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sexta-feira, 4 de outubro de 2013

“Mensalão”: por que reabrir o caso

18/09/2013 - Antonio Martins (*)
– blog Quem Tem Medo da Democracia (QTMD)

Celso-de-Mello: o decano do STF calou muita gente.

Obs: O artigo a seguir foi escrito um dia antes do voto proferido nesta quarta-feira, 18/09/2013, em que Celso de Mello aceitou os embargos infringentes, reabrindo o caso do chamado “mensalão.

"Um erro primário do STF virá à tona.
E surgirá oportunidade de debater o financiamento empresarial dos partidos, principal mecanismo de corrupção política no Brasil" (Antonio Martins) 

Se o voto do ministro Celso de Mello encerrar, nesta quarta-feira (18/9), o julgamento do chamado “Mensalão” pelo Supremo Tribunal Federal (STF), 
milhões de brasileiros irão sentir-se aliviados e engrandecidos.

Tendo acompanhado o episódio, durante oito anos, por meio dos jornais e da TV, eles acreditarão que surgiu, enfim, um caso em que o desvio de verbas públicas não ficará impune. Certas circunstâncias ampliarão seu júbilo. 

Entre os condenados, haverá “peixes graúdos”. Não será poupado o PT, partido no governo há dez anos. E, glória máxima, parte dos réus irá para a 
cadeia – o símbolo maior e mais humilhante dos sistemas punitivos modernos.

Ficará aberto caminho, pensarão estes milhões, para moralizar a vida política e resgatar a República.

Será um engano trágico, por dois motivos.

Do ponto de vista factual, surgiram, nos últimos meses, sinais concretos de que o chamado “Mensalão” não envolveu desvio de recursos públicos.

O ministro Joaquim Barbosa (foto), relator do processo e hoje presidente do STF, ignorou estes sinais; teme que este erro primário torne-se claro; é, também por isso, um opositor ferrenho da reabertura do caso.

Mas o engano principal seria político. O encerramento do processo, no pé em que está, evitará que a sociedade debata a corrupção da vida política por meio do dinheiro oferecido pelas empresas aos partidos e a suas campanhas eleitorais.

Este é, de longe, o principal mecanismo para submeter as decisões políticas ao poder econômico, e para promover o enriquecimento ilícito de ocupantes de cargos públicos. Está exposto, em detalhes, no episódio do “Mensalão”.

Encarcerar José Dirceu e seus colegas, e não examiná-lo, satisfará o ímpeto punitivo com que alguns julgam possível enfrentar a corrupção. Mas varrerá para debaixo do tapete o motor que a impulsiona.


 * * *

A derrubada do mito segundo o qual o “Mensalão” envolveu apropriação e desvio de recursos públicos é obra de um mestre: o jornalista Raimundo Rodrigues Pereira, que dirigiu, nos anos 1970 e 80 algumas das principais publicações da imprensa de resistência à ditadura (1).

Hoje, toca a revista Retrato do Brasil.

Lá, ele e a repórter Lia Imanishi, escrevem, desde fevereiro de 2012, uma série de reportagens investigativas sobre o julgamento, pelo STF, da Ação Penal 470 (AP-470) – a que examina o “Mensalão”.

Seu trabalho estende-se por ao menos nove edições regulares da revista [1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9, um número especial e um livro.]

Os textos expõe em detalhes como dois Procuradores-Gerais da República e diversos ministros do Supremo, a começar por Joaquim Barbosa, passaram por cima dos fatos e construíram, para o episódio, a versão que mais interessava à mídia, à opinião pública conservadora e… ao próprio sistema político.

Denunciado pelo ex-deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) em junho de 2005, o “Mensalão” chegou à Procuradoria-Geral (PGR) e ao STF um mês depois.


Alguns fatos muito graves eram conhecidos, mostram as reportagens. No início do governo Lula, a direção nacional do PT repassou, por orientação de seu tesoureiro, Delúbio Soares, e com apoio do publicitário Marcos Valério (foto), cerca de R$ 55,3 milhões a políticos de cinco partidos: o próprio PT, PL, PP, PMDB e PTB.

Os pagamentos foram feitos por meio do chamado “valerioduto” – um esquema que incluía os bancos Rural e BMG, mais a agência de publicidade de Valério e empresas de seus sócios.

Além disso, desde agosto daquele ano Delúbio admitiu que cometera crimes eleitorais: arrecadação de fundos junto a empresas sem contabilização (“Caixa 2”); distribuição de somas a correligionários e aliados, também “por fora”.


No entanto, mostra o Retrato do Brasil, os procuradores-gerais Antonio Fernando de Souza (E) (que atuou no caso até o final de seu mandato, em junho de 2009) e seu sucessor, Roberto Gurgel (D), omitiram-se da investigação deste delito.

Estavam empenhados em argumentar que a admissão do “Caixa 2” era mera estratégia para ocultar outro crime.

Os dirigentes PT, no governo federal, teriam abastecido o partido e as agremiações aliadas com recursos desviados do Estado.

Formular hipóteses é parte das atribuições do procurador-geral, responsável por comandar inquéritos. Mas nem Antonio Fernando de Souza, nem Roberto Gurgel preocuparam-se com os passos posteriores indispensáveis: investigar; demonstrar a suposição; reunir provas.

Ao denunciar ao STF, em abril de 2006, quarenta pessoas envolvidas no episódio, o primeiro assegurou que houvera desvio de recursos públicos. À falta de provas, serviu-se de um atalho.

Henrique Pizzolato (foto), diretor de marketing do Banco do Brasil (BB) à época dos fatos, figurava ao mesmo tempo em duas pontas do inquérito.

Ele havia recebido, por meio do valerioduto, R$ 326 mil. E, na condição de dirigente do BB, autorizara o pagamento de R$ 72,8 milhões à DNA, agência de publicidade de Marcos Valério.

Isso bastou para que o procurador juntasse as pontas. A origem primeira do dinheiro repassado ao PT e aliados seria o Banco do Brasil.

Pizzolato desviara os R$ 72,8 milhões da instituição que ajudava a dirigir; como recompensa, recebera suborno de R$ 326 mil.

A “demonstração” foi aceita e repetida acriticamente (e à exaustão), nos últimos sete anos – a começar pelo sucessor de Souza e pela maioria dos 
ministros do STF.

Num de seus textos, Raimundo Pereira descreve, com humor, o discurso empolado que o ministro Gilmar Mendes proferiu na sessão do tribunal, transmitida ao vivo pela TV, em 29/8/12.

Está no YouTube. Voz empostada, gestos teatrais, Mendes indigna-se: “O que fizeram com o Ban-co-do-Bra-sil?

E prossegue: “Em operações singelas, se tiram desta instituição 73 milhões, sabendo que não era para fazer serviço algum. […] Eu fico a imaginar […] como nós descemos na escala das de-gra-da-ções”.

Três semanas antes, ao apresentar sua acusação, no plenário do Supremo, o procurar-geral Roberto Gurgel, assegurara: “Foi sem dúvida o mais atrevido e escandaloso caso de corrupção e desvio de dinheiro publico realizado no Brasil”.

Em nenhum momento, Pizzolato admitiu as acusações que lhe foram feitas. Os R$ 326 mil recebidos via valerioduto, sustentou, foram para o PT. 

Todos os pagamentos do BB à DNA correspondiam a serviços efetivamente prestados pela agência. Conforme reza um princípio elementar do Direito, 
cabia aos que o acusavam provar sua culpa.

Poucos sabem, mas o princípio básico da presunção de inocência não foi respeitado, no julgamento da AP-470.

O STF considerou que, sendo os réus pessoas “muito poderosas”, e tendo eles supostamente formado uma quadrilha para apagar as marcas de seus crimes, era possível condená-los com base em indícios consistentes.


Pizzolato, por exemplo, foi condenado por unanimidade, em três das acusações que enfrentou e, por 11 votos contra um, numa quarta.

Devido à ampla diferença de votos, não poderá beneficiar-se do direito a apresentar “embargos infringentes”, mesmo que o ministro Celso de Mello considere-os legítimos. Sua pena está fixada em 12 anos e 7 meses de prisão mais multa em torno de R$ 1,3 milhão.

A partir de outubro, no entanto, restou-lhe um alento moral. As reportagens de Retrato do Brasil (ao lado) refizeram a trilha de seus argumentos e comprovaram sua veracidade.

O STF não permite a Pizzolato reivindicar sua presunção de inocência, mas Raimundo Pereira e Lia Imanishi estão conseguindo comprovar que ele não é culpado do que lhe atribui o Supremo.

A partir dos próprios autos do processo, flagrantemente ignorados por dois procuradores-gerais e diversos ministros do Supremo, levantaram 99 notas fiscais que comprovam: os R$ 72,8 milhões pagos à DNA referem-se a promoções e eventos reais, que ocorreram às vistas de milhares ou milhões de brasileiros e têm documentação fiscal regular.

Se estivessem interessados em cumprir sua função constitucional, e não em condenar de antemão, os procuradores e ministros poderiam ter chegado às mesmas conclusões dos repórteres.

Verificariam que os recursos pagos pelo BB à DNA não “tiraram da instituição 73 milhões, sabendo que não era para fazer serviço algum”. Custearam eventos patrocinados pelo cartão de crédito do banco (bandeira Visa), ou promoções para divulgá-lo.

Entre elas, o Réveillon do Rio de Janeiro; o Círio de Nazaré, em Belém; o Festival de Inverno de Campos do Jordão; a exposição de cultura africana Projeto África, no Centro Cultural do banco no Rio de Janeiro; a publicidade do BB nos biquínis, sutiãs e bandanas das campeãs mundiais de vôlei de praia, Shelda e Adriana (foto); dezenas de peças publicitárias veiculadas pela Rede Globo…

As descobertas de Raimundo e Lia, que desmentem os vereditos do STF, foram feitas em outubro do ano passado e têm sido apresentadas, desde então, com profundidade e detalhes cada vez maiores, nas sucessivas edições do Retrato do Brasil.

Foram tema central de debates e atos de protesto contra a forma como se deu o julgamento do “Mensalão”.

Até agora, não foram contestadas por nenhum ministro do Supremo, nenhum dos procuradores-gerais da República envolvidos no caso, nenhum dos jornais ou jornalistas que defendem a tese do “desvio de dinheiro público”. Todos usam, como defesa, o silêncio e a inércia.


* * *

 Ao desprezarem a investigação de crime eleitoral e optarem pela tentativa de caracterizar desvio de dinheiro público, ministros e procuradores fizeram uma opção política e de, digamos, marketing pessoal.

Desvio atrai manchetes e holofotes, além de evocar cadeia.

Afirmar que a AP-470 tratou do “mais atrevido caso de corrupção da História” reforça a tese, sempre repetida pelos jornais e TVs, de que o Brasil seria melhor se jamais tivesse sido governado pela esquerda.

Em contraste, caixa dois de campanha parece coisa banal e corriqueira, algo que todos os partidos praticam, assunto desimportante. Será?

O economista Ladislau Dowbor (foto), professor da PUC-SP e consultor de diversas agências da ONU, tem se empenhado em demonstrar o contrário.

Numa série de artigos e entrevistas publicados nos últimos meses (inclusive em Outras Palavras), ele sustenta que o modelo empresarial de financiamento dos partidos e dos políticos, no Brasil, é a principal causa do esvaziamento da democracia, do sequestro da política pelo poder econômico e do enriquecimento ilícito dos governantes.

Sem desmontar este modelo, diz Ladislau, combater a corrupção será sempre uma caça catártica – porém vã – a bodes expiatórios.

Nas “sociedades de espetáculo”, altamente midiatizadas, explica o professor, eleger um político tornou-se extremamente caro; e possuir recursos para bancar muitos mandatos assegura enorme poder político.

Em 1997, o Congresso Nacional modificou a legislação eleitoral e autorizou as empresas a investir em partidos e políticos.

Desde então, os gastos globais dos candidatos nas eleições dispararam. Segundo o TSE, saltaram de R$ 827 milhões, em 2002, para R$ 4,09 bilhões, em 2012 – um aumento de 591%, em apenas uma década – isso, sem contar o caixa dois. “Eleger um simples deputado, em qualquer Estado do país, não 
custa menos de R$ 2,5 milhões”, diz Ladislau.

Quem é capaz de mobilizar estes recursos?

Uma pesquisa dos professores Wagner Praion Mancuso (USP) e Bruno Speck (Unicamp) revela que “os recursos empresariais ocupam o primeiro lugar entre as fontes de financiamento de campanhas eleitorais brasileiras.

Em 2010, corresponderam a 74,4% de todo dinheiro aplicado nas eleições”. Mais uma vez, sem contar os recursos transferidos “por fora”. Quais os efeitos deste vínculo entre poder econômico e mandatos?

Ladislau retorna: “Os interesses manifestam-se do lado das políticas que serão aprovadas – por exemplo, contratos de construção de viadutos e de pistas para mais carros, ainda que se saiba que as cidades estão ficando paralisadas. As empreiteiras e as montadoras agradecem."

"Do lado do candidato, apenas assentado, já lhe aparece a preocupação com a dívida de campanha que ficou pendurada, e a necessidade de pensar na reeleição.

"Quatro anos passam rápido. Entre representar interesses legítimos do povo – por exemplo, mais transporte coletivo, mais saúde preventiva – e assegurar a próxima eleição, ele […] sabe quem manda, está preso numa sinuca”.

As consequências deste controle são claras. Ladislau fornece um exemplo, entre inúmeros.

“Existe uma bancada Friboi no Congresso, com 41 deputados federais e sete senadores."

"Dos 41 deputados financiados pela empresa, só um, o gaúcho Vieira da Cunha, votou contra as mudanças no Código Florestal. O próprio relator do Código, Paulo Piau, recebeu R$ 1,25 milhão de agropecuárias (…)"

"Com o financiamento corporativo, temos bancadas ruralista, da grande mídia, das montadoras, dos grandes bancos, das empreiteiras, e temos de ficar à procura de uma bancada do cidadão”

De que forma este fenômento se desdobra também em lesão direta aos cofres públicos?

Uma dimensão importante deste círculo vicioso”, arremata Ladislau, “é o sobrefaturamento."

"Quanto mais se eleva o custo financeiro das campanhas, mais a pressão empresarial sobre os políticos se concentra em grandes empresas."

"Quando são poucas, e poderosas, e com muitos laços políticos, a tendência é a distribuição organizada dos contratos, que reduz as concorrências públicas a simulacros e permite elevar radicalmente o custo dos grandes contratos. Os lucros assim adquiridos permitirão financiar as campanhas da eleição seguinte…"
* * *

Nas eleições de 2012, o PT foi, segundo o TSE, o partido que mais recebeu financiamento privado para suas campanhas: R$ 255 milhões. As grandes 
empresas são pragmáticas: investem em quem é mais capaz de reunir votos, eleger-se e defender seus interesses: importa-lhes pouco a cor partidária.

A entrada dos petistas no circuito das campanhas sustentadas por empresas é, porém, uma das explicações centrais para o retrocesso político do partido – reconhecido por algumas de suas lideranças, como o governador gaúcho Tarso Genro.

Nas eleições para o Executivo, os choques são mais crus. Mas na atuação parlamentar, por exemplo, estão se dissolvendo as diferenças – antes nítidas – entre as bancadas petistas e as dos partidos conservadores.

Também por isso, a conduta dos procuradores-gerais e da maioria dos ministros do STF, no julgamento da AP-470, foi grotesco.

Tendo em mãos um caso que poderia revelar alguns dos mecanismos centrais de corrupção da política – desde que investigado a fundo –, eles optaram pela busca fácil e preguiçosa de “culpados” individuais, por “jogar para a plateia”, por buscar sem descanso os holofotes.

Ao fazê-lo, cometeram, como se viu, injustiças e erros primários.

Se o ministro Celso de Mello optar, nesta quarta-feira, por reconhecer o direito dos réus aos embargos infringentes, haverá alguma esperança de reparar o estrago.

Tecnicamente, o espaço para corrigir as sentenças é exíguo.

No plano do debate político, serão outros quinhentos.

Reaberto o caso, é provável que as revelações factuais recentes feitas pelo trabalho jornalístico de Raimundo Pereira e Lia Imanishi ganhem novo destaque.

– muito mais importante – talvez surja uma brecha para argumentar que o resgate da democracia começa com uma vastíssima reforma política, não com um espetáculo ritual de encarceramento.

(1) Raimundo Pereira (foto) criou e editou Opinião (1971-1977) e Movimento (1975-1980), sobre o qual há um livro, disponível na Internet. Antes disso, dirigiu, entre outros trabalhos, a edição especial da revista Realidade sobre a Amazônia, considerada por alguns como “a maior de todas as reportagens da imprensa brasileira”.

(*) Antonio Martins é jornalista. Tem no “Quem tem medo da democracia?” a coluna “Outras Palavras”.

Nota: Este texto inaugura uma parceria entre os sites “Outras Palavras” e “Carta Capital”.

Fonte:
http://quemtemmedodademocracia.com/2013/09/18/antonio-martins-mensalao-por-que-reabrir-o-caso/

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

O complexo de vira-lata e a lata de lixo dos EUA

20/09/2013 - Raul Longo (*)
– Dos EUA para Santa Catarina: 350 toneladas de lixo tóxico
- do blog Quem Tem Medo da Democracia (QTMD)

Em 10 de setembro deste ano, fiscais da Receita Federal e do Ibama apreenderam lixo tóxico no porto de Navegantes (SC).

O COMPLEXO DE VIRA-LATA E A LATA DE LIXO DOS ESTADOS UNIDOS

Felizmente o complexo de vira-latas vem sendo superado por muitos brasileiros.

Até em São Paulo, onde a maioria da população há tantos anos se considerava uma sub-raça e para se aproximar àqueles aos quais idealiza como superiores elegia para governantes os ligados ao grupo do melhor amigo de Henry Kissinger e Bill Clinton; já se aperceberam que ou modernizam a forma de pensar politicamente ou a cada gestão se perderão mais para trás da história do país.

Enfim, ali também se notou que isso de dar a patinha, se fingir de morto e correr pra pegar a bolinha, cansa. Enjoa até o dono.

E em todo o continente, enfim, se começa a desconfiar da fidelidade dos cães de caça que garantem o abate do que deveria pertencer aos vira-latas se vira-latas não fossem.

Mas a cura do complexo de vira-latas iniciou-se mesmo a partir de um processo de choques sequenciais.

Quando menos se esperava o Brasil, como estado e entidade sócio-político internacional, passou a ser respeitado. Justo quando o vira-lata já ia enfiando o rabo no meio das pernas, abaixando a cabeça e arrepiando o pelo dos costados para amenizar a dor das pauladas que até considerava justas, se dá exatamente o contrário. 

Nem mais exigem que se fique deitado no capacho da porta de entrada ou que se tire sapatos para ser revistado em aeroportos.

Aquilo deixou os vira-latas meio atordoados, sem saber se abanavam ou se corriam atrás do próprio rabo para mostrar serviço ao dono de suas 
consciências colonizadas e, muitas vezes, colonizadas por gerações.

Sei de pai e mãe que antes de colocar o filho na escola para aprender a ler e escrever em português contratava logo um treinador particular para ensinar a criança, desde a mais tenra idade, a latir em bom e perfeito inglês.

Nada de xenofobia, por favor! Não me acusem de xenófobo porque adoro o inglês na pronúncia de Mahalia Jackson, Billie Holiday e Louis Armstrong. 

Também gosto da construção sonora das frases de William Shakespeare… Mas convenhamos que cada idioma tem sua característica e preferir o inglês 
ao português é condicionamento de vira-latas.

Tive de quebrar esse condicionamento em meus alunos para poder ensinar alguma coisa do nosso idioma, pois todos achavam perda de tempo e chatice ter de apreender o português correto. Achavam que bom mesmo é falar “como quem inveja negros que sofrem horrores nos guetos do Harlem”, como dizia Caetano Veloso.

Pedia ao mais revoltado que levantasse e pronunciasse lentamente e alto para todos ouvirem, a palavra “irmão”. De forma meio enfarada o rapaz ou 
a moça dizia a palavra.

Eu pedia que repetisse… “Um pouco mais alto e mais lento”. “Iiirr.. Mããão!” 

Então, gesticulando, sugeria que observassem que o gutural ou fricativo das pronúncias regionais daquele “iiiirr…” poderia ser descrito como braços que se abrem… E aquele “… mããão” nasal se assemelhava ao fechamento de um abraço largo, apertado, franco.

Pedia ao aluno que mais uma vez sentisse a palavra, interpretando-a gestualmente.

E logo toda a classe imitava o exercício, assimilando o prazer da envolvente pronúncia.

Mas então, repentinamente, interrompia pedindo a qualquer outro que se levantasse e pronunciasse a mesma palavra no idioma inglês. Meio 
intimidado a princípio, logo o aluno caprichava orgulhoso: “Bro-ther”. Sempre postado à frente, eu simulava limpar um olho atingido e perguntava: “- Por que você cuspiu?”

A classe ria e assim ia convencendo-os a se interessar pelo idioma empregado no Brasil.

Romper com tantas décadas de condicionamento não é fácil e brincadeiras de sala de aula não teriam sido suficientes para libertar, não apenas os 
brasileiros, mas todo o terceiro mundo do complexo de vira-latas.

Desde sua independência os Estados Unidos sempre foram governados por um mesmo sistema de interesses de elites econômicas divididas em Democratas ou Republicanos.

Sucedem-se políticos de dois únicos grupos a representar a ditadura de uma mesma classe social, mas todo mundo sempre acreditou naquele país e governo como padrão de democracia, mesmo quando promoviam golpes de estado contra governos realmente democráticos como os de João Goulart ou Salvador Allende.

Apesar de ali a vida de um negro não valer mais do que um assovio, criou-se o mito de que a civilização estadunidense fosse a mais livre e humana 
do planeta como se não houvesse partido daquele governo e militares o maior genocídio já praticado em toda a história da humanidade, contra duas cidades civis de um país já derrotado e rendido: Hiroshima e Nagasaki.

Os vira-latas acreditavam no heroísmo e na bondade de uma covardia a se repetir periodicamente, como no Vietnã, contra povos indefessos a usar 
bambu contra alta tecnologia bélica e bombas napalm.

O engodo do 11 de Setembro de 2001 despertou as gentes e mesmo que muitos ainda não consigam conceber que aquele governo tenha sido capaz de ordenar um atentado contra o próprio povo, a certeza de que algumas horas de treino em teco-teco não habilitariam ninguém às manobras dos Boeing que atingiram o World Trade Center; tem exercido forte impacto nas mentes colonizadas de muitos que hoje se sacodem como cachorros molhados de chuva, enfim percebendo o incomodo da coleira pendurada ao pescoço.

Também houve a arrogância de decisão unilateral de invasão, a mentira das armas químicas do Sadam, a guerra desnecessária, o genocídio, as crianças esfaceladas, as humilhações de Abu Ghraib, as torturas de Guantánamo e todas essas realidades há muito sabidas, mas que só então se projetaram como intermitentes flashes da verdade antes velada, negada à própria consciência que forçosamente se viu obrigada a despertar, cada qual envergonhado do hipnótico condicionamento à que se expôs comportando-se como vira-lata.

Claro que ainda nem todos despertaram, mas são muito menos os adormecidos embora em determinadas classes sociais o condicionamento persista e em regiões onde essas classes compõem a maior parte da população, o complexo de vira lata continua bastante forte, pois mesmo que o vira lata tenha se desencantado com quem o colonizava, ainda prefere políticos relacionados ao velho sistema ao qual se apegou numa dependência bastante comum, ainda que mórbida, entre dominado e dominador.

É como aquele pobre cão que por mais que o dono o espanque, jamais abandona o terreiro.

Um caso típico de eleitores do DEM e do PSDB, por exemplo, que há muito tempo ocupam o topo do ranking da corrupção anualmente divulgado pelo 
STE, mas mesmo assim seguem elegendo prefeitos e até governadores aqui e ali.

O DEM, que ocupa o primeiro lugar no ranking da corrupção é seguido pelo PMDB. E, logo depois, os tucanos.

Considerando que o PMDB é o maior partido político do Brasil, está presente em cada município desse país e tem muito mais do dobro de integrantes do que o PSDB, até compreensível que conste como o segundo da lista com maior quantidade de corruptos… Mas o DEM?!!!

Um dos menores partidos políticos do Brasil, integrado apenas pelo coronelato: latifundiários, banqueiros e empresários! A elite econômica e financeira desse país! Só gente rica! Campeão de corrupção todos os anos?

Claro! De alguma forma essa gente tinha de ficar rica, não é? E não há forma mais fácil de ficar rico nesse país do que explorando o complexo de vira-lata daqueles que hoje até podem ser poucos no resto do Brasil, mas aqui em Santa Catarina, de recente colonização europeia, com todos os preconceitos que vão desde os éticos/raciais até os econômicos/sociais, o complexo de vira-lata é tão forte que se rosna para qualquer outro que venha de fora, embora se seja dócil e a cada dois anos sempre se eleja o guarda caça preferido do dono.

Só quem conhece sabe não ser nenhum exagero o rosnar dos catarinenses a qualquer que seja considerado “estrangeiro”, podendo ser estrangeiros não 
apenas os brasileiros de outros estados e até mesmo catarinenses de outras cidades, como inclusive o concidadão de outro bairro.

E isso na capital que das cidades do estado é a que mais recebe visitantes de toda parte do mundo.

Uma questão de cultura e para se entender as diferenças culturais entre Santa Catarina e demais estados do país, convém lembrar que em Pernambuco, que tem um dos menores PIBs do Brasil, o orçamento anual destinado às atividades cinematográficas é de R$ 13 milhões.

Em Santa Catarina, que está entre os cinco maiores PIBs do país, o governo do estado destina anualmente R$ 3 milhões.

Mas um tal de Sistema Estadual de Incentivo à Cultura – Seitec, se orgulha ao anunciar a existência do Funcultural que investe entre 25 e 28 milhões no que eles chamam de cultura catarinense, mas que tem como instituição mais significativa o Balé de Bolshoi, da Rússia, ao qual se associa um festival que traz dançarinos e bailarinos para anuais expressões dessas artes nas culturas do hemisfério norte: balé clássico, jazz, street dance, break, hip hop, country, sapateado, etc.

Tudo muito bonito, mas jamais esperem algo como Antônio Nobrega ou qualquer coisa brasileira, pois que os nativos de “nossa terra, nossa gente” 
apesar de rosnarem para os “estrangeiros” do Brasil, pulam, abanam e se lambem de alegria numa estreita identificação com os estrangeiros de 
fato.

Na sequência da relação do empregado pelo governo do estado de Santa Catarina para incentivo à cultura, o próprio Seitec cita meia dúzia de instituições de pouquíssima ou nenhuma significação pública, entre as quais alguns museus estáticos que se visitados duas vezes em uma década, na seguinte pode faltar luz que ninguém se perde.

E, por fim, segundo o Seitec o restante é empregado nas festas gastronômicas ítalo/germânicas como a Oktoberfest, a Festa do Marreco e a Festa do Pinhão. E pronto!

Para a compreensão dos responsáveis pelo incentivo à cultura de Santa Catarina, isso é tudo e o suficiente para atrair os turistas para essa terra e essa gente tão fechada ao Brasil e tão aberta àqueles que pouco vêm para cá por preferirem o calor, a maior proximidade à Europa, e a cultura típica e popular de Salvador, Recife, Natal, Fortaleza, etc.

Perante esse panorama e também considerando que a coleira catarinense é bem apertada e controlada pelo monopólio de comunicações do Grupo RBS que se somado aos 600 milhões de sonegação da Rede Globo a quem representa neste estado e no de sua sede, o Rio do Grande do Sul, perfazem um calote de 1 bilhão de reais a cada brasileiro, inclusive catarinenses.

Mas catarinenses são nativos e como nativos se distinguem dos demais brasileiros.

Talvez por esta distinção prefiram continuar elegendo os mesmos políticos que desde os tempos da ARENA da famigerada ditadura militar, depois 
PFL, depois DEM e atual PSD, cumprem com o ritual e estilo do vira-lata que cuida da presa abatida para seu dono caçador.

Deve haver alguma recompensa, como a recebida pelos estadunidenses de Puerto Rico, pois sem alguma recompensa nem vira-lata funciona.

E essas siglas partidárias, como todas as demais que aqui mantém diretórios estaduais, sem exceção, pertencem a um mesmo [Jorge] Bornhausen (foto), o feroz, eficiente e treinadíssimo guarda caças de Santa Catarina que há anos vive em São Paulo.

No caso da notícia abaixo reproduzida, como a Receita Federal por alguma suspeita razão não divulga o nome, seria uma leviandade Bornhausen por essas 350 toneladas de lixo tóxico, mas não há a menor dúvida de se tratar de alguém da matilha.

Não há nenhuma dúvida porque esse tipo de despejo é recorrente aqui no estado e não há muito tempo ocorreu o mesmo problema com containers encontrados no porto de Itajaí.

O orgulho da nativa classe média se infla, pois aqui o complexo de vira-lata não é um sintoma, é síndrome.


E se o lixo está chegando é porque apesar da renitente arrogância de uma Presidenta que se acha no direito de exigir explicações e se nega a atender o chamado do dono, é porque ao eleger sempre os políticos da mesma matilha os catarinenses se confirmam como os melhores guaipecas (**) para a guarda do quintal!

(**) Guaipeca – Regionalismo do sul do Brasil equivalente a vira-lata.

Clique aqui e confira a matéria citada no artigo. 

(*) Raul Longo é jornalista, escritor e poeta. Mora em Florianópolis e é colaborador do “Quem tem medo da democracia?”, onde mantém a coluna “Pouso Longo”.

Fonte:
http://quemtemmedodademocracia.com/2013/09/20/raul-longo-dos-eua-para-santa-catarina-350-toneladas-de-lixo-toxico/