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quarta-feira, 5 de março de 2014

Um cheiro de cinzas no ar

28/02/2014 - Saul Leblon - Carta Maior

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Fica difícil afastar a percepção de que o carnaval conservador saltou para a dispersão sem passar pela apoteose. O cheiro de cinzas no ar é inconfundível.

Como parte interessada, a mídia jamais reconhecerá no fato o seu alcance: mas talvez o Brasil tenha assistido nesta 5ª feira [27 fev] a uma das mais duras derrotas já sofridas pelo conservadorismo desde a redemocratização.

Quem perdeu não foi a ética, a lisura na coisa pública ou a justiça, como querem os derrotados.

A resistência conservadora a uma reforma política, que ao menos dificultasse o financiamento privado das campanhas eleitorais, evidencia que a pauta subjacente ao julgamento da AP 470 tem pouco a ver com o manual das virtudes alardeadas.

O que estava em jogo era ferir de morte o campo progressista

Não apenas os seus protagonistas e lideranças.

Mas sobretudo, uma agenda de resiliência histórica infatigável, com a qual eles seriam identificados.

Ela foi golpeada impiedosamente em 54 e renasceu com um único tiro; foi golpeada em 1960 e renasceu em 1962; foi golpeada em 1964, renasceu em 1988; foi golpeada em 1989, renasceu em 2003; foi golpeada em 2005 e renasceu em 2006, em 2010...

O  que se pretendia desta vez, repita-se, não era exemplar cabeças coroadas do petismo, mas um propósito algo difuso, e todavia persistente, de colocar a luta pelo desenvolvimento como uma responsabilidade intransferível da democracia e do Estado brasileiro.

A derrota conservadora é superlativa nesse sentido, a exemplo dos recursos por ela mobilizados - sabidamente nada modestos.

Seu dispositivo midiático lidera a lista dos mais esfarrapados egressos da refrega histórica.

Se os bonitos manuais de redação valessem, o  desfecho da AP 470  obrigaria a mídia ‘isenta’ a regurgitar as florestas inteiras de celulose que consumiu com o objetivo de espetar no PT o epíteto eleitoral de ‘quadrilha’.

Demandaria uma lavagem de autocrítica.

Que ela não fará.

Tampouco reconhecerá que ao derrubar a acusação de quadrilha, os juízes que julgam com base nos autos desautorizariam implicitamente o uso indevido da teoria do domínio do fato, que amarrou toda uma narrativa largamente desprovida de provas.

Se não houve quadrilha, fica claro o propósito político prévio de emoldurar a cabeça do ex-ministro José Dirceu no centro de uma bandeja eleitoral, cuja guarnição incluiria nomes ilustres do PT, arrolados ou não na AP 470.

O banquete longamente preparado será degustado de qualquer forma agora.

Mas fica difícil afastar a percepção de que o carnaval conservador saltou direto da concentração para a dispersão sem passar pela apoteose.

Aqui e ali, haverá quem arrote peru nos camarotes e colunas da indignação seletiva.

O cheiro de cinzas, porém, é inconfundível e contaminará por muito tempo o ambiente político e econômico do conservadorismo.

O  que se pretendia, repita-se, não era apenas criminalizar fulano ou sicrano, mas a tentativa em curso de enfraquecer o enredo que os mercados impuseram ao país de forma estrita e abrangente no ciclo tucano dos anos 90.

Inclua-se aí a captura do Estado para sintonizar o país à modernidade de um capitalismo ancorado na subordinação irrestrita da economia, e na rendição incondicional da sociedade, à supremacia das finanças desreguladas.

O Brasil está longe de ter subvertido essa lógica. Mas não por acaso, a cada três palavras que a ortodoxia pronuncia hoje, uma é para condenar as ameaças e tentativas de avanços nessa direção.

O jogral é conhecido: “tudo o que não é mercado é populismo; tudo o que não é mercado é corrupção; tudo o que não é mercado é inflacionário, é ineficiência, atraso e gastança”.

O eco desse martelete percorreu cada sessão do mais longo julgamento da história brasileira.

Assim como ele, a condenação da política pelas togas coléricas reverberava a contrapartida de um anátema econômico de igual veemência,  insistentemente lembrado pelos analistas e consultores: “o Brasil não sabe crescer, o Brasil não vai crescer, o Brasil não pode crescer - a menos que retome e conclua  as ‘reformas’”.

O eufemismo cifrado designa o assalto aos direitos trabalhistas; o desmonte das políticas sociais; a deflagração de um novo ciclo de privatizações e a renúncia irrestrita a políticas e tarifas de indução ao crescimento.

Não é possível equilibrar-se na posição vertical em cima de um palanque abraçado a essa agenda, que a operosa Casa das Garças turbina para Aécio - ou Campos, tanto faz.

Daí o empenho meticuloso dos punhais midiáticos em escalpelar os réus da AP 470.

Que legitimidade poderia ter um projeto alternativo de desenvolvimento identificado com uma  ‘quadrilha’ infiltrada no Estado brasileiro?

Foi essa indução que saiu seriamente chamuscada da sessão do STF na tarde desta 5ª feira. [27 fev]

Os interesses econômicos e financeiros que a desfrutariam continuam vivos.

Que o diga a taxa de juros devolvida esta semana ao degrau de 10,75%, de onde a Presidenta Dilma a recebeu e do qual tentou rebaixá-la, sob fogo cerrado da república rentista e do seu jornalismo especializado.

Sem desarmar a bomba de sucção financeira essas tentativas tropeçarão ciclicamente em si mesmas.

Os quase 6% que o Estado brasileiro destina ao rentismo anualmente, na forma de juros da dívida pública, dificultam sobremaneira desarmar o círculo vicioso do endividamento, do qual eles são causa e decorrência. 

É o labirinto do agiota: juro sobre juro leva a mais juro. E mais alto.

Dessa encruzilhada se esboça a disputa entre dois projetos distintos de desenvolvimento.

A colisão entre as duas dinâmicas fica mais evidente quando a taxa de crescimento declina ou ocorrem mudanças de ciclo na economia mundial, estreitando adicionalmente a margem de manobra do Estado e das contas externas.

É o que a América Latina, ou quase toda ela, experimenta  nesse momento.

A campanha eleitoral deste ano prestaria inestimável serviço ao discernimento da sociedade se desnudasse esse conflito objetivo, subjacente à guerra travada diante dos holofotes no julgamento da AP 470.

O conservadorismo foi derrotado. Mas não perdeu seus arsenais.

Eles só serão desarmados pela força e o consentimento reunidos das grandes mobilizações democráticas. 

As eleições de outubro poderiam funcionar como essa grande praça da apoteose.
A ver.

Fonte:
http://www.cartamaior.com.br/?/Editorial/Um-cheiro-de-cinzas-no-ar/30369

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Aos médicos cubanos: escárnio é o nome do jogo

17/02/2014 - O nome disso é escárnio - Saul Leblon - Carta Maior

Algo outrora inescapável do epíteto de um escárnio contra o povo brasileiro está em curso nos dias que correm.

O ruído que provoca - tanto das fileiras do governo, quanto nas de segmentos que se avocam à esquerda dele - é incompreensivelmente desproporcional a sua gravidade.

Que as sininhos não badalem e, igualmente, seus carrilhões silenciem, é ilustrativo do fosso existente entre o inflamável alarido anti-Copa bimbalhada nas ruas e a real preocupação com o futuro do país e a sorte da população.
   
A Associação Médica Brasileira [AMB], em sintonia com a embaixada dos EUA e aliada à coalizão demotucana, tendo respaldo e torcida da mídia, opera abertamente para destruir um programa de saúde pública emergencial voltado às regiões e contingentes mais vulneráveis do país.

Não há resguardo das intenções, nem pudor na propaganda da ação.

A entidade que se proclama representante da corporação médica brasileira acolhe e viabiliza deserções de profissionais cubanos fisgados  pelo redil conservador em diferentes regiões e municípios.

O Estado brasileiro  investirá este ano R$ 1,9 bi em recursos públicos nesse programa, para agregar 43 milhões de atendimentos/ano ao SUS a partir de abril, quando o Mais Médicos atingirá seu efetivo pleno, com mais de 13 mil profissionais em ação, sendo seis mil cubanos.

A embaixada dos EUA no Brasil - em sintonia com a Associação Médica e lideranças dos partidos conservadores - opera abertamente para que não seja assim.

O tripé orienta e encaminha pedidos de vistos especiais, a toque de caixa, para que o maior número de desistentes possa rumar a Miami, onde os espera a estrutura da ‘Solidariedade Sem Fronteiras’.

A ONG de fachada humanitária tem como principal negócio – financiado por recursos orçamentários que a bancada cubana assegura no Congresso - promover e operar deserções em convênios de saúde firmados entre Havana e 66 países nesse momento.


São mais de 43 mil médicos cubanos em ação na América Latina, Ásia e África. Devem atingir um recorde de 50 mil em dois meses, quando o convênio brasileiro estiver plenamente implantado.

Um aspecto da remuneração desses profissionais deliberadamente pouco divulgado é que nem todos os convênios internacionais de Havana são pagos.

Na verdade, dos 66 países assistidos nesse momento apenas 26 se enquadram no que se poderia chamar de prestação de serviços pagos.

Outros 40 países recebem contingentes médicos gratuitamente.

O mesmo ocorre com missões de educação ou esporte.

A ‘exportação’ de serviços rende a Havana, segundo a chancelaria cubana, cerca de US$ 6 bi/ano (três vezes mais que a segunda fonte de divisas do país, representada pelo turismo).

A exportação de serviços pagos - principalmente na área de saúde – financia as missões solidárias destinadas a países de extrema precariedade econômica e material ou focadas em situações de calamidade devastadora.

É assim desde 1960, quando Cuba enviou sua primeira missão de solidariedade ao Chile, vítima de um terremoto.

Eis a principal razão para a diferença entre o salário efetivamente recebido pelo profissional de uma missão e aquilo que o governo cubano arrecada pelo serviço prestado.

Uma parte do saldo financia as missões gratuitas que, repita-se, são a maioria.

Outra sustenta a Escola Latino-americana de Medicina, que possuía em 2013 cerca de 14 mil alunos estrangeiros, gratuitamente cursando ou com subsídio quase integral.

Com pouco mais de 11 milhões de habitantes, Cuba investe pesado em pesquisa na área de saúde e formação de médicos: são quase 83 mil (1/138 habitantes).

O investimento tem duplo objetivo: zelar pela população que tem a menor taxa de mortalidade infantil do mundo, e gerar receita numa economia asfixiada há 50 anos pelo embargo comercial norte-americano.

Também isso se financia através das missões remuneradas.

A ideia de que a doutora Ramona Rodriguez [foto] possa ter desembarcado no Brasil desinformada dessas particularidades acerca de seu salario, subestima a conhecida determinação de Havana, de ressaltar interna e externamente aquela que é a marca inegável de sua ação internacional: a solidariedade.

A mesma alegação de ignorância tampouco se pode conceder – neste aspecto -  ao colunismo isento, que cuida de festejar as deserções – por ora pontuais - como se fossem o preâmbulo de uma diáspora libertária, em marcha épica rumo a Miami.

A participação da embaixada norte-americana no jogo de aliciamento e hipocrisia é ainda mais grave.

Trata-se de uma tentativa de sabotagem de um programa soberano de saúde pública emergencial, cujo desmonte poderá agregar novas vítimas e mais sofrimento num universo de milhões de brasileiros desassistidos.

Se a intrusão é desconcertante, não se pode dizer que surpreenda.

Quando o governo Lula decidiu quebrar a patente de anti-virais, em 2007, a embaixada norte-americana operou para sabotar a medida.

Agiu em contato direto com as múltis do setor farmacêutico, o Departamento de Estado do governo Bush e ‘amigos’ locais - não se sabe se os mesmos que hoje cerram fileiras com o duplo interesse de  implodir o ‘Mais Médicos’ e sangrar Havana.

Telegramas secretos da época, obtidos pela organização Knowledge Ecology International (KEI), revelam ameaças de represália enviadas então a Brasília:

“(...) uma licença compulsória pode fazer com que fabricantes de produtos farmacêuticos evitem introduzir novos remédios no mercado e seria mais difícil para o Brasil atrair os investimentos que tanto necessita", relatava um deles sobre o teor de reuniões com autoridades e políticos locais.

Lula oficializaria em maio de 2007 o licenciamento compulsório do anti-retroviral  Efavirenz, usado por 75 mil pacientes de Aids atendidos pelo SUS. Um genérico importado da Índia passou a ser usado ao preço de  US$ 0,45, contra US$ 1,59 cobrado pela multinacional norte-americana.  

Uma economia de US$ 30 milhões até 2012.

Volte-se um pouco mais no tempo, até as vésperas do golpe de 64, e lá estarão, de novo, os mesmos protagonistas, com idênticos propósitos.

O embaixador dos EUA, Lincoln Gordon, fileiras udenistas e lacerdistas, múltis do setor farmacêutico e sabujos da mídia, a ganir a pauta da estação.

Eram tempos de inflação galopante e dinheiro curto: a saúde corria risco.

O então ministro da Saúde, Souto Maior, lutava para obter uma redução de 50% sobre os preços de 70 medicamentos mais usados pela população.

Laboratórios das multinacionais abriram guerra contra o tabelamento.

Às favas a saúde: primeiro, os interesses das corporações.

Lembra algo do comportamento atual da embaixada que se orienta pelos mesmos valores e da Associação Médica Brasileira [AMB] que tanto quanto os abraça?

No famoso comício da Central do Brasil, sexta-feira, 13 de março de 1964, João Goulart decretou a expropriação de terras para fins de reforma agrária, encampou refinarias e anunciou estudos para fabricação estatal de medicamentos no país.

O conjunto era fiel aos preceitos do ‘sanitarismo-desenvolvimentista,’ abraçado então pelas fileiras progressistas da medicina brasileira.

Médicos como Samuel Pessoa, Mário Magalhães, Gentile de Melo e Josué de Castro – autor do clássico ‘Geografia da Fome‘ e primeiro secretário-geral da FAO, que faleceu no exílio, cassado pela ditadura e impedido de retornar ao Brasil mesmo para morrer – eram alguns de seus expoentes.

Profissionais que hoje seriam olhados com suspeita, enxergavam a luta pela saúde como indissociável da luta pela desenvolvimento econômico e humano do país.

Em setembro de 1963, Jango, com apoio deles, restringiu a remessa de lucros da indústria farmacêutica. Mister Lincoln Gordon foi à luta: a USAID retaliou no lombo da pobreza cortando a ajuda no combate à malária – que se destacava como uma das principais doenças tropicais na época.

A ofensiva apenas fortalecia as convicções dos sanitaristas-desenvolvimentistas.

Embora heterogêneos nas filiações ideológicas, seus  representantes entendiam que doença e pobreza caminhavam juntas.

Como tal deveriam ser enfrentadas em ações soberanas, abrangentes e desassombradas, que rompessem a fragmentária estrutura de uma sociedade retalhada por interesses que não eram os de seu povo. 

Compare-se isso com o sultanato de jaleco branco.

Esse que  hoje trata a saúde como um entreposto de camelos; alia-se ao conservadorismo mais retrógrado e tem na embaixada dos EUA um corredor de fuga em prontidão obsequiosa.

Bajulado pela mídia, o conjunto quer implodir o ‘Mais Médicos’.
  
O nome disso é escárnio.

E Brasília deveria dizê-lo claramente ao embaixador gringo, ao chamá-lo a prestar esclarecimentos sobre ingerência e sabotagem em assuntos internos.

Fonte:
http://www.cartamaior.com.br/?/Editorial/O-nome-disso-e-escarnio/30275

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, pois inexistem no texto original.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Elio Gaspari e, quem sabe, sua última chance

25/12/2013 - A convocação para 2014: Eliooo, o Heitor!
- Saul Leblon - Carta Maior

Em sua coluna natalina, neste 25 de dezembro de 2013, na Folha, o jornalista Elio Gaspari [foto] convoca protestos de rua para  2014.


O panfleto está encartado na Folha e assemelhados. É a sua explícita contribuição à campanha conservadora no próximo ano.

"Em 2014 vem prá rua você também", diz o título da coluna que arremata com a seguinte exortação:

"Em 2014 a turma que paga as contas irá às urnas. Elas poderão ser um bom corretivo, mas a experiência deste ano que está acabando mostra que surgiu outra forma de expressão, mais direta: "Vem pra rua você também".

Gaspari engrossa o coro daqueles que – a exemplo dele (leia a análise de Antonio Lassance, neste link), sabem que só o impulso de acontecimentos anormais pode devolver o poder ao conservadorismo ao qual se filiam, nas eleições do próximo ano.

Reconheça-se no panfleto encartado na Folha o predicado da coerência: Gaspari se mantém fiel à cepa na qual foi cevado e graças a qual deixou o batente das redações para viver das memórias da ditadura.

O artigo é uma extensão dessa trajetória.

É como se o autor psicografasse vozes e agendas às quais serviu como uma tubulação expressa quando a ditadura militar agônica buscava erguer a ponte dos anos 80, para trocar o uniforme pela gravata, sem macular a essência do poder.

Gaspari, sub-chefão de Veja, então, ao lado de Roberto Guzzo, aderiu ao esforço de erguer linhas de passagem sem rupturas de destino.

Da esq. para a dir.: Cel. Heitor de Aquino Ferreira, Elio Gaspari, Roberto Civita, Persio Pisani e, de costas, o Presidente Figueiredo

Secretárias pressurosas emitiam a convocação em sustenidos de urgência pelos corredores da revista nos anos 80: '- "Eliiooooo, o Heitor, o Heitor!."

Era algo religioso.

O telefonema-chave chegava invariavelmente um ou dois dias antes do fechamento da edição semanal.

"Heitor", mais especificamente, o coronel Heitor de Aquino Ferreira, acumulava credenciais do outro lado da linha.

Elas justificavam a ansiedade incontida no trinado das secretárias.

Sua ficha corrida incluía o engajamento, cadete ainda, na conspiração para derrubar Juscelino, em 1955; a ativa participação golpista para derrubar Jango, em 64; a prestação de serviços para injetar músculos no SNI; a ação lubrificante à passagem de Daniel Ludwig, o bilionário do projeto Jari, pelos corredores do poder militar. E assim por diante.

Com base nesse saldo foi nomeado secretário de dois ditadores: Geisel [D] e Figueiredo [E].

Elio e Heitor tinham mais que a cumplicidade na missão específica da travessia do quartel para a urna.

Fluxo e vertedouro identificavam-se num traço de caráter, digamos, olfativo: ambos eram bons farejadores dos ventos da história.

Elio começou a carreira no jornal Novos Rumos, ligado ao Partidão (PCB); rápido sentiu a friagem vinda do polo oposto e foi servir ao colunista social
e reacionário de carteirinha, Ibrain Sued; pós golpe, ascendeu como turbojato na carreira.

A pretensiosidade é outro traço que dá liga à parceria.

Na conspiração golpista de 64, o capitão Aquino Ferreira usava um codinome afetado: "Conde de Oeiras".

Nos telefonemas ao jornalista Elio Gaspari - destinatário dos pressurosos arrulhos das secretárias de Veja nos anos 80, o já coronel Heitor considerava desnecessário o anonimato.

Tampouco Elio recomendava discrição às telefonistas.

Eram tempos em que pertencer a certos círculos fazia bem ao currículo e ao ego.

Ser o mensageiro, a tubulação dos bastidores da ditadura dava prestígio e holerite. Ademais de alimentar uma sensação de impunidade quase cínica.

Quando os telefonemas de Brasília agitavam as pautas e o arremate dos fechamentos de Veja, Heitor servia como homem de confiança e porta-voz do general Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil do ditador Geisel [ambos na foto].

Foi nessa condição de emissário e serviçal que ele reuniu as famosas 40 pastas de documentos da ditadura, entregues entre 1982 e 1987 ao jornalista amigo selando um troca-troca feito de empatia e propósitos comuns.

Os arquivos serviriam de lastro aos livros [foto] que Gaspari lançaria com a sua versão sobre o ciclo da ditadura.

Era essa a carga simbólica que os chamados de Heitor propagavam pelos corredores da Veja, um ou dois dias antes do fechamento.

Às vezes no mesmo dia; não raro mais de uma vez ao dia.

O destinatário dos  telefonemas das sombras, a exemplo de outros protagonistas de um enredo à espera de um filme, agora convoca as massas às ruas em 2014.

De certa maneira, presta-se ainda ao papel de duto de Heitor, já morto, psicografando lições, limites e agendas à democracia brasileira.

Teimosa, ela  insiste em afrontar os perímetros sociais e econômicos delimitados nos anos 80, nos gloriosos dias da transição segura e gradual, abraçada pela dupla de democratas.

O artigo deste Natal carrega a ansiedade abusada de quem vê nas urnas de 2014 a última chance de reverter um processo no qual "bruxos" de farda e megalomaníacos de redação perdem a prerrogativa de ditar o que é bom para o país e para a democracia.

Fonte:
http://www.cartamaior.com.br/?/Editorial/A-convocacao-para-2014-Eliooo-o-Heitor-/29877

Nota:
A inserção de algumas imagens adicionais, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.

Leia também:
- As almas penadas da ditadura - Leandro Fortes

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Genoíno doente e preso

18/11/2013 - Genoino doente e preso, comove e causa revolta nas redes sociais
- Por Redação - de Brasília e São Paulo - Correio do Brasil 

Embora sem nenhuma declaração pública e oficial, de qualquer autoridade federal ou do próprio partido a que pertençam, o PT, de apoio ou de preocupação com a integridade física do deputado José Genoino e do ex-ministro José Dirceu, ambos acordaram, nesta segunda-feira, presos em regime fechado no Complexo Penitenciário da Papuda.

No Ministério da Justiça, nenhuma orientação em vista para algum pronunciamento do ministro José Eduardo Cardozo [foto] sobre o estado de saúde do ex-presidente da legenda pela qual ocupou o posto de coordenador da campanha da presidenta Dilma Rousseff.

No gabinete da presidenta, de acordo com assessores de imprensa, também não havia qualquer movimentação no sentido de se chamar a atenção para o que, nas redes sociais, ecoa em milhares de mensagens de filiados ao PT e simpatizantes dos réus na Ação Penal 470 do Supremo Tribunal Federal (STF), conhecido como ‘mensalão’, que protestam contra as condições sub-humanas em que Genoíno convalescente de uma cirurgia no coração, tem sido obrigado a viver, nas últimas 48 horas.

Na sua página, no Twitter, no início da manhã, Dilma comentava que “quem aposta contra o Brasil, sempre perde”, após uma série de mensagens de cunho econômico.

Apesar do silêncio oficial, mais de um integrante do campo da esquerda propunham, nas primeiras horas da manhã, manifestação em frente ao Ministério da Justiça.

Outros, como lembrou a jornalista Hildegard Angel, assinam a ficha de filiação do PT, em protesto contra o tratamento aos líderes que, segundo o advogado Luiz Fernando Pacheco, cumprem prisão ilegal.

Ele aguarda, para as próximas horas, o julgamento do pedido para que Genoíno seja reconduzido à casa, em São Paulo, para que cumpra a pena de 6 anos e 11 meses, em regime domiciliar.

Pacheco argumenta que sérios problemas de saúde podem causar a morte dele a qualquer momento, como atesta médica ouvida pela reportagem do Correio do Brasil.

Genoíno [foto] sofre de problemas cardíacos a ponto de se submeter a uma complicada cirurgia, de mais de 8 horas, há cerca de 100 dias; teve uma crise de pressão alta durante a transferência para Brasília, no sábado, que se repetiu na madrugada deste domingo. Ele chegou a receber atendimento médico no Complexo Penitenciário da Papuda, no Distrito Federal.

O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Wadih Damous [foto], concorda com a defesa de Genoíno.

Ele divulgou, na noite passada [17/11], uma nota na qual afirma que “o estado de saúde do deputado José Genoíno requer atenção”.

“A sua prisão em regime fechado por si só configura uma ilegalidade e uma arbitrariedade. Seus advogados já chamaram a atenção para esses dois fatos mas, infelizmente, o pedido não foi apreciado na mesma rapidez que a prisão foi decretada."

"É sempre bom lembrar que a prisão de condenados judiciais deve ser feita com respeito à dignidade da pessoa humana e não servir de objeto de espetacularização midiática e nem para linchamentos morais descabidos”, diz a nota oficial da OAB.

Para o advogado de vítimas da ditadura militar e ex-deputado do PT, Luiz Eduardo Greenhalgh [foto], que permanece em Brasília para acompanhar in loco o tratamento dispensado aos réus Dirceu e Genoino, condenados à prisão em regime semiaberto, mas que, na prática, estão submetidos a um regime fechado, em razão de decisões – segundo ele, ilegais – determinadas pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa.

– Estou estarrecido. Hoje, em plena democracia, direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros estão sendo estraçalhados – disse o advogado a jornalistas.

Greenhalgh afirmou, ainda, que a transferência dos presos para Brasília foi a primeira ilegalidade cometida por Barbosa, posto que a lei determina o cumprimento do regime semiaberto próximo ao local onde os réus trabalham e têm residência, ou seja, São Paulo, no caso dos dois ex-dirigentes do PT.

– Colocá-los naquele avião foi um gesto desnecessário, midiático, oneroso para os cofres públicos e que será revertido, uma vez que eles não poderão permanecer em Brasília – disse.

A assessoria de Comunicação Social do Ministério da Justiça, porém, esquiva-se de qualquer responsabilidade sobre possíveis irregularidades no mandado de prisão imposto aos réus. Segundo porta-voz do ministro Cardozo, “a PF também é polícia judiciária e cumpriu, à risca, o que lhe foi determinado na ordem do STF”.

Apoio na mídia independente
Além das mensagens de apoio aos líderes petistas, a fragilidade da vida do ex-guerrilheiro, de novo lançado a um cárcere, foi alvo de um editorial, assinado no site da agência brasileira de notícias Carta Maior, por Saul Leblon: Destinos cruzados: a vida de Genoíno e a saúde da democracia

“Um déspota de toga não é menos ilegítimo que um golpista fardado”, afirma o jornalista.

A justiça que burla as próprias sentenças, mercadejando ações cuidadosamente dirigidas ao desfrute da emissão conservadora, implode o alicerce da equidistância republicana que lhe confere o consentimento legal e a distingue dos linchamentos falangistas."

"Joaquim Barbosa [foto] age na execução com a mesma destemperança com que se conduziu na relatoria da Ação Penal 470″, critica.

Para Leblon, “a personalidade arestosa que se avoca uma autoridade irretorquível mancha a toga com a marca da soberba, incompatível com o equilíbrio que se espera de uma suprema corte."

"Desde o início desse processo é nítido o seu propósito de atropelar o rito, as provas e os autos, em sintonia escabrosa com a sofreguidão midiática."

"Seu desabusado comportamento exalava o enfado de quem já havia sentenciado os réus, sendo-lhe maçante e ostensivamente desagradável submeter-se aos procedimentos do Estado de Direito”.

O artificioso recurso do domínio do fato, evocado inadequadamente como uma autorização para condenar sem provas, sintetiza a marca nodosa de sua relatoria."

"A expedição de mandatos de prisão no dia da República e no afogadilho de servir à grade da TV Globo, consumou a natureza viciosa de todo o enredo."

"A exceção do julgamento reafirma-se na contrapartida de uma execução despótica de sentenças sob o comando atrabiliário de quem não hesita em colocar vidas em risco se o que conta é servir-se da lei e não servir à lei”, disse.

“A lei faculta aos condenados ora detidos o regime semi-aberto. A pressa univitelina de Barbosa e do sistema midiático, atropelou providências cabíveis para a execução da sentença, transferindo aos condenados o ônus da inadequação operacional."

"Joaquim Barbosa é diretamente responsável pela vida do réu José Genoíno, recém-operado, com saúde abalada, que requer cuidados e já sofreu dois picos de pressão em meio ao atabalhoado trâmite de uma detenção de urgência cinematográfica”, continuou.

“Suponha-se que existisse no comando da frente progressista brasileira uma personalidade dotada do mesmo jacobinismo colérico exibido pela toga biliosa."

"O PT e as forças democráticas brasileiras, ao contrário, têm dado provas seguidas de maturidade institucional diante dos sucessivos atropelos cometidos no julgamento da AP 470."

"Maturidade não é sinônimo de complacência."

"O PT tem autoridade, portanto, para conclamar partidos aliados, organizações sociais, sindicatos, lideranças políticas e intelectuais a uma vigília cívica em defesa do Estado de Direito. Cumpra-se imediatamente o semi-aberto, com os atenuantes que forem necessários para assegurar o tratamento de saúde de José Genoíno”, afirmou.

“Justificar a violação da lei neste caso, em nome de um igualitarismo descendente que, finalmente, nivela pobres e ricos no sistema prisional, é a renúncia à civilização em nome da convergência da barbárie."

"Afrontar o despotismo é um predicado intrínseco à vida democrática. Vista ele uma farda ou se prevaleça de uma toga, não pode ser tolerado."

"A sorte de Genoíno, hoje, fundiu-se ao destino brasileiro. Da sua vida depende a saúde da nossa democracia. E da saúde da nossa democracia depende a sua vida”, concluiu.

Fonte:
http://correiodobrasil.com.br/noticias/brasil/genoino-doente-e-preso-comove-e-causa-revolta-nas-redes-sociais/663226/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=b20131119

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade e, excetuando uma ou outra, inexistem no texto original.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Libra não é só petróleo

18/10/2013 - Saul Leblon - Carta Maior

Em todo o mundo o discurso conservador subsiste em estado comatoso desde o colapso da ordem neoliberal, em 2008.

O empenho é para  injetar sobrevida ao defunto, resistir e desgastar o anseio de mudança.

Até que se generalize o descrédito nos partidos, na luta pelo desenvolvimento e no aprofundamento da democracia política e econômica, como instrumento de emancipação histórica e social.

A ascensão da Frente Nacional Fascista na França é um sintoma (leia a reportagem de Eduardo Febbro nesta página).

Outro, o poder de uma falange, como o Tea Party, de empurrar até perto do abismo fiscal a nação mais poderosa da terra.

São manifestações mórbidas recorrentes. Que afrontam o anseio da mudança instalado no coração da sociedade pela maior crise capitalista desde 1929.

Quando o extraordinário acontece, as lentes da rotina já não conseguem explicar a vida. A ‘redescoberta’ de Marx, analisada por Emir Sader nesta página (leia no blog do Emir), é um sintoma do anseio por um novo foco.

É mais que uma redescoberta intelectual. Essa é a hora em que o preconceito histórico inoculado contra o socialismo perde força. Até nos EUA.

Uma pesquisa feita pela Pew Research, no final de 2011, tentou medir esse ponto de mutação. Os resultados foram significativos:

a) na faixa etária entre 19 e 28 anos a menção ao ‘socialismo’ encontra receptividade favorável entre 49% dos jovens norte-americanos (entre 43% ela é negativa).

b) entre a população negra – açoitada pela crise - os dados são ainda mais expressivos: respectivamente 55% de aprovação; 36%, rejeição.

c) a mesma medição, agora para ‘capitalismo’, obteve os seguintes percentuais nos grupos mencionados: 46% e 47%, entre os jovens; e 41% favorável e 51% negativo, entre os negros.

A informação consta de um artigo de Michelle Goldberg, cuja íntegra será publicada  nesta página.

A liquefação da agenda neoliberal e do preconceito anti-socialista não amenizam a responsabilidade de se erguer linhas de passagem críveis ao passo seguinte da história.

No caso brasileiro, a operação envolve agravantes de singularidade e circunstância.

Em primeiro lugar, a responsabilidade de ser governo. Portanto, mais que nunca, de erguer pontes que partam da correlação de força existente para superá-las, sem risco de regressão.

Em segundo lugar, os sinais de desgaste na confortável pista incremental, pela qual o país  tem transitado para responder a desafios seculares com avanços específicos .

Um terceiro agravante: o crepúsculo  de um ciclo internacional de alta da liquidez e dos  preços das commodities. A inflexão externa adiciona percalços à renovação do motor do desenvolvimento brasileiro.

Quarto, os capitais e os grandes oligopólios não estão parados. O colapso financeiro acelerou a descentralização produtiva que define a nova morfologia da industrialização no mundo.

Travada pelo câmbio desfavorável, a manufatura brasileira ficou de fora do novo arranjo global das cadeias de tecnologia e suprimento.

O país não resgatará sua competitividade sem recuperar o terreno perdido nessa área. A flacidez industrial rebaixa a produtividade sistêmica da sua economia. Com efeitos regressivos na geração dos excedentes indispensáveis à convergência da riqueza.

É nesse horizonte de mutações e desafios que deve ser analisado um acontecimento que divide o campo progressista brasileiro, o leilão de Libra.

A mega-reserva do pré-sal, capaz de conter acumulações equivalentes a até 13 bilhões de barris de petróleo e gás, deve ser leiloada na próxima 2ª feira (21).

Democratas e nacionalistas sinceros divergem. Petroleiros vão à greve.

Defende-se que a Petrobrás assuma sozinha a tarefa de extrair uma riqueza guardada no fundo do oceano que pode conter até 100 bilhões de barris.

A Petrobras tem o domínio da tecnologia para fazê-lo. É quem foi mais longe nessa expertise em todo o mundo.

Mas não dispõe dos recursos financeiros para  acionar esse trunfo na escala e no tempo imperativo. Paradoxalmente, em boa parte, porque cumpriu seu papel de estatal na luta pelo desenvolvimento.

Os preços dos combustíveis no Brasil foram congelados pelo governo como instrumento  de controle da inflação. Durante anos.

Sob protesto da república dos acionistas, cuja pátria é o dividendo. E nada mais.


Secundariamente, o leilão será feito porque o governo necessita também de recursos para mitigar a conta fiscal de 2013. Ademais do peso dos juros no orçamento federal – exaustivamente criticado por Carta Maior - o Estado, de fato, realizou pesados dispêndios este ano e nos anteriores.

Em ações contracíclicas para impedir a internalização da crise mundial no Brasil. O conservadorismo reprova acidamente essas escolhas. Solertes entreguistas, súbito, pintam-se de verde-amarelo em defesa da estatal criada por Vargas.

A emissão conservadora alveja o que chama de ‘uso político da Petrobras  e da receita pública’ para financiar ‘ações populistas’, que não corrigem as questões estruturais  do país. A alternativa martelada é a ‘purga’ saneadora.

Contra a inflação, choque de juros (muito superior ao que se assiste). Contra o desequilíbrio fiscal, cortes impiedosos na ‘gastança’. Qual?


Qualquer gasto público destinado a fomentar o desenvolvimento, financiar a demanda, reduzir a pobreza e combater a desigualdade.

O ponto é: sem agir a contrapelo dos interditos conservadores, desde 2008, o Brasil teria  hoje um governo progressista?

Subsistiria ao cerco de 2010 contra Lula e Dilma? Ou da terra  ‘semeada’ pela recessão e o desemprego emergiria a colheita devastadora?

José Serra, que, ato contínuo, reverteria a regulação soberana do pré-sal, como, aliás, prometera à Chevron. O governo fez a escolha oposta. O resto é a história dos dias que correm.

Ao decidir pelo leilão de Libra está dobrando a aposta. Qual seja: mais importante que adiar Libra  para um futuro de hipotética autossuficiência exploratória, é aceitar a participação de terceiros, mas preservar e colher, antes, o essencial.

O essencial são os impulsos industrializantes  embutidos na regulação soberana das maiores reservas descobertas neste século em todo o planeta.

Um exemplo resume todos os demais.

O Brasil hospeda a maior concentração de plataformas submarinas do mundo. Uma em cada cinco unidades existentes está a serviço da Petrobrás. Em dez anos, essa proporção vai dobrar.

Assim como dobra a produção prevista de petróleo em sete anos: dos atuais 2 milhões de barris/dia para 4,5 milhões b/d.

Entre uma ponta e outra repousa a chance de a industrialização brasileira engatar um salto tecnológico e de escala, ancorado nas encomendas  e encadeamentos  do pré-sal.

Emprego, produtividade, salários e direitos sociais estão em jogo nesse salto. 

A convergência sonhada entre a democracia política, a democracia social e a democracia econômica depende, em parte, do êxito desse aggiornamento industrializante da economia brasileira.


O leilão do dia 21 é um pedaço dessa aposta.

Que tem a torcida adversa daqueles que não enxergam nenhuma outra urgência no horizonte do desenvolvimento brasileiro, em plena agonia da ordem neoliberal. Exceto recitar mantras do defunto.

Na esperança de ganhar tempo para que o desalento faça o serviço sujo: desmoralizar a política e interceptar o salto histórico do discernimento social brasileiro.

Uma  retração econômica redentora cuidaria do resto, injetando disciplina nas contas fiscais e ordem no xadrez político. Para, enfim, providenciar aquilo que as urnas sonegam: devolver a hegemonia do país a quem sabe dar ao ‘progresso’ o sentido excludente e genuflexo que ele sempre teve por aqui.

Fonte:
http://www.cartamaior.com.br/?/Editorial/Libra-nao-e-so-petroleo/29234

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

A guerra que pode matar uma nação

03/09/2013 - Saul Leblon - Carta Maior

Variáveis macroeconômicas são ingredientes à espera de um projeto de Nação. 

Quem decide a receita do desenvolvimento e da sociedade é a luta política.

Uma arma crucial do embate é a formação das expectativas.

No Brasil hoje, são elas que podem mover ou travar a engrenagem decisiva do investimento na esfera industrial e na infraestrutura.

Num caso, o país retoma o crescimento ancorado em bases consistentes. 

No outro, o pessimismo estreita o horizonte do futuro e afoga a Nação na liquidez rentista. A espiral descendente do emprego e do consumo cuida do resto, conflagrando a inquietação social.

É a disjuntiva dos dias que correm.

A guerra das expectativas dispara mísseis que cruzam os céus do imaginário social ininterruptamente.

A quarta frota desta guerra é a área na qual a influencia conservadora desequilibra o jogo a seu favor: o comando do noticiário em geral; o da
economia, em particular.

Dados auspiciosos do IBGE sobre o PIB do segundo trimestre foram recepcionados com um muxoxo pela emissão conservadora: ‘resultado surpreende o mercado’.

Modéstia.

O resultado não surpreende, ele o decepciona.

Um desastre econômico de proporções ferroviárias é vaticinado há meses pela endogamia da mídia com a corriola das consultorias e a pátria financeira. 

O lubrificante ora é o dólar no mercado futuro. Ora a AP 470. Ora a 'invasão' da saúde pública por 'escravos de Fidel', desembarcados de ‘aviões negreiros’. Assim por diante.

A impressionante expansão de 9% do investimento no 2º trimestre, comparado ao mesmo período de 2013, trouxe ao crescimento de 1,5% do PIB uma qualidade há muito requerida pelo país. 

O incremento de capacidade produtiva avançou bem acima da variação do consumo das famílias (2,3%) e o do governo (1%). 

É a calibragem correta para uma expansão de longo curso.

Aquela que não desanda em pressões inflacionárias porque a oferta caminha adiante da demanda.

Não significa que a matriz de um novo ciclo está consolidada. Estamos longe disso.

O Brasil acumula pendências cambiais e de logística que emperram o motor do seu desenvolvimento. 

A economia tem gargalos objetivos; oscila em altos e baixos à procura de uma nova coerência, como mostra a montanha-russa do desempenho industrial.

Mas o PIB que surpreendeu a narrativa derrotista comprova que a fatalidade conservadora não é um dado de natureza.

É um ingrediente da luta política em curso, abastecida com a pólvora das expectativas. 

O conjunto manipula a incerteza intrínseca ao cálculo econômico de longo prazo no regime capitalista.

A sinalização financeira a quem caberia clarear a neblina do futuro, age para cegar. Seu alto-falante midiático cuida de afligir.

Um lucra com a especulação nutrida pela incerteza; o segundo, com o rebate conservador que o pânico injeta nas pesquisas eleitorais.

Significa dizer que a batalha do crescimento não será vencida no âmbito exclusivo das medidas econômicas.

Se o governo não se despir do economicismo, perderá a guerra. Ainda que tome as medidas tecnicamente adequadas à retomada do crescimento.

O contrafogo das expectativas negativas pode por tudo a perder.

Guardadas as proporções, vale lembrar: Puttin, na Rússia, colocou no ar uma emissora estatal que dispõe de orçamento de US$ 300 milhões/ano. E um quadro de dois mil contratados.

Guardadas as devidas motivações, cumpre insistir: esse é o tamanho do jogo. 

Nunca é demais repetir: a coerência macroeconômica quem dá é a correlação de forças da sociedade, que tem na formação das expectativas um de seus
ordenadores decisivos.

Quem fizer a leitura política do noticiário econômico enxergará a queda de braço em curso.

De um lado, iniciativas oficiais procuram desbastar o caminho para um novo ciclo histórico, ancorado no impulso do investimento com maior equidade social.

De outro, os interesses que tentam direcionar a encruzilhada atual para a regressão ao modelo dos anos 90: privatizações, Estado mínimo, arrocho
social, alinhamento carnal com geopolítica e a economia imperial norte-americana. 

Nunca será fácil converter as conquistas e aspirações de uma época à paz salazarista cobiçada pelos ‘mercados’.

A saber: um cemitério social rígido como o eletrocardiograma de um morto, associado à apoteose rentista da nação à serviço do dinheiro. 

Fomentar a crise de confiança é a pedra basilar dessa arquitetura. 

Dar a isso a abrangência de um sentimento coletivo de baixa autoestima, é a sua argamassa.

Fazer da descrença no país, em suas lideranças, no Estado e organizações sociais um acontecimento de natureza política e econômica, o vigamento
superior.

Naturalizar esse jogral a ponto torna-lo uma profecia autorrealizável, a cumeeira do processo.

Leve tudo ao forno da inquietação social movida a denuncismo e vaticínios de desastre iminente no desempenho do PIB e dos índices de inflação. 

Não importa que os resultados do mês em curso os desmintam. 

O núcleo duro dessa usina de sombras e abismos é afinado por um jogral de pluralidade ideológica irrisória.

Em entrevista recente, o colunista do Estadão, José Paulo Kupfer, admite o viés que afina o noticiário econômico: 

"Fiz uma pesquisa de fontes em alguns principais jornais: Estadão, O Globo, Folha. Captei 500 participações. 85% das citações eram de consultorias, departamentos de economia (alinhados) a escolas neoliberais. Fica tudo com uma visão só”, afirmou.

Como enfrentar essa guarda pretoriana sem um antídoto da envergadura daquele ostentado pelo projeto da ‘Russia Today’?

Difícil.

O PIB do segundo trimestre revelou uma taxa de investimento ainda abaixo dos 20%, tido como um requisito para acelerar a máquina do crescimento.

Mas cravou 18,6%, em ascensão, tendo como pano de fundo cerca de R$ 3,8 trilhões em novos projetos investimentos privados e grandes obras de
infraestrutura.

A previsão é do BNDES para o período 2014 e 2018. 

O valor, apreciável em qualquer latitude do globo, separa a linha entre o país viável e aquele cronicamente inviável, disseminado pelo jogral dos ‘85%’ identificados por Kupfer.

Não só. O conjunto incide sobre um mercado de 200 milhões de habitantes.

Significa que o país tem hoje uma população equivalente a dos EUA nos anos 70. E uma renda pouco superior a 1/3 daquela dos norte-americanos nos anos 30. 

Com uma distinção dinâmica não negligenciável.

A distribuição, no caso brasileiro, é melhor que a registrada na sociedade norte-americana, atropelada então por 14 milhões de desempregados da crise de 29.

Essa obra prima dos livres mercados é um pouco o que a turma dos ‘85%’ quer ressuscitar no Brasil do século 21. 

Precisa para isso torturar de morte ingredientes dificilmente compatíveis com a sua receita de nação: uma população jovem, uma imensa demanda não
atendida, trilhões de reais mobilizáveis e recursos estratégicos abundantes, a exemplo do pré-sal.

A macroeconomia pura e simples jamais diria que estamos diante dos ingredientes de um fracasso, como aquele vaticinado dia e noite pela emissão
conservadora.

Mas a guerra das expectativas pode matar uma Nação.

Se conseguir convencê-la a rastejar por debaixo de suas possibilidades históricas.

Fonte:
http://www.cartamaior.com.br/templates/postMostrar.cfm?blog_id=6&post_id=1311

Leia também:
http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2013/09/04/ajustamos-o-termostato-do-planeta-para-nos-gratinar-lentamente/