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sexta-feira, 18 de maio de 2012

Água não se nega a ninguém - Parte 4/5

A Liberalização e a Privatização: entre a Teoria e a Prática
Carlos Walter Gonçalves*

Parte 1/5: A Necessidade de Ouvir Outras Vozes
Parte 2/5: Algumas Razões da Desordem Ecológica Vista a Partir das Águas
Parte 3/5: Águas para Quem? Do Interesse Privado e do Público

1- A Transnacionalização e a Maior Concentração de Capital no Campo dos Recursos Hídricos


A liberalização e a mercantilização vem ensejando uma nova dinâmica à "conquista da água".

Trata-se, segundo Ricardo Petrella, “da integração entre todos os setores no contexto da luta pela sobrevivência e pela hegemonia no seio do oligopólio mundial. Cada um desses setores - água potável, água engarrafada, bebidas gaseificadas, tratamento de esgotos – têm, no momento, seus protagonistas, suas especialidades, seus mercados, seus conflitos”.

A Nestlé e a Danone, por exemplo, são as duas maiores empresas do mundo em água mineral engarrafada e junto com a Coca-Cola e a Pepsi-Cola tornaram-se concorrentes das empresas de tratamento de água graças ao desenvolvimento e comercialização nas empresas e residências de uma água dita de síntese, purificada, apresentada como mais sadia do que a das torneiras.

As empresas francesas Vivendi Universal, com faturamento de cerca de 12,2 bilhões de dólares em 2001, e a Suez-Lyonaise des Euax, com faturamento de 9 bilhões de dólares no mesmo ano, vêm disputando ou se associando, conforme o caso, para ter o controle da água potável das torneiras com a gigante alemã RWE (e sua filial inglesa Thames Water), com a Biwwater, a Saur-Bouygues, a estadunidense Bechtel, Wessex Water (Enrom).

Segundo Franck Poupeau analista do Le Monde, “no mercado da água, os dois gigantes franceses e suas inúmeras filiais vêm assinando contratos de privatização muito lucrativos há quinze anos. Os sucessos da Suez-Lyonnaise des Eaux (China, Malásia, Itália, Tailândia, República Tcheca, Eslováquia, Austrália, Estados Unidos) não devem fazer esquecer os da Générale des Eaux (hoje, Vivendi), com a qual a Suez-Lyonnaise se associa às vezes, como em Buenos Aires, em 1993. Nos últimos dez anos, a Vivendi instalou-se na Alemanha (Leipzig, Berlim), na República Tcheca (Pilsen), na Coréia (complexo de Daesan), nas Filipinas (Manila), no Cazaquistão (Alma Ata), mas também nos Estados Unidos, com suas filiais Air and Water Technologies e US Filter”.

A lógica mercantil capitalista, por seu turno, vem mudando o destino da água, assim como os seus destinatários.

É o que se pode ver durante a crise provocada pela seca de 1995 no norte do México, quando o governo cortou o fornecimento de água para camponeses e fazendeiros locais, para garantir o abastecimento para as indústrias controladas em sua maioria por capitais estrangeiros (Barlow, M. in Ouro Azul – consultar http://www.canadians.org)/

Lester Brown também vem assinalando o desvio de água obedecendo à lógica da lucratividade. É ele quem nos oferece cálculos que nos dizem que, na Índia, uma tonelada de água pode gerar um lucro de US $ 200 na agricultura e de US$ 10.000 na indústria. Não deve nos causar surpresa, portanto, quando, aceita essa lógica de mercantilizar a água, se beneficie a água para o destino (e o destinatário) industrial, aliás como vem ocorrendo nos EUA, conforme o próprio Lester Brown, que nos informa que fazendeiros estão preferindo vender a água para industriais pois assim obtém maior lucro! Como observou um morador de Novo México após a água de sua comunidade ser desviada para o uso da indústria de tecnologia de ponta: “A água flui morro acima para o dinheiro”. (Barlow, Maude “Ouro Azul”. Consultar http://www.canadians.org/).

Pode-se dizer, em benefício da dúvida quanto às boas intenções dos que estão propondo essas políticas, que esses são efeitos não desejados da sua aplicação. Todavia, são efeitos reais cujas conseqüências estão sendo, sobretudo, de agravar a injustiça ambiental. Afinal, a admissibilidade de que usemos a quantificação para efetuarmos cálculos mercantis, tão bem ancorada nos fundamentos da ciência ocidental moderna (e colonial), ao se abstrair da materialidade concreta do mundo deixa escapar as relações mundanas que não se deixam aprisionar por essa lógica matemático-mercantil e, assim, a lei da oferta e da procura que funciona tão bem no papel não se mostra desse modo no mundo das coisas tangíveis e o capitalismo realmente existente não se mostra, sobretudo quando se o considera sob o prisma ambiental, um bom alocador de recursos. Até porque a alocação de recursos naturais não depende da dinâmica societária e quando essa dinâmica se inscreve nessa alocação de recursos deveria tomar em conta, sempre, que está imersa em sistemas complexos que não se deixam aprisionar por lógicas lineares, mesmo que multivariadas.

Ricardo Petrella captou a importância do que significa, na verdade, esse processo de apropriação privada desse recurso que flui por todos os seres vivos quando nos diz: “A privatização das águas é, na verdade, a aceitação da privatização de um poder político.

(...) Dessa forma a iniciativa privada se transforma no detentor do poder político real, ou seja do poder de decidir sobre a alocação e distribuição da água”.

(Ricardo Petrella em entrevista concedida à Agência Carta Maior, durante o 1° Fórum Alternativo Mundial da Água em Florença).

2- A QUALIDADE DOS SERVIÇOS – aumento da injustiça ambiental e dos conflitos
O discurso da qualidade foi um dos principais argumentos invocados para toda a política de liberalização e privatização dos serviços de abastecimento e tratamento de água, cuja melhoria e ampliação estaria o Estado impossibilitado de fazer por falta de recursos para investimentos.

Entretanto, longe da tão apregoada superioridade da gestão privada, a Suez, a Vivendi, a Thames Water (RWE) e a Wessex Water (Enrom) foram classificadas pela Agência de Proteção Ambiental do Reino Unido entre as cinco maiores empresas poluidoras em 3 anos consecutivos (1999, 2000 e 2001). Em Buenos Aires, onde a Suez é gestora das concessões, 95 % das águas residuais da cidade é vertida no Rio da Prata, provocando danos ambientais cujos reparos são pagos com recursos públicos.

Em várias localidades os conflitos vêm se acentuando em virtude da má qualidade dos serviços e do aumento do preços das tarifas. Segundo Franck Poupeau, do Le Monde, “as multinacionais da água (...) em alguns casos foram obrigadas a retirar-se de países da América do Sul e a pedir indenização junto a instâncias internacionais. Em 1997, em Tucumán (Argentina), a população iniciou um movimento de 'desobediência civil' contra uma filial da Vivendi, recusando-se a pagar as contas de água por conta da deterioração da qualidade da água e do aumento em mais de 100% das tarifas.

A Companhia Geral das Águas tinha obtido o direito de privatizar as concessões dos serviços de água e esgoto da província em 1993. Mas o súbito aumento do preço dos serviços de água e esgoto, de 104%, em média, provocou o protesto dos consumidores da província: Os primeiros a se organizarem foram os pequenos vilarejos do interior da província, na região de produção de cana-de-açúcar, onde já existe uma longa tradição de luta. No início, sete cidadezinhas formaram uma Comissão de Coordenação e criaram a Associação de Defesa dos Consumidores de Tucumán.”

O governo da província começou por apresentar um pedido de sanções contra a empresa após a descoberta de elementos contaminados na água encanada. "Diante do boicote de pagamento, primeiramente a Générale des Eaux ameaçou os consumidores com a suspensão dos serviços e, em seguida, tentou renegociar o contrato para, finalmente, retirar-se, recusando-se a cumprir as obrigações contratuais. Então, passou a atacar os consumidores de Tucumán junto ao ICSID (International Center for Settlement of Investment Disputes), organismo do Banco Mundial que se pronunciou favoravelmente à província. A partir daí, uma mudança de governo retirou dos consumidores a sustentação legal do boicote aos pagamentos” (Poupeau, F. Le Monde).

Também em La Paz, o bairro mais pobre da cidade, El Alto, que teve papel destacado no movimento que, em outubro de 2003, derrubou o governo de Gonzalo de Lozada, nos dá uma clara demonstração das conseqüências de se estabelecer uma regra universal de regulação que desconsidera as práticas de gestão comunais, muitas das quais, ali, originárias da cultura Aymará e Quéchua. Com a privatização retirou-se daquelas populações o controle dos seus recursos com o conseqüente aumento dos preços impedindo-se, assim, o acesso dos mais pobres à água. Desde que a distribuição da água passou a ser administrada pela empresa francesa Lyonaise des Eaux, através do Consórcio Águas del Illimani, seus preços aumentaram 600% (de 2 bolivianos para 12) e o preço pela instalação que era de 730 bolivianos antes da privatização passou a 1.100 bolivianos e a água abundante não está acessível para a população.

Em 2000, em Cochabamba (Bolívia) ocorreu um conflito intenso que ficou conhecido como a Guerra da Água e que ensejou, assim, como em Tucumán, na Argentina, novas formas de gestão democrática com ampla participação protagônica da população, ali conhecido como Cabildo Abierto (Ver Revista no. 2 do Observatório Social da América Latina).

Cabe, nesse caso, destacar um componente original do affair Cochabamba, onde o Consórcio liderado pela empresa estadunidense Bechtel obteve a concessão mediante um expediente jurídico inusitado: uma cláusula de confidencialidade! É surpreendente que uma concessão pública seja feita com um expediente que proíba sua divulgação! Até aqui, conhecia-se o argumento da razão de Estado para se garantir o sigilo de algumas informações e decisões que se considerava estratégicas para o Estado. Entretanto, uma cláusula de confidencialidade para não revelar os termos de uma concessão de exploração de serviços de água, mostra o quanto não se pode transportar para o espaço público as regras da empresa privada, onde o direito do proprietário está protegido e acima do interesse público [12].

Caberia destacar, ainda, no Brasil, o caso do Riachão afluente do rio Pacuí na bacia do São Francisco no município de Montes Claros, norte de Minas Gerais, onde a falta de água vem se agravando com a implantação de pivôs centrais por parte de grandes proprietários irrigantes. Na região, o conflito vem se acentuando pela expansão de várias monoculturas empresariais, seja de eucaliptos, pinnus alba e pinnus elliotis para fazer carvão vegetal ou matéria prima para a indústria de celulose. Nessa mesma região, o movimento camponês lançou no município de Manga, em 1996, um tipo de manifestação que desde então se repete em todo o país - a Romaria das Águas. O movimento ganhou uma radicalidade tal que lançou mão de uma manifestação até ali inusitada – a greve de sede. Lembremos que na greve de fome o manifestante se mantém vivo muitos dias se alimentando de água, o que não acontece na greve de sede. A importância da água não podia se manifestar de modo mais contundente!

As resistências à mercantilização e à privatização da água vêm se tornando cada vez mais freqüentes em todo mundo. Em vários casos o processo foi interrompido: Cochabamba e La Paz (Bolívia), Montreal, Vancouver e Moncton (Canadá), em Nova Orleans, na Costa Rica, na África do Sul, em várias regiões da Índia, da Bélgica, em várias municipalidades da França que voltaram a ter serviços públicos de água administradas diretamente pelo Estado ou por meio de autogestão, como em Cochabamba, Bolívia. Vários conflitos foram registrados ainda nas Filipinas, no Senegal, em Mali, na Alemanha, no Brasil, na Argentina, em Burkina-Fasso, em Gana e na Itália [13].

Cresce por todo o lado por meio das lutas pela reapropriação pública da água a compreensão de quais são os verdadeiros interesses que vêm se movendo em torno do atual debate por novas formas de gestão e controle da água. “As empresas multinacionais de água estão conseguindo cada vez mais o controle das águas do mundo. Os organismos financeiros internacionais seguem fomentando a expansão internacional dessas empresas e os acordos internacionais de livre comércio lhes permitirão exercer ainda maior influência no setor da água. Não obstante, essas empresas sempre têm posto seus interesses de lucro privado acima das necessidades da população e os organismos financeiros internacionais e as instituições que regem o comércio até agora não tem garantido que as privatizações da água não prejudiquem aos povos e ao ambiente” (Amigos da Terra - “Sed de Ganancias”. Consultar o sítio http://www.foei.org/).


Vender água no mercado aberto não atende as necessidades de pessoas sedentas e pobres”, nos diz a canadense Maude Barlow. “Pelo contrário, a água privatizada é entregue àqueles que podem pagar por ela, tais como cidades e indivíduos ricos e indústrias que usam água intensivamente, como as de tecnologia de ponta e agricultura". (Barlow, Maude “Ouro Azul”. Consultar http://www.canadians.org)./

As denúncias em relação à privatização da água referem-se, quase sempre, às conseqüências socioambientais decorrentes da integração das economias locais a um mercado que se quer nacional e mundialmente unificado o que, cada vez mais, vem implicando não somente uma orientação da produção para o comércio exterior, mas também a intensificação da exploração dos recursos naturais. Maude Barlow mostrou como “os países reduzem as taxas locais e as normas de proteção ambiental para permanecer competitivos. (...) Os governos ficam, então, com uma capacidade fiscal reduzida para recuperar as águas poluídas e construir infra-estruturas para proteger a água; ao mesmo tempo, torna-se mais difícil regulamentarem a prevenção de poluições posteriores.”

[12] Sublinhemos, de passagem, que grande parte do problema ambiental se deve exatamente ao segredo comercial que protege o proprietário de não revelar as substâncias e os processos com que opera expondo, antes de tudo, o trabalhador a conviver com substâncias que, depois, são lançadas como resíduos sólidos, líquidos e gasosos no ambiente. A falta de democracia no interior das empresas, nas fábricas e fazendas é, de fato, o maior dos empecilhos para que o ambiente seja cuidado desde a produção e não a partir dos seus efeitos.  Afinal, o efeito estufa, como o próprio nome indica, é efeito e deveríamos estar cuidando de evitar a sua produção e não dos seus efeitos. Mas, para isso seria necessário que democratizássemos a empresa, instituição de poder que, diga-se de passagem, menos sensível tem sido à democracia.

[13] Depois do segundo Fórum Social Mundial de Porto Alegre foi criada a Coalizão Mundial contra a Privatização e a Mercantilização da Água no dia 23 de maio de 2002 em Créteil, pelos representantes de cerca de trinta organizações vindos da Malásia, Índia, Gana, Marrocos, da França, da Itália, da Suíça, da Espanha, do Canadá, dos Estados Unidos, do Brasil, da Bolívia, da Argentina, do Equador e do Chile.

(*) Geógrafo, doutor em Ciências pela UFRJ e Coordenador do Programa de Pós-graduação em Geografia da UFF. Ex-Presidente da Associação dos Geógrafos Brasileiros (1998-2000) é autor de diversos artigos e livros publicados no Brasil e no exterior.

[Nota da Equipe Educom: Parece que o Brasil está fazendo um movimento inverso à luta dos povos latino-americanos... De modo geral, os tecnocratas da ANA (Agência Nacional de Águas) e do CPRM (Companhia de Pesquisas e Recursos Minerais) têm ajudado o mercado da água a acelerar o processo de privatização, à medida que pesquisadores do país descobrem que nosso potencial de água é maior do que imaginávamos. Entregam pesquisas já feitas por brasileiros a estrangeiros, patrocinadas a peso de ouro com recursos do povo brasieliro, negados aos pesquisadores das instuições e das universidades brasileiras.]


Próxima parte (final): 5/5 - A Guerra da Água

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Ativista destaca risco da privatizaçao da água

O acesso à água potável e o saneamento básico é um direito humano essencial declarou a Assembléia Geral da Organizaçao das Nações Unidas (ONU), dia 28 de julho de 2010, na sede da entidade, em Nova York. A resolução foi aprovada por 122 votos a favor e 41 abstenções. Portanto há mais de um ano não  se respeita esse direito universal. O Aquífero Alter do Chão tem quase o dobro da água do Guarani e está sendo privatizado.  Manaus é abastecido  pelo Aquífero Alter do Chão, mas quem não pode pagar à concessionária francesa, não tem água. A maoria dos joranalistas e dos ambientalistas, além dos governantes desconhecem essa resolução da ONU,  e também, do processo de privatização da água no Brasil (Zilda  Ferreira)


por Fernanda B. Müller, do CarbonoBrasil

Autora do livro ‘Água, o Ouro Azul’ e vencedora do Right Livelihood Award, Maude Barlow luta pela efetivação da água como um direito humano e alerta para a iminência da privatização do acesso aos recursos hídricos do Aquífero Guarani.
0 Ativista destaca riscos da privatização da água
A água é para o século 21 como o petróleo era para o século 20, é o que estamos acostumados a ouvir. Não há mais dúvidas que a água é um tesouro que precisa ser prioritário nas políticas de gestão dos países e que sim, ela já começou a ser motivo de guerras assim como o petróleo é há tantas décadas.
Países como a China, superpopulosos e com recursos naturais cada vez mais escassos, já buscam recursos hídricos de qualidade nos seus vizinhos, a exemplo da região dos Himalaias tibetanos.
Porém, o alerta soado por ativistas ao redor do mundo, mascarado por campanhas publicitárias e políticas, é da corrida de grandes investidores para se apoderar das reservas de água potável nos países mais pobres.
“Rios inteiros foram comprados por corporações… O setor privado viu que o mundo ia para uma crise da água e está se movimentando”, enfatizou a ativista canadense de direitos humanos Maude Barlow, autora do livro “Água, o Ouro Azul”.
Fundadora do projeto Blue Planet Project (Projeto Planeta Azul), ela é chefe do Council of Canadians, a maior organização canadense de militância pública. Entre 2008 e 2009 atuou como consultora-sênior em água do presidente da 63ª Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Por seu trabalho no movimento pela justiça da água recebeu o prêmio sueco Right Livelihood Award (o “Nobel Alternativo” do Meio Ambiente).
Há décadas envolvida com movimentos sociais, Barlow luta pelo reconhecimento da resolução de 2010 da Assembléia Geral das Nações Unidas que declara o acesso à “água potável e segura e ao saneamento” como um direito humano.
Atualmente quase dois bilhões de pessoas vivem em áreas com acesso restrito à água e 3 bilhões não têm água corrente dentro de um quilometro das suas residências. A cada oito segundos uma criança morre de doenças relacionadas à água contaminada.
“Não é nenhum exagero dizer que a falta de acesso à água potável é a maior violação dos direitos humanos no mundo”, ressaltou.
A privatização da água que Barlow enfatiza acontece quando o seu uso é comercializado por grandes empresas através da obtenção de concessões do governo. O resultado é que elas acabam “negando acesso às pessoas que não têm condições de pagar”.
“A água é uma commodity, parte do patrimônio da humanidade ou um direito humano?”, questiona. Economistas alegam que o comércio pode incentivar maior eficiência na distribuição da água.
Ela cita o exemplo da Austrália, primeiro país a instaurar um sistema de comércio da água já a partir de 1982 nos estados do sul.
Entre 2008 e 2009, o mercado australiano de licenças para uso de água teve negociações da ordem de A$ 2,74 bilhões, um aumento de 70% em relação ao ano anterior (Comissão Nacional da Água, 2009). O sistema crescente envolve bolsas de valores, advogados e corretores.
O valor da água aumentou muito nos últimos anos na Austrália. Em 1990, o valor de uma licença permanente no estado de South Australia era de cerca de A$ 50-100 por megalitro e alcançou uma alta de cerca de A$ 2.600 em 2007. Desde então, o valor caiu levemente, com o governo pagando agricultores (que possuem as licenças de uso) cerca A$ 2.075 o megalitro em 2010. Estas concessões serão convertidas em “títulos ambientais” controlados pelo governo federal.
Barlow denuncia que na Austrália, empresas do agronegócio começaram a comprar as concessões dos pequenos agricultores e o preço da água explodiu, sendo que agora até mesmo o governo tem dificuldades de compra-la novamente.
Outros países que têm esquema de comércio da água são Estados Unidos, África do Sul, Espanha (nas Ilhas Canárias) e Chile. Neste último, compradores e vendedores podem executar negociações em curto prazo de volumes específicos, concessões anuais ou vendas permanentes.
Especialistas alegam que em nenhum lugar do mundo o sistema de venda de água é tão permissivo e com supervisão ínfima do governo como no Chile, onde os direitos à água são propriedade privada desde 1981, durante e ditadura militar.
No norte do país, produtores rurais competem com empresas de mineração na captação dos rios e escassos recursos hídricos, deixando cidades como Quillangua a míngua, denuncia o jornal The New York Times. A população atual da cidade agora é de cerca de um quinto do que era há duas décadas, apenas 120 habitantes.
Brasil
O apelo de Barlow recai sobre a nossa responsabilidade no cuidado sobre as águas em território brasileiro e especialmente na gestão das reservas hídricas transfronteiriças, como o Aqúifero Guarani. Ela esteve em Florianópolis na última quarta-feira (9) para o I Congresso Internacional “O futuro da água no Mercosul”.
“Vocês estão sentados sobre um vasto recurso hídrico, um tesouro em um mundo onde a demanda aumenta e a oferta diminui, isto é geopoliticamente cada vez mais importante”, comentou Barlow.
A necessidade de manejar adequadamente as atividades que se desenvolvem sobre a área do Aquífero Guarani, levando em conta não apenas a quantidade consumida, mas também a poluição gerada (fertilizantes, agroquímicos, esgoto) é urgente.
“Sofremos com o mito da abundância e isto é errado. Estudos indicam que até mesmo os Grandes Lagos (fronteiro Estados Unidos/Canadá) podem secar em 80 anos, então o Guarani também pode. Não existe aquífero seguro quando as águas superficiais estão sendo poluídas”.
Ela enfatiza que a sua maior preocupação é que o Guarani seja dominado pelas grandes corporações com o argumento que os governos não dão conta e apenas o setor privado pode cuidar da água. Este fato fica transparente quando olhamos para o setor de biocombustíveis, “BP e Shell estão vindo para o Brasil e vão precisar de muita água”, alerta.
“Este aqüífero vai virar uma commodity como o óleo e o gás e será colocado a venda… O setor privado tem o seu papel, mas não pode governar, pode sim construir a infraestrutura, mas a gestão tem que ser pública”.
No Brasil a Política Nacional de Recursos Hídricos coloca a água como um bem de domínio público, um recurso natural limitado, porém dotado de valor econômico.
Bem comum
A água é um bem comum da humanidade e das futuras gerações, ninguém pode se apropriar dela, pois deve ser compartilhada e protegida, defende Barlow.
Ela aponta como um exemplo bem sucedido o modelo de gestão assumido pelo estado norte-americano de Vermont, onde a água é um bem público servindo a comunidade, garantindo que a prioridade é o abastecimento das pessoas, não do setor privado.
Outra iniciativa de sucesso segundo Barlow são as constituições de Bolívia e Equador.
“A constituição do Equador é a constituição da Água, têm uma concepção biocêntrica, atribui direitos à natureza, que é tradada como um ente coletivo de direitos”, comentou o professor Doutor da Universidade Federal de Santa Catarina Antonio Carlos Wolkmer.
“Já a constituição na Bolívia, o estado plurinacional representa mais de 30 etnias em um novo modelo de política que transcende o Estado nacional”, completou Wolkmer.
A partir da resolução A/HRC/15/L.14 da ONU, a água se tornou um Direito Humano, portanto os países têm o dever de formatar planos para suprir quem não tem acesso à ela.
Neste contexto, Barlow defende que a região do Guarani e do Rio da Prata sejam declarados como “Bioregião Protegida”, assim como a Grande Barreira de Corais e o Serenguetti.
Cada biorregião tem características peculiares como clima, vegetação, recursos hídricos, topografia, solo, fauna e comunidades humanas, seu conceito é comumente utilizado para fins de gestão ambiental, por dar ênfase à proteção da natureza. Está, portanto, diretamente relacionado aos conceitos de sustentabilidade e de ética ambiental.
Barlow lembra uma frase de Martin Luther King:
“A legislação não modificará o coração, mas restringirá os sem coração (tradução literal)”.

Vídeo: ‘Ouro Azul: A Guerra Mundial pela Água’ parte 1/9.

*Publicado originalmente no site CarbonoBrasil.

Fonte: Site Envolverde

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

'Ouro Azul', de Maude Barlow e Tony Clarke

Como as grandes corporações estão se apoderando da água doce do nosso planeta

Nota da editora política: Quando Maria Lúcia Martins, que, além de jornalista, também é tradutora, disse que queria resenhar o livro "OURO AZUL - Como as grandes corporacões estão se apoderando da água doce do nosso planeta" achei a ideia ótima. Esse livro é muito interessante, mas difícil de resumir, pois é gigantesco o número de dados. Cada pessoa faz uma leitura diferente. Li alguns capítulos várias vezes. Mas, quando "Ouro Azul" foi traduzido no Brasil, o que me deixou profundamente chocada foi o lucro do Império Vivendi com os serviços ambientais. Em 2000, foram 44,9 bilhões de dólares, sendo as grandes geradoras dessa renda as empresas de água. E o mais impressionante é que o império Vivendi é dono também de editoras, jornais, revistas, redes de TV, produtoras de cinema e serviços de internet na França, sendo o segundo conglomerado de comunicação do mundo. Porém, as denúncias mais fortes estão no capítulo "Morrendo de Sede", que Maria Lúcia destacou bem. Conseguimos imagens recentes desse drama, que ilustram o post. Boa leitura (Zilda Ferreira, editora do Blog EDUCOM).
Por Maria Lúcia Martins, colaboradora do Blog EDUCOM
O livro Ouro Azul foi publicado no Brasil pela editora M. Books e traduzido para 16 idiomas. Escrito a quatro mãos por Maude, especialista em água e fundadora do Projeto Planeta Azul (www.blueplanetproject.org) e Clarke, ativista que se levantou contra as práticas do livre-comércio, a obra aponta para os riscos da privatização da água e da conceituação dela como “necessidade” e não como “direito”. Uma vez considerada um “bem necessário”, a água pode ser enquadrada como commodity, atendendo aos interesses do lucro de grandes corporações que hoje já controlam boa parte da água do planeta. Dentre essas corporações, estão as que simultaneamente estendem seu poder a outras áreas como política, energia, obras de infra-estrutura e mídia. E os “senhores da água do planeta” continuam a conquistar novos recursos.

A crise

A humanidade está poluindo e esvaziando a fonte da vida num ritmo surpreendente. A demanda por água doce crescente tem impactos sociais, políticos e econômicos, provocando conflitos relacionados à água. Nos próximos 15 a 20 anos (20 a 25 anos é o número citado em 2001, quando foi publicado o livro), a menos que mudemos nosso comportamento, entre metade e 2/3 da humanidade estará vivendo com severa escassez de água doce.

Até a década de 1990 o estudo sobre a água doce foi destinado a grupos altamente especializados de peritos, revelam os autores, que afirmam: “A água, de acordo com o Banco Mundial e as Nações Unidas, é uma necessidade humana e não um direito humano. Uma necessidade humana pode ser provida de muitas formas, especialmente para aqueles com dinheiro. Mas ninguém pode vender um direito. Em março de 2000, quando a água foi definida como uma mercadoria no segundo Fórum Mundial de Água, em Haia, representantes de governos em uma reunião paralela não fizeram absolutamente nada para efetivamente atacar a declaração. Em vez disso, os governos ajudaram a pavimentar o caminho para as corporações privadas lucrarem com a venda dela. Assim, algumas corporações transnacionais, apoiadas pelo Banco Mundial e pelo FMI-Fundo Monetário Internacional estão ofensivamente assumindo a administração dos serviços públicos de água”.

Para fazer frente à ofensiva das grandes corporações, que estão abocanhando as reservas de água doce em todo o mundo, 800 delegados, de 35 países, da reunião de Cúpula da Água para Pessoas e Natureza, firmaram em julho de 2001 o “Tratado para Compartilhar e Proteger a Água, o Bem Comum do Planeta”.

Outras iniciativas e movimentos seguem na luta para frear o avanço das práticas mercantilistas aplicadas à água, um direito de todos dos cidadãos.

A escassez de água doce se agrava por causa do desrespeito ao ciclo da água e pela poluição dos mananciais, por diversos agentes químicos e até naturais. Estudo realizado pelo engenheiro-hidrólogo Michal Kravcik e equipe, da Ong “Pessoas e Água”, da Eslováquia, aponta o efeito alarmante da urbanização, da agricultura industrial, do desmatamento, da pavimentação, da construção de infra-estrutura e de represas nos sistemas de água locais e em países vizinhos: A destruição do habitat natural da água não apenas cria uma crise de suprimento para as pessoas e animais, como também diminui drasticamente a quantidade real de água doce disponível no planeta.

A política

No tratado firmado na Cúpula da Água para Pessoas e Natureza declara que “a água doce não será privatizada, comercializada ou explorada para propósitos comerciais e deve ser imediatamente isenta de todo acordo bilateral e internacional e de acordos de investimentos existentes e futuros”. Esta disposição se contrapõe à conduta dos acordos, especialmente os trilaterais, que vêm avançando sobre os mananciais e sobre os setores onde a água é matéria industrial como o de energia, bem como sobre os meios de comunicação, para que as notícias sobre estes fatos sejam editadas conforme os interesses dos grandes grupos econômicos.

No âmbito das áreas de livre-comércio, por exemplo, o Canadá enfrenta o interesse dos EUA sobre sua água. Desde a metade do século 19, os EUA começaram a seguir a política do Destino Manifesto, ou expansão continental — uma ameaça para a soberania canadense, e nos tempos atuais a água foi incluída na Associação Norte-Americana de Livre Comércio-NAFTA como uma mercadoria negociável.

Os conflitos pela água são inevitáveis e estão crescendo entre fronteiras de nações e entre cidades e comunidades rurais, grupos étnicos e tribos, nações industrializadas e não-industrializadas, as pessoas e a natureza, corporações, cidadãos e classes socioeconômicascompartilhados por dois ou mais países. À medida que a água viaja a partir de sua fonte, ela é desviada para consumo humano, irrigação e hidrelétricas, colocando países rio abaixo numa posição vulnerável. Muitos países em áreas de escassez de água também compartilham águas de lagos e aquíferos. Esta situação constitui uma força de desestabilização entre países ou mesmo dentro de cada nação.

Água: em alguns lugares já não existe mais...

As grandes corporações estão se apoderando da água doce do nosso planeta.

O futuro

“Precisamos reestruturar radicalmente nossas sociedades e estilos de vida para inverter o ressecamento da superfície da Terra; temos de aprender a viver dentro de ecossistemas de bacias hidrográficas que foram criadas para sustentar a vida; abandonar a ilusão de que podemos abusar negligentemente das preciosas fontes de água do mundo porque, de alguma maneira, a tecnologia virá para nos salvar”, alertam os autores.

Estas bacias estão ameaçadas não só por substâncias químicas usadas na lavoura como também por efluentes industriais, como os da indústria de papel e celulose, que usam volumes enormes de água. Os efluentes destas anulam o oxigênio em vias fluviais que, por isso, são sufocadas pelas algas.

Os senhores da água no planeta

De acordo com análise da Fortune, as receitas anuais da indústria da água chegavam a aproximadamente 40% do setor de petróleo e já eram 1/3 maiores que as do setor farmacêutico (2001). Em 1998, o Banco Mundial previa ume crescimento do mercado da água, já que então apenas 5% da população mundial recebia água fornecida pelas corporações. Segundo a Global Water Intelligence, que faz análises mensais do mercado global de água, a água em algumas partes do mundo tem o mesmo preço de um barril de petróleo.

Hoje a indústria global da água é dominada por de grandes corporações que se encaixam em três categorias ou camadas. A primeira camada é composta dos dois maiores titãs da água no mundo, a Vivendi Universal e a Suez, que foram pioneiras na construção da indústria da água. A segunda camada consiste de quatro corporações ou consórcios com operações de serviço de água que desafiam o monopólio da “primeira camada”: a Boygues-SAUR, a RWE-Thames Water, a Bechtel-United Utilities e a Eron-Azurix. A terceira camada é composta por um grupo de empresas de água menores: Severn Trent, Alglian Water e Kelda Group. Juntamente com a Thamer Water e a United Utilities, monopolizaram o mercado no Reino Unido. A quarta empresa desta camada é a American Water Works Company.

As corporações que compõem a primeira e a segunda camadas têm vários outros componentes industriais, variando de eletricidade e gás até construção e entretenimento.

Estas empresas atuam diretamente ou através de múltiplas subsidiárias.

Entre os países ou regiões ricos em água doce armazenada em forma de lagos, rios, aquíferos e geleiras estão: Alaska, Canadá, Noruega, Brasil, Rússia, Áustria e Malásia. Entre os pobres em água estão os países do Oriente Médio, China, Califórnia, Cingapura, África do Norte. A regra do jogo, destacam os autores, é garantir o controle sobre os suprimentos de água volumosos e fornecê-los para as áreas de demanda com base na “habilidade para pagar”, a um preço que não apenas cobrará os custos mas também satisfará o desejo por margens de lucro crescentes. O Alaska foi a primeira jurisdição no mundo a permitir a exportação comercial de água em grande volume.

Em 2006 foi assinado, por 25 países com vastas reservas de água, o World Water Export Treaty – WWET. 

Baixe a íntegra do texto de Maria Lúcia Martins aqui