, mas não só pelas reservas de petróleo. O que, para o senhor, explica que os estados do Golfo tenham assumido essa posição de centralidade?
Há aí vários fatores. Primeiro, claro, o petróleo. Os estados do CCG estão entre os maiores fornecedores de gás e petróleo do mundo. Os números variam, mas pode-se dizer, repetindo o número mais citado, que 40-45% das reservas comprovadas de petróleo do mundo estão nos países do CCG, e 20% de todo o gás do mundo. Atualmente, se extrai ali cerca de 20% do petróleo extraído no mundo. Dada a importância dos combustíveis fósseis – como fonte de energia e matéria prima para a indústria petroquímica –, é enorme a importância dessa região para os padrões de acumulação da economia global.

Oriente Médio - mapa político

Outro fator, relacionado ao primeiro, são os altos níveis de capital excedente que acorreram para aquela região, como resultado das vendas de cru, gás e petroquímicos. Esses “petrodólares” foram fator-chave no desenvolvimento da arquitetura financeira global. Não é novidade. Durante os anos 1970s os fluxos financeiros que saíam do Golfo foram parte essencial do desenvolvimento dos mercados do eurodólar (depósitos em dólares norte-americanos em bancos fora dos EUA) e também como lastro para os bônus do Tesouro dos EUA (sobre isso, ver o trabalho de David Spiro). Assim, os petrodólares foram fator chave para empurrar adiante a hegemonia do dólar norte-americano e dar sustentação aos desequilíbrios financeiros globais que caracterizaram o mercado mundial ao longo das últimas décadas. A rápida financeirização da economia global, portanto, dependeu, em parte, da integração dos países do CCG no mercado mundial e nos circuitos financeiros.

Isso implica que o modo como o mercado mundial desenvolveu-se ao longo das últimas poucas décadas, com complexas cadeias de produção que iam da manufatura de bens em áreas de baixos salários, até a venda de commodities nos países capitalistas avançados, depende fortemente da produção de commodity do Golfo, tanto quanto de excedentes financeiros. Nesse sentido, as classes e o Estado na região do CCG constituíram paralelamente (e a formação de ambos é estreitamente ligada) ao desenvolvimento mais amplo do mercado capitalista mundial.

Por tudo isso, os países do Conselho de Cooperação do Golfo são altamente significativos em escala global. Mas, propriamente no Oriente Médio e no Norte da África, houve algumas transformações fundamentais ao longo das décadas recentes; e essas transformações dão caráter muito particular ao papel que o Golfo desempenha dentro da região.

O traço mais marcante das duas últimas décadas foi a generalização de políticas neoliberais em praticamente todos os estados da região. Aconteceu cooperação entre o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, grupos regionais como o Conselho Empresarial Árabe do Fórum Econômico Mundial e o Conselho da Agenda Regional sobre Oriente Médio e Norte da África, além de outras instituições bilaterais, como a USAID. Políticas chaves dentre essas políticas neoliberais foram: a liberalização das leis de propriedade, sobretudo nos setores imobiliário, financeiro e de telecomunicações, o que abriu caminhos para fortes fluxos de investimento externo; a privatização de indústrias estatais; reformas nos regimes tributários; fim dos subsídios para alimentos e energia; e o relaxamento de barreiras comerciais.

MENA (em azul)

Essas políticas tiveram acentuado impacto em escala nacional, o que levou ao empobrecimento das populações, por um lado; e, por outro lado, levou à concentração da riqueza. Em muitas economias árabes houve forte crescimento do setor ‘informal’, e migração de centenas de milhares de pessoas para áreas urbanas (ou através de fronteiras), à medida que se foi tornando mais difícil extrair da terra a sobrevivência. A estreita relação que liga a região MENA [orig. Middle East/North of Africa] ao mercado mundial – caracterizada pelo desenvolvimento orientado para as exportações, migrações e oscilação nos preços dos alimentos e da energia – expôs muitos países aos ventos da economia global. Todos esses fatores são relevantes para que se possa entender como a região foi atingida pela crise econômica de 2008, e o possível impacto, nessa parte do mundo, do atual torvelinho que sacode a economia global.

Mas o fator mais importante, é que essas medidas neoliberais não apenas reconfiguraram o poder de classe em escala nacional. Elas reconfiguraram o poder de classe também em escala regional. No Oriente Médio não se pode entender o “estado-nação” como uma economia política limitada internamente, sem considerar os laços que unem todas as economias ‘nacionais’ numa escala regional mais ampla. Há vários aspectos importantes a destacar aqui, mas o fundamental é a rápida internacionalização do capital baseado nos países do CCG, sobretudo depois do aumento dos excedentes financeiros que começou em 1999 e chegou ao pico em 2008. Claro que o núcleo do capital excedente do CCG continua a ser investido fora da região. Mas, nas duas últimas décadas, muitos daqueles fluxos foram dirigidos para outros estados do Oriente Médio. Tomado na escala regional – o CCG foi um dos principais beneficiários da cerca de uma década de privatização, desregulação e abertura dos mercados.

Alguns números ajudam a ilustrar. No período 2008-2010, segundo números do banco de dados Anima, da União Europeia, que rastreia investimentos na região, o Conselho de Cooperação do Golfo, como bloco, foi a principal fonte de investimento externo direto [orig. FDI] para Egito, Jordânia, Líbano, Líbia, Palestina, Tunísia, e a segunda para Marrocos e Síria. Em 2010, o capital baseado em países do CCG foi responsável por todos os grandes projetos alimentados com investimento externo direto anunciados na Argélia, Líbano, Líbia e Tunísia. São números impressionantes. E não se incluem aí os investimentos nos portfólios de ações na região ou outras formas de “empréstimos para o desenvolvimento” que fluem do Golfo para o resto do Oriente Médio. Deve-se observar também que, ao contrário do que pretendem muitos, esses fluxos não são necessariamente dirigidos por fundos soberanos ou empresas estatais dos países do CCG. Grande proporção daqueles fluxos vem de capitais privados nos países do CCG dirigidos a grandes projetos imobiliários, instituições financeiras, shopping-centers, telecomunicações e outros investimentos.

Os processos que comentei até aqui foram acentuados pela diferenciação regional cada vez mais marcada, que começou nos primeiros momentos da crise econômica de 2008. No próprio CCG, embora tenha havido alguns pequenos desastres financeiros causados por alto endividamento em alguns grandes conglomerados, o principal efeito da crise foi reforçar a posição das classes dominantes do Golfo. A natureza da formação de classe nos países do CCG (mais sobre isso, adiante) deslocou a crise na direção dos trabalhadores migrantes; e isso, somado ao apoio estatal que receberam as grandes entidades financeiras e industriais, significou que as elites do Golfo mantiveram-se fortemente protegidas contra os piores impactos dos tumultos econômicos.

A experiência da crise, diferente em diferentes partes da região, indica não só o relativo fortalecimento dos maiores conglomerados e das famílias reinantes do Golfo, mas, também, o alargamento da fissura que separa os estados do CCG e outros estados no Oriente Médio. Isso indica que o neoliberalismo, observado na escala regional, teve dois efeitos: enriqueceu as classes capitalistas nacionais e, simultaneamente, consolidou a posição do CCG, como bloco, dentro da região.


- De que modo o relacionamento entre o CCG e as potências externas, sobretudo os EUA, mas também outras, modela hoje a política interior, entre os estados do Oriente Médio?
Como já dissemos, a importância do CCG para o mercado mundial foi aumentada com a maior internacionalização e a financeirização do capital no plano global. Indicação disso é a deriva rumo ao leste do petróleo do Golfo e dos petroquímicos exportados, que desempenhou papel importante no processo de conter a produção chinesa. De 2000 a 2006, o consumo de energia no mundo aumentou cerca de 20%, com, só a China, responsável por 45% do aumento da energia consumida no mundo nesse período Em 2007, cerca de 50% das importações chinesas de petróleo cru saíam do Oriente Médio. Hoje, metade de todo o petróleo que a Arábia Saudita extrai vai para a China, mais do que os sauditas exportam para os EUA; e em 2025 as importações chinesas de petróleo do Golfo devem equivaler a três vezes as importações dos EUA dessa região. O fluxo de excedentes financeiros do CCG para os mercados dos países de capitalismo avançado acompanha essas exportações de hidrocarbonetos.

No contexto de relativo declínio do poder dos EUA, e com a emergência de um mundo cada vez mais multiplolar, isso significa que o ‘bloco’ CCG (e, por extensão, o Oriente Médio) é zona chave para decidir que rumo tomarão as rivalidades entre os principais países capitalistas em disputa. Por isso, precisamente, a estratégica de longo prazo dos EUA põe em lugar central o estreito relacionamento militar e político com os estados do CCG. Esse relacionamento foi forjado no pós-II Guerra Mundial, mas continuou a aprofundar-se durante os anos 1980s (de fato, a própria formação do CCG em 1981 foi em grande parte uma consolidação dos estados do Golfo sob o guarda-chuva militar dos EUA, no contexto da guerra Irã-Iraque). O domínio na região foi fator estratégico chave nas invasões do Iraque e do Afeganistão comandadas pelos EUA e também é fator estratégico importante nas atuais disputas pelo controle da Ásia Central.

A crescente beligerância contra o Irã também tem de ser analisada sob essa luz. O anúncio, pelos EUA, há poucas semanas, de que reposicionarão suas forças militares localizadas no Iraque, para estados do CCG, é mais uma confirmação. Os estados do CCG já hospedam, hoje, a 5ª-Frota dos EUA (no Bahrain) e o quartel-general avançado do Comando Central dos EUA (Centcom) (no Qatar) – responsáveis por todo o engajamento militar, pelo planejamento e por operações em 27 países, do Chifre da África à Ásia Central. As monarquias do CCG dependem absolutamente da proteção militar que os EUA lhes dão, e dependem também de firme apoio político do ocidente (como mostra a reação contra o levante popular no Bahrain). Evidentemente, há rivalidades e pontos de tensão nas relações entre os EUA e os países do DDG (como há também entre os próprios estados do ‘bloco’ CCG), mas o ponto central é que esse relacionamento é fator decisivo para o domínio dos EUA em escala global.

Esse é o quadro geral para que se possa entender como os EUA e outras potências estrangeiras veem o Oriente Médio como um todo. Outras explicações – como os argumentos ocos e, na essência, liberais, sobre um “lobby israelense” que se supõe que ‘mande’ na construção da política externa dos EUA – são falsas explicações que nada explicam e, em minha opinião, devem ser descartadas.

Mas também as rivalidades entre estados que competem no mercado do mundo capitalista também de ser vistas à luz, também, de interesses que aqueles estados compartilham. A formação de classe nos CCG é profundamente atravessada pelo desenvolvimento do capitalismo como processo total, e o maior medo de qualquer dos países que hoje lideram o mercado mundial – mercado que, vale lembrar, inclui a China e a Rússia – é que haja alguma mudança significativa naquela estrutura de classe.

Em outras palavras, uma preocupação da qual partilham todos os grandes estados capitalistas é assegurar que os estados que constituem o CCG permaneçam completamente alinhados com os interesses do capitalismo mundial. As políticas das grandes potências no Oriente Médio, por isso, têm um caráter duplo: por um lado, todas querem ampliar seus interesses específicos competitivos; e, por outro lado, todas trabalham de modo cooperativo para evitar qualquer tipo de ‘desafio’ popular que sugira que a riqueza regional venha a ser usada para beneficiar mais as massas pobres, que a microscópica camada das elites parasitas ricas. Esse é o significado profundo dos levantes que ocorreram ao longo de 2011.


- Exceto o Bahrain, os estados do Golfo são conhecidos por apresentar baixo nível de insatisfação política, o que dá aos regimes autoritários assento firme no poder, apesar das profundas desigualdades materiais. Por quê? Será mais o resultado de fatores domésticos, ou é resultado modelado significativamente pelo tipo de relacionamento que há entre o Golfo e a ordem global?
Há uma história oculta e em boa parte esquecida, das importantes lutas sociais no Golfo. Dos anos 1950s aos anos 1970s, houve vários bem organizados movimentos de militantes árabes nacionalistas e de grupos de esquerda na região. Vê-se a importância desses movimentos, para mencionar apenas alguns, nas greves e manifestações de protesto nos campos de petróleo sauditas, na guerrilha na região de Dhofar em Omã, e no amplo apoio, no Kuwait e em toda a região, à luta dos palestinos. Sempre houve forte solidariedade nas populações do Golfo à causa palestina e a causas árabes nacionalistas, quase sempre associadas à presença de trabalhadores árabes palestinos, egípcios, sírios, do Iêmen etc.

Esses movimentos sempre foram reprimidos pelas monarquias no poder (apoiadas fortemente por assessores britânicos e norte-americanos). Mas, além da repressão, também se viu uma transformação na natureza do mercado de trabalho na região, que se tornou bem evidente ao longo dos anos 1980s e 1990s. Durante esse tempo, sobretudo depois das deportações feitas nos anos da Guerra do Golfo de 1990-1991, houve uma deriva, de operários árabes, que se converteram em trabalhadores migrantes temporários no sul e no leste da Ásia. Esses trabalhadores deslocados assinavam contratos de trabalho de curto prazo, quase sempre eram alojados em campos distanciados de qualquer contato com a população local e submetidos a restrições de todos os direitos trabalhistas e políticos. Em muitos casos, sobretudo nos setores nos quais os salários são mais baixos, esses trabalhadores migrantes sequer podiam levar a família.

Hoje, os estados do Golfo dependem muito fortemente desse tipo de trabalho migrante temporário (cerca de 70% dos trabalhadores vindos do sul e leste da Ásia, e 30%, do Oriente Médio (proporção que é praticamente o inverso do que se via em meados dos anos 1970s). Esses fluxos de trabalho diferem dos fluxos de migração permanente que se veem em outras partes do mundo, porque são migrações de curto prazo, não se discutem nesse caso qualquer tipo de direitos de cidadania, e tudo se faz com vistas a conseguir mandar a maior quantidade possível de dinheiro para o país de origem dos trabalhadores. Em todos os estados do CCG, os trabalhadores migrantes temporários representam mais da metade de toda a força de trabalho; e em quatro deles (Kuwait, Qatar, Omã e Emirados Árabes Unidos) os trabalhadores migrantes temporários ultrapassam os 80% da força de trabalho local. Fluxos de trabalho temporário que dependem quase completamente da estrutura do trabalho que se vê ali, associam firmemente as regiões exportadoras de trabalho aos padrões de acumulação típicos do CCG.

A relativa estabilidade e a ‘adaptabilidade’ do capitalismo no Golfo e de suas elites governantes estão intimamente conectadas àquela estrutura de classes. Altos níveis de exploração são possíveis, porque o visto de residente para o trabalhador é diretamente associado a manter-se empregado. Se desempregado, o trabalhador torna-se ‘ilegal’ e tem de deixar o país. Em outras palavras, uma vez que o direito de permanecer no país é condicionado ao emprego, o empregador tem imenso poder desigual sobre o trabalhador. Além disso, a reprodução generacional de classe é muito fragmentada, porque os trabalhadores quase sempre voltam para casa ao final dos contratos – laços de memória ou de solidariedade de classe são muito frágeis, e a ação coletiva é quase impossível, ou muito difícil. E há também restrições legais que impedem ações de classe: os sindicatos são absolutamente proibidos na Arábia Saudita e nos Emirados Árabes Unidos; e muito limitados nos demais estados.

Contrariamente ao quadro geralmente aceito dessas sociedades, a pobreza relativa não existe entre os cidadãos de países como a Arábia Saudita (e nos demais países do Golfo). Mas a ausência de uma classe trabalhadora de cidadãos locais implica que as lutas políticas não têm efetiva base social. O conflito político nesses estados (exceto no Bahrain, que discutirei adiante) assim origina-se em geral da discórdia dentro da elite (como entre diferentes ramos da família real, e os conflitos entre intelectuais religiosos e a monarquia) ou entre movimentos islamistas – não de alguma ampla luta de classes. Essa relativa calma política pode ser comparada à situação em dois países vizinhos, também ricos em petróleo, o Iraque e o Irã, onde a classe trabalhadora tem longa história de mobilização e de persistente oposição às políticas ocidentais no Golfo e, em geral, no Oriente Médio.

Podem-se ver as implicações disso na reação à crise econômica de 2008. Imediatamente depois da eclosão da crise, os estados do Golfo praticamente não conheceram protestos ou fúria populares. É indiscutível verdade que alguns projetos muito propagandeados foram suspensos, que o consumo despencou e que vários negócios cerraram as portas – mas a população de cidadãos passou pela crise sem maiores danos. O que se viu foi uma diminuição na contratação de trabalhadores migrantes e – por exemplo em Dubai – milhares deles foram mandados para casa. Isso implica dizer que a real dor da crise só foi sentida nos números sempre crescentes de desempregados nas regiões em volta do Golfo.

O Bahrain, porém, é importante exceção parcial a esse padrão. O Bahrain tem menos riqueza auferida do petróleo que outros estados do CCG (só 0,03% das reservas comprovadas do CCG), e as peculiaridades de seu desenvolvimento histórico deixam ver uma considerável divisão sectária entre uma elite governante sunita (dominada pela monarquia Al Khalifa) e a população majoritariamente xiita. Apesar disso, a estrutura social no Bahrain não é efeito de algum conflito religioso persistente entre xiitas e sunitas (como em geral se lê na imprensa, e é a versão divulgada pela monarquia bahraini). De fato, a discriminação contra a maioria xiita que vive no país não pode ser compreendida se não se consideram as vias da formação das classes no país. Enquanto o país continua a depender pesadamente do trabalho migrante – em 2005, cerca de 58% da população do Bahrain eram trabalhadores migrantes não cidadãos – a maioria da população xiita permanece desempregada, é extremamente pobre e enfrenta dura discriminação sistêmica.

Em anos recentes, viu-se no Bahrain uma longa e mais avançada experiência de neoliberalismo (se comparada à dos outros estados do CCG). Isso acentuou muito o desenvolvimento capitalista desigual – aumentando as distâncias entre os cidadãos mais pobres (concentradamente xiitas) e as elites do setor privado e do estado, que se beneficiaram da posição do Bahrain, como “a economia mais livre do Oriente Médio” (segundo o índice de liberdade econômica da Heritage Foundation 2010). Em 2004, o Bahrain Centre for Human Rights estimava que mais da metade dos cidadãos bahraini viviam na pobreza e, simultaneamente, os 5.200 bahrainis mais ricos acumulavam, somada, riqueza de mais de $20 bilhões. O caráter mais proletarizado da população de cidadãos bahrainis, que se sobrepõe às vítimas da discriminação sectária, e tem sido reforçado pelo profundo impacto do neoliberalismo, explica que movimentos de esquerda e de caráter trabalhista continuem a ser significativo no país. Em períodos de poucos anos, e repetidamente, acontecer grandes greves e levantes de trabalhadores no país – e a intifada de 2011 é o exemplo mais recente.

Mas a importância do Bahrain estende-se além do próprio país. Há considerável população xiita na província leste da Arábia Saudita, região rica em petróleo – bem próxima da fronteira do Bahrain. Nessa região houve protestos no início de 2011, e há grande temor entre os estados do Golfo (e entre as potências ocidentais que os apóiam) de que um movimento bem sucedido no Bahrain deflagraria lutas semelhantes na Arábia Saudita e em outros pontos. Isso explica a furiosa repressão desfechada contra o povo bahraini ao longo de 2011, que incluiu envio de tropas sauditas, dos Emirados Árabes Unidos e do Qatar ao país, para sufocar o levante. Mas não há dúvidas de que a história dos levantes no Bahrain ainda não terminou.


- Que importância tem a batalha pelos preços do petróleo? Que interesses estão em jogo, e como isso modela as políticas dos estados da região e as políticas externas das potências estrangeiras (dos EUA, por exemplo)?
Os fatores que determinam o preço do petróleo têm a ver com a oferta de diferentes tipos de petróleo e de outras fontes de energia, com a demanda global, com níveis de capital investido na indústria, com especulação e com a situação política no Oriente Médio. Tem havido tendência geral de alta desde 1999 (pontuada por forte queda logo depois do início da crise econômica de 2008) e, se as estimativas de oferta e procura globais são acuradas, o preço deve permanecer alto no médio prazo.

Petróleo caro mantém forte correlação com períodos de recessão, e como os anos 1970s mostraram, os países que mais dependam de petróleo importado podem ser duramente atingidos pelos preços altos. De fato, esse foi fator importante (facilitado em parte pela reciclagem dos petrodólares do Golfo) na explosão da dívida do sul, dos anos 1970s em diante. A tendência de alta dos preços dos alimentos que se vê hoje (em parte ligada ao preço dos hidrocarbonetos) indica que altos preços do petróleo pode ter impacto devastador, em vários sentidos.

O verso dessa medalha é, porém, o interesse que os estados do Golfo (e, claro, também as empresas de petróleo) tem em conseguir preços máximos. Há várias estimativas de qual seria o ‘ponto de equilíbrio’ para os estados do Golfo – o preço mínimo do petróleo para que aqueles estados cumpram seus compromissos fiscais. O FMI estimava, em 2008, que a Arábia Saudita precisava do petróleo a $49/barril para equilibrar seu orçamento fiscal naquele ano. Os valores mais baixos estimados pelo FMI para os estados do Golfo foram $23 para os Emirados Árabes Unidos e $33 para o Kwait; os mais altos $75 para o Bahrain e $77 para Omã. Na média, os países do CCG precisavam vender petróleo a $47/barril. Mas essas estimativas, muito provavelmente, são baixas demais. Temos de lembrar que os estados do CCG lançaram massivos programas de gastos, logo no início dos levantes, para tentar conter qualquer tipo de insatisfação popular interna. O Institute of International Finance, associação que reúne os maiores bancos do mundo, estimava, em março de 2011, que a Arábia Saudita precisaria vender o barril de petróleo, em média, a $88, em 2011 para que as contas do estado fechassem equilibradas. A Arábia Saudita é produtor chave, porque é dos poucos estados com potencial para aumentar a oferta mundial e, assim, fazer cair o preço do petróleo (embora alguns analistas da indústria discutam se essa possibilidade realmente existe e dizem que as reservas sauditas teriam sido superestimadas). Em resumo, há inúmeros diferentes fatores, interligados aqui de modo complexo. Mas me parece que o cenário mais provável em futuro próximo é alta continuada de preços e crescimento continuado de excedentes nos estados do CCG.


- A “Primavera Árabe” pode ameaçar o equilíbrio regional de poder e o equilíbrio das forças de classe dentro dos estados do Golfo?
Esse é, precisamente, o verdadeiro potencial dos levantes que se viram ao longo de 2011. Os dois processos que comentei – o peso crescente da economia regional e o impacto diferenciado da crise global – implicam a impossibilidade de tratar as escalas nacional e regional como esferas políticas diferentes. O que se vê à superfície como lutas ‘nacionais’ limitadas dentro de estados-nação individualizados, cresce inevitavelmente e desafia as hierarquias regionais mais amplas. Nesse contexto aconteceram os levantes da ‘Primavera Árabe’.

Há aí diferentes aspectos. Por um lado, pode-se ver o papel dos EUA e outras potências estrangeiras na região e, muito importante, também a posição de Israel. Os levantes (sobretudo o dos egípcios) fazem frente a todos esses aspectos, porque os regimes que estão sendo desafiados eram centrais para o modo como essa ordem regional foi construída. É errado, portanto, ver nos levantes exclusivamente uma questão de ‘democracia’ – como se a luta ‘política’ pudesse ser separada da luta ‘econômica’, ou a luta ‘nacional’, da luta ‘regional’.

E o mesmo se pode dizer do papel que os estados do CCG desempenham na economia política regional. Não estou dizendo que os slogans e demandas dos levantes visassem explicitamente os estados do CCG dessa maneira (ou que visassem explicitamente os EUA ou Israel), mas eles tinham, em sua lógica própria, um desafio implícito à ordem regional, que se veio desenvolvendo ao longo das duas últimas décadas.

As estruturas sociais que caracterizavam o regime político no Egito, na Tunísia e em outros pontos eram, elas mesmas, parte do modo como o Conselho de Cooperação do Golfo – associado à dominação pelas potências estrangeiras e à posição de Israel – estabeleceu o seu lugar baseado nas hierarquias do mercado regional. As lutas contra a ditadura que os levantes populares fizeram são, simultaneamente, interconectadas ao modo como o capitalismo desenvolveu-se em toda a região e, nesse sentido, são lutas contra o Golfo.

Isso explica as tentativas furiosas que os estados do Conselho de Cooperação do Golfo fizeram para conter e esvaziar os levantes – são tentativas absolutamente centrais na onda contrarrevolucionária que se vê hoje na região.

Parece-me que se pode dizer, convincentemente, que o imperialismo na região está articulado com – e em larga medida opera através dos – estados do CCG. A invasão da Líbia, em operação conduzida pela OTAN, é claro exemplo disso, com o Qatar e os Emirados Árabes Unidos, em especial, desempenhando papel importante naquela invasão. Os estados do Golfo enviaram soldados, dinheiro e equipamento e – mais importante – encarregaram de garantir legitimidade política para o ataque à Líbia. Há vários outros exemplos – dentre outros, nos bilhões de dólares que os estados do Golfo prometeram aos regimes no Egito e na Tunísia; a intervenção militar no Bahrain; o convite a Jordânia e Marrocos, para que se juntem ao CCG (com o quê, todas as monarquias reacionárias da região ficam afinal reunidas num só bloco); e o papel central do CCG nas tentativas para mediar e controlar os levantes na Síria e no Iêmen. E, talvez o mais importante, as ameaças sempre crescentes que estão sendo feitas contra o Irã. De fato, a questão do Irã é tanto questão do CCG, quanto de Israel.

Portanto, sim, os levantes representam real possibilidade de alterar a ordem regional. O Egito, com sua ampla e bem organizada classe trabalhadora e organizações de esquerda muito mais fortes, é ponto chave da luta. Mas, voltando aos temas acima, no longo prazo não há soluções ‘nacionais’ para os grandes problemas do desenvolvimento desigual que o Oriente Médio e o Norte da África enfrentam. Esses problemas exigem solução pan-regional, e – e aqui está o ponto central – essa solução pan-regional implica confrontar a posição dos estados do CCG, que é o núcleo duro do capitalismo na região.