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domingo, 24 de março de 2013

Surge um herói nos EUA - A rara coragem de Bradley Manning - Parte 1/3

04/03/2013 - por Marjorie Cohn (*) em 01/03/2013 no blog Countercurrents
- extraído do site Mirante

Bradley Manning, o soldado estadunidense preso por passar informação ao Wikileaks, pôde afinal se mostrar e falar, depois de um ano em prisão solitária. É herói de verdade.

[Esse sim, herói de verdade, não esses barbosões pretensiosos que andam por aí mal esculpidos por essa mídia caricata - Educom]

Diante de um tribunal militar em Fort Meade, Manning fez dia 28 recente [fev/2013] longo depoimento, no qual se revela homem corajoso, firme, inteligente, lúcido.

Dois que o assistiram relatam a fala de Manning e o tratam como nada menos que herói:

Marjorie Cohn, professora de direito, no original aqui e Michael Ratner, advogado de Wikileaks, no original aqui, ambos em tradução da Vila Vudu a seguir.

Quanto a íntegra da declaração de Manning está transcrita no original aqui e na tradução cedida por Sergio Caldieri, no final desta matéria. [Por ser longa somente a publicaremos amanhã - Educom]

Bradley Manning declarou-se culpado em 10 acusações, entre as quais posse e comunicação deliberada a pessoa não autorizada de todos os principais elementos do que se conhece como documentos vazados por WikiLeaks. A pena, se for condenado pelos crimes que confessa ter cometido, pode chegar a 20 anos de prisão.

Pela primeira vez Bradley pôde falar publicamente sobre o que fez e por quê. Suas ações, agora conhecidas por suas próprias palavras, mostram um jovem soldado muito corajoso.

Quando tinha 22 anos, o cabo Bradley Manning entregou documentos secretos a WikiLeaks. Entre esses documentos, o vídeo conhecido como “Collateral Murder” ["Assassinato Colateral"], em que se veem militares norte-americanos num helicóptero Apache, assassinando 12 civis desarmados, dos quais dois eram jornalistas da Agência Reuters, e ferindo duas crianças.

Supus que, se o público, principalmente o público norte-americano, assistisse àquele vídeo, talvez surgisse algum debate sobre os militares e nossa política exterior em geral, como era aplicada ao Iraque e ao Afeganistão – disse Bradley ante o tribunal militar que o está julgando, durante as formalidades da sessão em que se declarou culpado em algumas das acusações.

Supus que o vídeo pudesse levar a sociedade norte-americana a reconsiderar a necessidade de engajar-se em operações de antiterrorismo, sem nada saber sobre a situação humana das pessoas contra as quais disparamos todos os dias.

Bradley disse que se sentiu frustrado por não ter conseguido convencer seus superiores a investigar os fatos que se veem no vídeo “Assassinato Colateral” e outras imagens e escritos de “pornografia bélica” que havia nos arquivos que entregou a WikiLeaks.

“Fiquei muito perturbado, quando não vi qualquer reação diante de crianças feridas.” O que mais perturbou Bradley foram os soldados que se veem no vídeo, que parecem não dar valor algum à vida humana e referem-se [aos alvos dos tiros], como “filhos da puta mortos” [dead bastards].

Pessoas que se aproximaram para resgatar os feridos também foram alvejadas e mortas. A ação dos soldados norte-americanos que se veem naquele vídeo é tipificada como crime de guerra nos termos das Convenções de Genebra, que proíbe de atirar contra civis; impedir resgate e socorro de feridos; e destruição de cadáveres para impedir que sejam identificados.

Ninguém de WikiLeaks pediu ou estimulou-o a dar os documentos, disse Bradley. “Ninguém associado com a Organização WikiLeaks (WLO) pressionou para que lhes desse mais informações. A decisão de entregar documentos a WikiLeaks foi exclusivamente minha.”

Antes de fazer contato com WikiLeaks, Bradley tentou interessar o [jornal] Washington Post para que publicasse os documentos, mas não recebeu qualquer resposta do jornal. Tentou fazer contato também com o New York Times, também sem sucesso.

Durante os primeiros nove meses de detenção, Bradley foi mantido em cela solitária – o que caracteriza tortura, dado que o isolamento pode levar a alucinações, catatonia e suicídio.

Bradley manteve a declaração de “inocente” nos demais 12 crimes de que os promotores do tribunal militar o acusam, dentre outros o crime de espionagem a favor do inimigo e colaboração com o inimigo, cuja pena é a prisão perpétua.

As ações de Bradley fazem lembrar o que fez Daniel Ellsberg, que divulgou os “Papéis do Pentágono”, no qual se expunham as mentiras do governo dos EUA e que apressaram o fim da Guerra do Vietnã.

(*) Marjorie Cohn é professora da Faculdade de Direito Thomas Jefferson e ex-presidente da National Lawyers Guild [aprox. Ordem dos Advogados dos EUA]; é vice-secretária geral de comunicações da Associação Internacional de Advogados Democráticos e representante dos EUA no Comitê Executivo da Associação Americana de Juristas. É autora de Cowboy Republic: Six Ways the Bush Gang Has Defied the Law [República dos caubóis: seis vezes em que a gangue de Bush desobedeceu a lei] e co-autora, com Kathleen Gilberd, de Rules of Disengagement: The Politics and Honor of Military Dissent. Pode-se ler uma antologia de seus escritos em The United States and Torture: Interrogation, Incarceration and Abuse. Outros artigos da professora Marjorie Cohn são acessíveis em www.marjoriecohn.com

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01/03/2013 - Manning e os crimes de guerra dos EUA
- vídeo e entrevista traduzidos com Michael Ratner, advogado
- The Real News Network, TRNN

PAUL JAY, editor sênior da TRNN:

Michael Ratner, advogado do Wikileaks, assistiu à audiência, ontem [28/02/2013], em que Manning (foto) falou, em tom firme, com inteligência e confiança, detalhando as inúmeras brutalidades às quais assistiu e que o levaram a enviar os documentos que, sim, enviou a Wikileaks.

Aqui, Michael Ratner fala à TRNN e conta o que viu.

Michael, que fala conosco de New York City, é presidente emérito do Centro de Direitos Constitucionais; é presidente do Centro Europeu pelos Direitos Humanos e Constitucionais em Berlim; é o advogado que defende Julian Assange nos EUA; e também é membro do conselho editorial de The Real News Network (TRNN). Obrigado pela entrevista.

MICHAEL RATNER: É um prazer estar com você, Paul.
JAY: Você ontem viveu dia muito fortemente emocionante, assistindo ao julgamento histórico de Bradley Manning. O que aconteceu lá?

RATNER: Fui cedo para Fort Meade, e foi coisa de dia inteiro. Bradley Manning estava na sala do tribunal. A maior parte de imprensa foi direcionada para um auditório, e só uns poucos – eu também, mas não sou jornalista – fomos autorizados a entrar na sala em que Bradley Manning depôs.

Foi dia especial, porque o advogado de Bradley Manning e o próprio Bradley decidiram que Bradley se declararia culpado em algumas das acusações, com penas menores; mas não nas acusações de espionagem e colaboração com o inimigo.

Fato é que, para mim, no plano emocional, foi um dia devastador. No fim do dia, sentia-me uma ruína, emocionalmente devastado. Mas, ao mesmo tempo…

Quem lá estava viu, afinal, quem é Bradley Manning. É um herói. Um desses raros homens que, diante de um crime para o qual todos fecham os olhos, encontra o que fazer e age.

Tecnicamente, Bradley, hoje, declarou-se culpado em nove acusações.

E, quando o acusado se declara culpado, a corte tem de ter certeza de que o acusado entende perfeitamente o que está fazendo, que entende a natureza da confissão de culpa.

Então, a corte pede ao acusado que narre detalhadamente as próprias ações.

Bradley Manning declarou-se culpado de distribuir, ou de transferir a WikiLeaks (que são meus clientes), todos os documentos dos chamados “Iraq War Logs”, dos “Afghan war logs”, o vídeo “Collateral Murder”, telegramas do Departamento de Estado, os 13 telegramas de Reykjavik, etc.

Mas o mais interessante, nessa admissão de culpa em nove acusações, foi que a juíza permitiu que Bradley lesse uma declaração de cerca de 30 laudas. [Como dissemos acima, por ser longa somente a publicaremos amanhã - Educom]

A leitura durou duas, quase três horas. E esse documento, sim, permitiu ver que tipo de homem é Bradley Manning. Foi declaração profunda, imensamente emocionante.

Começa com quando ele se alistou no exército; fala depois de sua primeira missão no Iraque. E essa primeira missão já foi associada a algo que se conhece como SigAct, abreviatura de “atividades significativas”: são os relatórios diários de tudo que acontece em campo.

E Bradley, quanto mais lia aqueles relatórios, mais perturbado se sentia com o que via acontecer no Iraque: número de mortos, número de…

Bradley disse que entendeu rapidamente que estavam assassinando pessoas cujos nomes constavam de uma ‘lista de matar’.

Que absolutamente não estavam ajudando a salvar ninguém. E conta que concluiu que teria de haver discussão muito séria sobre a contra-insurgência  se existe para ajudar alguém ou para ferir inocentes e matar alvos predefinidos.

Ao mesmo tempo em que trabalhava com os arquivos da guerra do Iraque – era parte do seu trabalho – trabalhava também com os arquivos da guerra do Afeganistão, material muito semelhante, condições semelhantes, locais semelhantes. Todos esses arquivos passaram pelas mãos de Bradley.

Também ao mesmo tempo, ouviu falar da organização WikiLeaks. E ouviu falar de WikiLeaks porque WL acabava de divulgar – nem lembro quantas dezenas de milhares de SMSs, aquele, com as mensagens de texto de pessoas que estavam dentro do World Trade Center quando foi atacado.

Assim, ele tomou conhecimento da existência de WL.

Em seguida fez algumas pesquisas pelo computador, e descobriu que, em 2008, havia um documento do governo dos EUA sobre como desmontar a organização WL.

Quer dizer… Foram dois processos: Bradley lendo os arquivos da Guerra do Iraque, os arquivos da Guerra do Afeganistão e, em seguida, fazendo contato, como fez, com WikiLeaks.

Mas, no início, só havia os arquivos da Guerra do Iraque e os arquivos da Guerra do Afeganistão, e Bradley cada vez mais perturbado com o que lia.

De início, não fez qualquer movimento. Mas, em certo momento, ele viajou aos EUA já com todos aqueles arquivos baixados em seu computador, acho, ou num CD, talvez num pequeno cartão para transporte de dados.

Estava em Maryland. Nevava muito. Bradley não conseguia decidir-se sobre o que fazer com os arquivos. Falou sobre eles com um amigo, seu namorado, pelo menos durante algum tempo, e perguntou a ele “o que você faria se tivesse com você coisas que todos os norte-americanos têm de ver? O rapaz nada disse de relevante. Bradley continuou a pensar nos arquivos, que continuavam a incomodá-lo.

Quando voltava de Boston a Maryland, entrou numa loja Barnes & Noble, para fugir da tempestade de neve e, também, porque precisava do acesso à banda larga, e, dali, enviou os documentos a WikiLeaks. Enviou pela própria página de WL, na qual há uma sessão para envio anônimo de documentos.

Depois, Bradley, como já dissera antes, diz que se sentiu muito aliviado; “eu tinha certeza de que era algo que o povo norte-americano tinha de ver; que todos têm de debater essa guerra. E eu esperava que os arquivos da Guerra do Afeganistão e os arquivos da Guerra do Iraque modificassem a situação”. Assim, o primeiro bloco de documentos estava enviado.

A partir daí, é claro, há correspondência, de algum modo, entre Manning e WikiLeaks. Manning nunca soube quem estava na outra ponta do contato por computador.

Diz que, em algum momento, é possível que tenha sido o próprio Julian Assange, ou, talvez, alguém chamado Daniel Schmitt (um rapaz alemão que esteve com os WikiLeaks durante algum tempo, Domscheit/Schmitt).

Mas Bradley não sabe quem seria. Diz que, sim, bem poderiam ser outras pessoas das organizações WikiLeaks. Eu nunca soube com quem me comunicava, da organização WikiLeaks. Todos os contatos eram anônimos.”

Bradley diz também que, ninguém associado com a Organização WikiLeaks (WLO) pressionou-o para que lhes desse mais informação.

“A decisão de entregar documentos a WikiLeaks foi exclusivamente minha”, ele disse.

É bem claro que Bradley é pessoa politizada. Pelo menos, entende claramente que a opinião pública tem de conhecer exatamente o que fazem os governantes.

Depois disso, o grande acontecimento foi o vídeo “Collateral Murder”.

As pessoas, nos gabinetes no Iraque, discutiam se os vídeos seriam legais, se estariam de acordo com as leis de guerra e do serviço militar, ou não.

Bradley decidiu ver, ele mesmo, os tais vídeos. E viu. E horrorizou-se porque “primeiro, sim, até se poderia argumentar que tivesse sido acidente”, quando os dois jornalistas da Reuters foram mortos com tiros de arma que atirava do que parece ser um helicóptero. E, sim, é possível que tenha acontecido um engano, como Bradley disse. E há discussão até hoje sobre se teriam, mesmo, de assassinar os jornalistas da Reuters.

Mas o problema é que, em seguida, aparece uma caminhonete para socorrer as pessoas feridas… E os atiradores no helicóptero atiram contra a caminhonete. E isso, Bradley parece não ter dúvida alguma, é crime de guerra, ação bem claramente proibida. Era pessoal de resgate, que vinha resgatar os feridos. Ninguém portava armas.

Mas o vídeo permite ouvir as falas dos militares dentro do helicóptero, a sanha por sangue. E a expressão que ele usou: sanha de sangue [orig. bloodlust]. Quando veem alguém que rasteja no chão, aparentemente já ferido, alguém diz no helicóptero que “tomara que ele saque a arma”. Evidentemente, para terem o pretexto necessário para matá-lo.

O vídeo também o incomodou. Incomodou-o, sobretudo, o fato de o vídeo não ter sido entregue à Agência Reuters, apesar de a Reuters tê-lo requisitado, em nome das famílias dos dois jornalistas mortos. E o governo dos EUA, o CENTCOM, os militares responderam que nem tinham certeza de que tivessem o tal vídeo. E o vídeo lá estava. Outra vez, o que temos é Bradley profundamente incomodado com o que via e agindo, reagindo, tomando uma atitude.

Essa é a segunda acusação face à qual Bradley declarou-se culpado: ter entregado aquele vídeo, outra vez, como antes, enviado à página de WikiLeaks. Esse vídeo sequer estava classificado como secreto – o que é interessante. Mas Bradley enviou o vídeo, sim, à organização WikiLeaks.

O terceiro caso é com a polícia iraquiana.

Pediram que Bradley ajudasse a polícia do Iraque, a polícia de Bagdá, que os ajudasse a identificar, insurgentes, não sei, ou outros desse tipo. Àquela altura, 15 pessoas foram entregues à polícia iraquiano.

E Bradley examinou aqueles casos; pediu para examiná-los. E descobriu que nada havia contra aquelas pessoas; no máximo, acusações de terem colado cartazes criticando a corrupção no governo iraquiano.

Mais uma vez o caso incomoda Bradley, porque aqueles prisioneiros foram terrivelmente maltratados. Bradley temeu que fossem mortos ou desaparecessem ou, até, que fossem mandados para Guantánamo (foto adiante), se fossem entregues aos EUA.

Então, sua primeira providência foi tentar relatar o caso aos seus próprios superiores, os quais, é claro, não lhe deram qualquer atenção. Bradley, outra vez, enviou os arquivos relacionados àqueles prisioneiros, para WikiLeaks. WikiLeaks não publicou aqueles documentos, mas, é claro, Bradley continuava conversando com WikiLeaks. Mas o caso dos iraquianos presos chamou a atenção de Bradley para outro tópico: Guantánamo.

O que Bradley disse à corte foi “[incompr.] tem direito de interrogar pessoas, é claro, mas Guantánamo é moralmente questionável. O que fazemos ali é manter encarceradas pessoas inocentes, pobres, gente de escalão muito inferior, e Barack Obama prometeu fechar Guantánamo. Minha opinião é que manter aquela prisão fere os EUA.

A partir daí, Bradley passou a trabalhar no que hoje se chama “arquivos dos detentos”, arquivos sobre cada um dos prisioneiros de Guantánamo. E, quando falou com WikiLeaks, disse que mandaria aqueles arquivos; WikiLeaks respondeu “OK, são arquivos antigos, já perderam o conteúdo político, mas são historicamente importantes para o caso Guantánamo; e podem ser úteis aos advogados”. Então, os arquivos foram enviados para WikiLeaks.

Na sequência, a última coisa sobre a qual Bradley falou foram os telegramas do Departamento de Estado.

Houve telegrama anterior, chamado “Reykjavik 13, que, de fato, foi o primeiro documento, pelo que sei, que WikiLeaks divulgou online.

Reykjavik 13 foi recolhido de uma website que tem algo a ver com a Islândia.

E, de repente, lá estava a Islândia – no coração da crise financeira. – E havia terríveis pressões, pelo Reino Unido e pelos EUA, sobre a Islândia, para que o país se rendesse aos programas de resgate e de austeridade. E a Islândia recusou.

E o tal telegrama falava das pressões que os EUA estavam fazendo sobre a Islândia. E Bradley Manning – que sabia o que mais ninguém sabia – reagiu. Denunciou que os EUA estavam assediando a Islândia. Que não pode ser. Que nada, naquele caso, poderia ser secreto.

Com isso, claro, Bradley chegou aos telegramas diplomáticos.

Bradley leu todos os telegramas sobre o Iraque, cada um daqueles telegramas, disse ele; e percebeu que, basicamente, todos aqueles telegramas incluíam crimes, criminalidade de diferentes níveis.

O que o convenceu de que aquele tipo de diplomacia também prejudica os EUA: diplomacia de segredos inconfessáveis dos quais o público jamais toma conhecimento. Em seguida, então, enviou a WikiLeaks os telegramas diplomáticos.

Mas o que se vê em cada um desses casos, é que Bradley foi influenciado, sempre, pelo que viu ou leu. Foi sincera e profundamente atingido e influenciado. E não conseguiu nada, nas tentativas que fez para alertar, primeiro, os seus superiores. Se não conseguia fazer nada dentro da estrutura onde estava – o que mais poderia fazer?

Então, decidiu que todos, todos os cidadãos dos EUA, toda a opinião pública, nos EUA e no mundo, tinham de ser informados.

Porque era preciso discutir aquilo tudo. Supôs que talvez, com a discussão, se conseguiria mudar aquelas políticas.

Mas… Houve vários momentos muito interessantes, no depoimento.

A certa altura, quando já havia voltado para Maryland, pensando em divulgar os arquivos sobre o Iraque e o Afeganistão, Bradley contou que, em primeiro lugar, fez contato com outros veículos.

Telefonou a um dos editores do The New York Times e deixou uma mensagem na secretária eletrônica, ou na página do editor. Jamais houve resposta. Telefonou ao The Washington Post e, disse ele, ninguém, ali, o levou a sério.

Foi quando entendeu que nada conseguiria, em matéria de divulgar os fatos, nem do Washington Post nem do New York Times. Disse que, então, começou a procurar outros meios para divulgar os arquivos. No final, considerando o que WikiLeaks já fizera no passado, Bradley disse que concluiu que seria o melhor meio de divulgar os arquivos.

O que pensei, naquele tribunal, vendo e ouvindo aquele rapaz, 22 anos, que se alistou no Exército aos 20 anos, e que aos 22 já distribuía aqueles documentos para WikiLeaks, porque se sentiu horrorizado, perturbado…

O que pensei ali, naquela hora, é que esse rapaz é um herói. Bradley Manning é um grande herói.

Um homem que viu o que os militares dos EUA faziam no Afeganistão, no Iraque, em Guantánamo, que viu o que o Departamento de Estado fazia pelo mundo… E decide que é indispensável agir, fazer alguma coisa.

Infelizmente, pagará preço muito, muito alto pela sua coragem…

Para que todos entendam, tenho de explicar um pouco como aquilo funciona. Não é como o que se vê nas cortes comuns, quando é possível fazer um acordo com o Procurador, quando há pena máxima e pena mínima, conforme o crime que o acusado escolha confessar. No caso desse tribunal militar as coisas não funcionam desse modo.

Trata-se, nesse caso, do que a juíza chamou de “naked plea” [lit. “admissão nua”(?) (NTs)]. Significa que Bradley apenas decidiu declarar-se culpado nessas nove acusações. Então, a juíza requereu que ele narrasse todos os atos praticados.

Mas essas não são as acusações mais graves. Até aí, só se falou de acusações que, se o acusado for condenado, gerarão pena de 20 anos de prisão. Mas a questão é que o procurador não é obrigado a aceitar coisa alguma. Ele pode dar andamento ao processo e exigir julgamento de todas as demais acusações, as mais graves. Pode até usar elementos do que Bradley Manning confessou ter feito e de como agiu.

E esses desdobramentos é que serão realmente decisivos.

Mas o primeiro passo também conta muito.

Bradley demonstrou que é homem que faz e assume a responsabilidade pelo que faz. A declaração que leu no tribunal é perfeitamente verossímil, faz perfeito sentido, é crível. De fato, é documento impressionantemente sincero e claro.

Pode-se esperar que o juiz seja tocado por aquela fala. Pode-se esperar que a sentença considere que o acusado declarou-se culpado de alguns feitos. Mas não, de modo algum, se declara culpado das acusações que a Procuradoria amontoa contra ele e que podem condená-lo à prisão perpétua. Foi um dia de tribunal realmente impressionante, Paul.

JAY: Muitos disseram que Manning seria homem perturbado, pessoa fraca… Que impressão você teve. De que tipo de homem se trata?
RATNER: Sabe… Vi Manning pela primeira vez na audiência em que ele testemunhou sobre os abusos e a tortura que havia sofrido, durante praticamente um ano, no Iraque e na prisão de Quantico (ao lado).

Já naquele dia, via-se que não é fraco, nem perturbado; é, de fato, muito diferente disso. É homem forte, muito inteligente. Já se via claramente na audiência sobre a tortura e viu-se novamente agora, o mesmo homem.

Em primeiro lugar, é visivelmente pessoa muito inteligente. Não fosse, não teria sido enviado para missão no serviço de computação de alto nível, computadores, informes. É evidente que ele entende do que fazia e fez, em serviço para o qual foi selecionado e nomeado.

Mas também é pessoa que tem personalidade política, que percebe as implicações do que pensa, de como se apresenta. Não é fraco nem é voz fraca.

Num certo momento da audiência, a juíza lhe fez uma pergunta; Bradley respondeu que não poderia responder, porque teria de revelar informação secreta. Muitos riram, porque… ali, sob processo, sob ataque do Promotor, ele ainda pensou mais em proteger informação secreta do que em responder à juíza. Alguns riram. Outros permaneceram sérios. Outros baixaram a cabeça.

Mas é claro que foi dia duríssimo para Bradley Manning… Será sentenciado a pena muito longa.

Esperemos que não receba a pior sentença.

Esperemos que considerem essas acusações nas quais ele declarou-se culpado.

Ainda se deve registrar aquela declaração lida, umas 35 páginas, que não foram distribuídas a ninguém, nem a advogados nem a jornalistas presentes. Só a juíza recebeu o documento.

Mas havia cópias circulando entre aqueles caras que andavam por ali, no salão, em uniforme de camuflagem. Nós não recebemos. Evidentemente, não é documento secreto.

Eu, como outros, ouvimos a leitura de todo o documento, palavra a palavra; claro que não é secreto. O que há é que essa corte é conhecida por demorar muito, inadmissivelmente demais, para distribuir documentos devidos à defesa.

Já há importante processo iniciado contra essa Corte, pelo Centro [de Direitos Constitucionais]. Já obrigamos essa Corte a liberar alguns documentos devidos à Defesa.

Mas a declaração que Manning (foto) leu no tribunal é documento muito, muito importante. Todos, jovens, velhos, que leiam aquela declaração hão de sentir-se tocados.
Talvez mais gente se disponha a agir, a fazer o que possa, para que esse país seja forçado a andar na direção do estado de direito, na direção do respeito à lei.

Para que os EUA deixem de ser a máquina de matar que, me parece, Bradley Manning viu, com clareza, em escandaloso funcionamento.

[Agradecimentos. Fim da entrevista]

Fonte:
http://revistamirante.wordpress.com/2013/03/04/surge-um-heroi-nos-eua/?blogsub=confirming#blog_subscription-2

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade e, excetuando uma ou outra, inexistem no texto original.

quinta-feira, 1 de março de 2012

EUA contra Manning & Assange


29/02/2012-Michael Ratner* (entrevista transcrita por The Real News Network, TRNN)
“United States vs. Manning & Assange” - Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Rede castorphoto

*Michael Ratner é presidente emérito do Centro pelos Direitos Constitucionais (CDC) em New York e presidente do Centro Europeu pelos Direitos Constitucionais e Humanos em Berlim. Atualmente, trabalha como conselheiro para questões de lei nos EUA, contratado por Wikileaks e Julian Assange. Ratner e o CDC foram os primeiros a denunciar a ilegalidade da detenção de suspeitos na prisão de Guantánamo e continuam a trabalhar pelo fechamento daquela prisão. Foi professor da Faculdade de Direito de Yale e da Faculdade de Direito de Columbia, e presidente da Associação Nacional de Advogados. É autor de vários livros, dentre os quais Hell No: Your Right to Dissent in the Twenty-First Century America [Proibido! O direito de discordar, nos EUA do século 21] e Who Killed Che? How the CIA Got Away With Murder [Quem matou Che? Como a CIA escapou de responder por aquele crime].

As opiniões de Ratner nesta entrevista são opiniões pessoais, e não envolvem as organizações das quais participa.

Vídeo URL: http://www.youtube.com/watch?feature=player_detailpage&v=ctKqJ-WJs64 (http://youtu.be/ctKqJ-WJs64)


PAUL JAY, editor sênior, TRNN: Você é um dos advogados de Julian Assange e WikiLeaks e acompanhou a sessão da corte militar que está julgando Bradley Manning. O que aconteceu lá?

RATNER: Bem, como você e seus ouvintes, melhor, seus telespectadores, certamente sabem, Bradley Manning é acusado de ser a fonte de grande parte do material que WikiLeaks publicou: o vídeo “Assassinato Colateral”, em que se assiste aos assassinatos cometidos no Iraque, os tiros partidos de um helicóptero; e as centenas de milhares de documentos de guerra sobre o Afeganistão e também sobre o Iraque; e um quarto de milhão dos chamados “telegramas diplomáticos". E é acusado de ter feito tudo isso aos 22 anos, servindo ao exército. Está agora com 24 anos. Foi tratado com extrema, extrema violência, foi torturado durante longo tempo. E agora está sendo mandado para uma corte marcial – em que militares julgam militares. Pesam contra ele 22 acusações, inclusive, e a mais grave de todas, de ter cooperado com o inimigo, crime punível com pena de morte. Quanto a isso, os procuradores disseram – falaram, pelo menos, sobre isso, o governo disse – que não pedirão a pena capital; disseram que querem julgá-lo e condená-lo à prisão perpétua. Na sessão mais recente desse processo, Manning foi levado ante o juiz, para que se declarasse culpado ou não culpado, ou pedisse uma prorrogação. Assisti a essa sessão. Foi rápida, cerca de uma hora, em Fort Meade, perto de Baltimore, a uma hora, mais ou menos, talvez 40 minutos de distância, do centro da cidade. É uma base militar imensa. Ninguém entra. Meu carro foi revistado. Exigem que você exiba seguro do carro, vários documentos. Se se passa por essa inspeção, entra-se numa fila.

Não se pode levar nenhum tipo de objeto para dentro da sala do tribunal, só papel e lápis. Não se pode usar nenhum tipo de telefone, transmissor, computador, nada. E lá fiquei, naquela sala limpa como quarto de hospital. É difícil descrever aquele tipo de limpeza, de assepsia: revestimento de tipo industrial, barato, no piso; teto de compensado, com pequenos furos; e lugares para apenas 20 pessoas. Havia dez presentes, a maioria, da imprensa. Bradley Manning entrou. É baixo, menos de 1,60m, magro, em uniforme de soldado, ao lado de seu advogado civil (que já foi advogado militar). Sentou-se junto à mesa. E continuava uma sensação estranha, naquela corte antisséptica.

Ali estava aquele homem, acusado de ter revelado quantidades massivas de crimes de guerra cometidos, segundo se sabe, pelos EUA. Mas quem ali estava era Manning, ali, naquele Fort Meade. Sentado ali, o que eu sentia é que ali deveriam estar sentadas as vítimas do que os EUA fizeram no Iraque e no Afeganistão. Mas bem claramente não estavam ali. Ali se viam os militares da acusação, com mais medalhas e condecorações do que eu jamais vira numa mesma sala. E o acusado, claro. Acusado de crimes muito, muito sérios.

O juiz é novo, recentemente indicado, e Bradley Manning foi chamado para responder perguntas. A única coisa que se ouviu dele naquela sala foi “sim, meritíssimo”; e “não, meritíssimo”. O advogado falou por ele; pediu uma prorrogação. E marcaram a data para a próxima audiência, que será em março.

Quanto à data do julgamento – os militares querem que o julgamento aconteça em agosto. O que significa que, se for julgado em agosto – e não creio que o julgamento seja marcado para agosto – Bradley Manning terá permanecido preso, até lá, mais de 800 dias. Durante esse tempo, foi submetido a tratamento que muitos de nós entendemos que seja tortura: foi mantido completamente nu, numa cela solitária, durante nove meses, até que, afinal, muita gente pôs-se a protestar pelo mundo, e ele foi transferido para a prisão de Fort Leavenworth, no estado do Kansas.

Quanto às 22 acusações, como já disse, são pesadíssimas. Na última audiência, seu advogado, David Coombs, disse que Manning está sendo acusado de tantos crimes exclusivamente porque as autoridades norte-americanas acreditam que ele tenha repassado os documentos a WikiLeaks e supõem que ele conheça algum segredo sobre WikiLeaks e Julian Assange; então, querem que Manning conte tudo o que supõem que Manning saiba; não apenas que confesse que passou os arquivos a Assange, mas que diga algo que realmente implique Julian Assange e WikiLeaks.

JAY: A ideia geral é que, se houve um vazamento, Manning é responsável; mas ele pode ter apenas passado adiante, digamos, o material que reuniu. Mas se Assange o instruiu antes, se disse a ele o que fazer ou como fazer, nesse caso seria possível acusar Assange de envolvimento nos mesmos crimes de que acusam Manning. É isso?

RATNER: Você está lembrando um aspecto muito importante. É exatamente isso. Quero dizer: eu não diria exatamente nessas palavras, mas a questão é, sim, exatamente essa. Os juízes militares querem provar – ou, pelo menos, é o que o estado está tentando provar – que Julian Assange participou da conspiração ou que, no mínimo, convenceu e ajudou Bradley Manning a pôr as mãos naqueles documentos. Querem construir um cenário em que Manning e Assange teriam trabalhado juntos desde o começo; Assange não recebeu, apenas, de Bradley Manning documentos que Assange nem sabia que existissem.

Eu não usaria exatamente essas palavras, porque tenho outra hipótese sobre o caso. Considere o seguinte. O repórter James Risen, do New York Times, o jornalista que descobriu as gravações ilegais de telefonemas de cidadãos, que Bush autorizara, recebeu “de dentro”, os documentos que provavam as gravações ilegais; recebeu-as de alguém da Agência Nacional de Segurança, ou de alguma outra agência do governo norte-americano. Não se comentou, mas presumo – não sei desses detalhes – que os documentos não foram simplesmente deixados sobre a mesa de James Risen no New York Times nem lhe foram entregues, de repente, pelo correio. Presumo, não sei, estou presumindo, que houve contatos anteriores entre o jornalista e a “fonte”. Talvez vários contatos.
O que quero dizer é que, em certo momento, os contatos entre jornalista e fonte podem, sim, começar chegar muito perto de conspiração contra o estado, o governo, o presidente. Mas se digo à minha fonte: “encontre-me na esquina de Hollywood e Vine; há um restaurante ali; entre e deixe os documentos sobre o balcão”... Ora. Isso não converte nenhum jornalista em conspirador. Se o jornalista disser à fonte “deixe o envelope embaixo de uma pedra do jardim”... Nada disso, por si só, converte o jornalista em conspirador ou em “formador de quadrilha” [1].

Os EUA estão procurando qualquer vestígio de pêlo em ovo, nesse caso, porque os juízes e advogados que estão trabalhando para acusar Manning já sabem que têm um problema. Se não conseguirem envolver Julian Assange e WikiLeaks num caso de conspiração, no qual alguém consiga provar que Assange instruiu e ajudou Bradley Manning, os juízes nada têm para construir uma acusação formal contra Assange. Qual seria a diferença entre Julian Assange e o jornalista; ou entre WikiLeaks e o jornal The New York Times? Todos os dias abrimos o jornal e lemos páginas e páginas de material sigiloso vazado para a imprensa. Mas os EUA têm agora de tentar – como você disse, precisam manter preso Bradley Manning pelo maior tempo possível, na esperança de que, seja como for, conseguirem implicar Julian Assange nos crimes de que acusam Bradley Manning.

JAY: Entendido. E sobre...

RATNER: Foi exatamente o que disse o próprio advogado de Bradley Manning. Por isso é que Manning está sendo tratado de modo tão violento. Sim, ele baixou todos aqueles documentos. E o governo quer puni-lo pelo que fez, quando ainda era soldado. Mas o que o governo realmente quer – os peixes grandes que o governo dos EUA quer enredar nesse caso são WikiLeaks e Julian Assange.

JAY: A imprensa tem discutido a estratégia da defesa, e parece, pelo que se diz, que, em primeiro lugar, Manning estava em estado mental, psicológico, tão precário, que, em primeiro lugar, ele jamais poderia ter tido acesso a tantos segredos. Ninguém parece interessado em afirmar que, se um soldado encontra provas de que se cometeram crimes de guerra, é dever dele expor o que sabe; que esse seria seu direito e, até, seu dever. A defesa não parece interessada em explorar esse caminho. Estão dizendo apenas que há algum problema, alguma, digamos, fragilidade psicológica, em Bradley, e que ele deve ser absolvido por causa disso.

RATNER: Veja... Ao final da audiência da semana passada, eu estava lá com, digamos, outras dez pessoas, entre as quais um homem que esteve preso com o Padre Berrigan [2], nos anos 1970s. – Imagine só. O homem estava lá, em Baltimore, semana passada! – De fato, acho que foi dos primeiros feridos naquelas manifestações populares dos anos 1970s. Foi preso e depois, acabou por ser posto em liberdade. O homem é do tipo que resiste, você sabe, dos que nunca desistem, um daqueles indestrutíveis militantes pacifistas da resistência contra a guerra. E estava lá, no julgamento de Manning. Ao final da audiência, aquele homem – e isso é importante, a favor do que você lembrou – gritou: “E não é dever de todos os soldados denunciar crimes de guerra?!”

Acho que a questão é exatamente essa. É obrigação dos soldados revelar crimes de guerra que vejam acontecer. E isso, em minha opinião, é exatamente o que Bradley Manning fez. Por isso, todos os que como eu creem que os EUA cometeram inúmeros crimes de guerra, pelos quais tentam não ser responsabilizados, vemos com tanta simpatia a causa de Manning. Assumindo-se que Manning tenha feito o que é acusado de ter feito, ele desempenhou papel muito importante ao trazer todos aqueles crimes ao conhecimento do povo dos EUA.

Mas, sim, como você disse, a defesa parece trabalhar numa via diferente dessa. A defesa de Manning, pelo menos na audiência que chamam de “audiência do artigo 32”, uma audiência preliminar, para estabelecer se há provas suficientes para acusar e julgar alguém, a defesa, como estava dizendo, optou por uma espécie de defesa psicológica.

A defesa de Manning, de fato, optou por uma defesa ‘em dois tempos’: começaram por argumentar que, afinal de contas, havia 3,5 milhões de pessoas, todas com o mesmo nível de acesso a documentos secretos que Bradley Manning também tinha; essas 3,5 milhões de pessoas foram autorizadas a ver aqueles documentos pelos serviços militares e de segurança dos EUA. Assim sendo, o que o governo esperava? Que ninguém, daquelas 3,5 milhões de pessoas, jamais revelasse coisa alguma?

JAY: Só para explicar aos que nos ouvem: Bradley Manning tinha o mesmo tipo/nível de acesso a documentos secretos que outros 3,5 milhões de militares e agentes de segurança. A loucura inicial, portanto, parece ser que tantos documentos hoje apresentados como tão sensíveis, tenham sido expostos a essa verdadeira multidão. Ok. Prossiga.

RATNER: Exatamente. O que quero dizer é que, de fato, aqueles documentos eram de nível “secreto” ou inferior. Nada havia, nos documentos divulgados, que fosse “top secret”. Nos telegramas diplomáticos não há um só documento classificado como “top secret”. Há o vídeo “Assassinato Colateral”, importante; mas foi classificado como “secreto”, não é “top secret”. Por isso, 3,5 milhões de pessoas tinham acesso àqueles documentos. Ainda que Manning e outros não tivessem qualquer motivo para fazer o que Manning está sendo acusado de ter feito, se tinham acesso àqueles documentos, esse acesso lhes foi autorizado por militares ou agentes de segurança de patente superior à de um cabo. Com o que se vê que todo o sistema de segurança é fragilíssimo. Assim sendo, a responsabilidade pelos vazamentos é dos serviços militares e de inteligência dos EUA, que não fizeram o que existem para fazer.

De qualquer modo, pouco me preocupa a fragilidade do sistema de segurança. O que me interessa é que, sim, estavam acontecendo crimes por lá; e os crimes vieram à tona, talvez, exatamente, porque os eventos daquela guerra não estavam protegidos por sistemas de segurança eficazes.

Por tudo isso, a defesa de Manning começou por aí: se aqueles documentos eram sigilosos e importantíssimos... por que não estavam protegidos adequadamente? Só depois de fixar esse primeiro argumento é que a defesa de Bradley Manning entrou no campo das dificuldades psicológicas do próprio Bradley.

Bradley é gay, o que não seria problema em si. Mas, pelo que se sabe, foi severamente abusado pelos colegas, desde o primeiro dia de serviço militar, por ser gay, por ter baixa estatura, todos conhecemos esse tipo de violência: Bradley Manning não tinha os atributos que os preconceitos associam ao “soldado modelo”. Sabe-se que o comando no qual Manning estava alistado recebeu várias reclamações, dos chefes imediatos de Manning, que protestaram contra Manning ser mandado para o Iraque. Fato é que Manning foi mandado para o Iraque e, lá, foi posto na sala de computadores onde trabalhou. Sabe-se também que Manning escreveu e-mails sobre o assunto, e que pesquisou vários sites em que se discutem questões de gênero; que enfrentava problemas de identidade sexual; que considerou a possibilidade de inscrever-se para uma cirurgia de mudança de sexo. Algumas vezes, ao que se sabe, foi encontrado no chão, em posição fetal. E há outras informações desse tipo, no processo.

O que interessa observar é que a defesa de Manning não construiu uma defesa política; não disse, até agora, que o soldado tem o direito, se não a obrigação (que, de fato, o soldado tem) de denunciar publicamente crimes de guerra dos quais tenha conhecimento. Se o soldado leva os crimes ao conhecimento dos superiores imediatos, e não vê tomarem-se providências, é preciso, então, denunciar os mesmos crimes, por outras vias. Mas os advogados de Manning não adotaram essa via política de defesa.
Minha opinião é que a defesa está convencida de que o caminho que escolheu é o melhor para Bradley Manning. Eles estão preparando o campo para, no caso de Manning ser condenado, haver fatores que possibilitem requerer reduções da pena. Pessoalmente, essa é a minha opinião até agora.

JAY: É possível que a defesa tenha razão. Afinal, é difícil imaginar que uma corte militar de justiça aceite que soldados revelem segredos, em todos os casos em que os soldados suponham que tenha havido crime de guerra.

RATNER: Por um lado, é claro, foi uma decisão dos advogados que estão defendendo Bradley Manning. Claro que, sim, como você disse, se tivessem optado por defesa mais fortemente política, o mais provável é que fossem detonados naquela corte militar. Mas, se adotassem uma via mais política, conseguiriam mobilizaria mais facilmente a opinião pública mundial. Talvez até, num determinado momento, sob forte pressão popular, o governo fosse forçado a conceder alguma espécie de indulto, ou perdão; talvez o governo ficasse em posição de não poder continuar a julgar Manning como criminoso, se as pessoas o vissem como herói. Concordo que, aqui, já entramos no terreno da pura especulação. Eu talvez, como advogado, preferisse a linha mais política. Mas o advogado de Manning é experiente e está conduzindo as coisas como lhe parece melhor para Manning.
Mas eu sou advogado de WikiLeaks e Julian Assange, e todo esse julgamento me interessa diretamente, porque interessa aos meus clientes, por algumas razões muito importantes. Primeiro, como já disse e como o advogado de Manning também disse, o governo está tentando forçar Bradley Manning a testemunhar contra Julian Assange. Manning foi torturado para que dissesse qualquer coisa que incriminasse Assange. Está sendo julgado com a fúria condenatória que se vê naqueles juízes, também, para forçá-lo a dizer qualquer coisa que incrimine Assange. Vai ser julgado em corte militar marcial, exclusivamente como mais um meio para tentar forçá-lo a dizer qualquer coisa que incrimine Assange. Por tudo isso, o julgamento de Manning é muito importante para nós.

E o julgamento de Manning também é importante para nós, porque os EUA estão muito fortemente empenhados em indiciar Julian Assange. Há um Grande Júri, uma corte federal instalada, pronta e à espera, em Alexandria, Virginia. Está constituída e suspensa há um ano. Não tenho tido notícias recentes, mas está aberta e em andamento lá uma investigação sobre WikiLeaks. Além disso, todos entendemos que o objetivo dos EUA é conseguir extraditar Julian Assange, seja da Grã-Bretanha, se Assange permanecer lá; seja da Suécia, se Assange tiver de voltar à Suécia na sequência de um processo ainda não encerrado, em que Assange foi acusado de abuso sexual e estupro. O objetivo dos EUA é conseguir extraditar Assange, seja da GB ou da Suécia, para julgá-lo nos EUA.

JAY: Há alguma razão pela qual seja mais provável extraditá-lo da Suécia para os EUA, do que da GB para os EUA?

RATNER: Deixe-me só concluir meu argumento, antes de falar sobre isso, que é muito, muito importante.

O segundo aspecto do julgamento de Bradley Manning interessa e tem muito a ver com Julian Assange é que, na tentativa para extraditar Julian Assange, um aspecto que a Corte Europeia considerará é como Assange será tratado nos EUA. Será tratado como combatente inimigo? É possível. É pouco provável, mas é possível. Será posto em cela solitária e torturado, como Bradley Manning, deixado nu, sem poder ver ninguém? Isso com certeza é muito, muito provável, como todos sabemos. E será acusado de crimes para os quais a Lei Antiespionagem [orig. Espionage Act] prevê pena de morte? Tudo isso será discutido na Corte Europeia que decidirá sobre a extradição de Assange. Por isso, quando se analisa o modo como Bradley Manning está sendo tratado nos EUA, uma das defesas possíveis para Julian Assange – e, quanto a isso, não faz diferença de onde ele seja extraditado – será mostrar como os prisioneiros são tratados nos EUA.

Agora, sobre o que você perguntou, se será mais fácil extraditá-lo da Suécia, que da Grã-Bretanha, acho que – é minha opinião, pessoal – sim, será mais fácil extraditá-lo da Suécia. Acho que uma das razões de eu pensar assim é ver que, sim, os EUA preferem tentar extraditá-lo da Suécia. O que sei é que na Grã-Bretanha (e conheço bem os advogados ingleses de Assange) a extradição não é fácil. Não é fácil arrancar prisioneiros de Londres. Há advogados britânicos especialistas nesse tipo de defesa. Há o caso de um hacker que, muito jovem, invadiu os computadores do Pentágono. Os EUA tentam extraditá-lo há oito anos E não estou dizendo que demore tanto. Não sei. Mas Assange tem muitos apoiadores na Grã-Bretanha. Entendo que, para os EUA, será extremamente difícil, se chegarmos a isso, extraditar Assange da Grã-Bretanha. A Suécia é país menor. Apesar da boa imagem da Suécia nos EUA, o governo é muito mais cooperativo, com os norte-americanos, do que muita gente pensa. Muitos pensam como eu: que será muito mais fácil para os EUA tirarem Assange da Suécia, que da Grã-Bretanha.

E assim chegamos ao caso de Julian Assange. Interessante, que esperávamos que aparecesse, muito rapidamente, dado que estamos no contexto da União Europeia, um pedido de extradição que incluísse os dois países, Suécia e Grã-Bretanha. O sistema europeu é como ir de Maryland a New York, você sabe, é interestatal; o sistema judiciário europeu é praticamente interestatal. E supúnhamos que não seria difícil que os EUA obtivessem a extradição. Mas os advogados ingleses lutaram muito, e o caso acaba de chegar à Corte Suprema na Grã-Bretanha, à qual só chegam casos (como à Suprema Corte dos EUA) que a Suprema Corte queira julgar; a Suprema Corte não é obrigada a julgar. A defesa foi apresentada a sete juízes (acho que eram sete, talvez tenham sido cinco, não estou certo). E foi defesa muito forte, um argumento muito vigoroso. Ali, os advogados ingleses que defendem Assange decidiram começar por discutir as imperfeições do sistema sueco, uma discussão extremamente técnica. Um Procurador sueco expediu o mandado de prisão, de extradição, contra Assange, pedindo que a Grã-Bretanha o extraditasse. Nos termos da lei sueca, só juiz poderia expedir mandado de prisão, de extradição. Obviamente, autoridades judiciais são neutras. O Procurador insiste em que seu pedido deve prevalecer. O que se discute, então, é o seguinte: na Suécia, um Procurador é autoridade judicial? Não tenho dúvidas de que a corte britânica levará extremamente a sério essa discussão. E tenho esperanças de que Julian não será mandado para a Suécia. Seja como for, você sabe, é mandado de prisão, de extradição, válido para toda a Europa. Assim sendo, ainda não sabemos.

JAY: OK. Por favor, rapidamente: qual é a base legal, ou precedente, se houver, para que Manning argumente, em sua defesa, que um soldado que descubra provas de que se cometeram crimes de guerra tenha algum tipo de obrigação de tornar público o que sabe?

RATNER: Veja... É precedente antigo. De fato, pode-se rastrear a origem desse precedente até os julgamentos de Nuremberg. Há o precedente legal, nos termos da Convenção de Genebra, e também nos termos de nossas leis, nos EUA, de que não se podem nem cometer nem tolerar crimes de guerra. Se você descobre indício ou informação sobre crimes de guerra, você tem o dever legal de dar divulgação ao que sabe. Quanto aos EUA, em sentido geral, o soldado tem o dever de informar o superior imediato na cadeia de comando. Claro que, nos EUA, informar os superiores na cadeia de comando é, na essência, inútil. Conheço vários casos de estupro entre militares, de mulheres que denunciaram ter sofrido estupro, aos superiores militares. E a situação das vítimas só piorou, foram perseguidas, há casos de mulheres vítimas de estupro que tiveram de deixar a carreira militar. Imagine no caso de crimes de guerra. É gritar contra uma muralha. Não há saída.

Por tudo isso, não tenho dúvidas de que houvesse qualquer alternativa para Bradley Manning, além de fazer o que fez. E, você sabe... Sabe-se pouco, quase só o que foi noticiado, mas, segundo o que todos lemos, é fácil concluir que o problema, de fato, foi aquele vídeo, que mostra a morte de dois jornalistas da Reuters assassinados no Iraque, de um helicóptero norte-americano, e as crianças feridas. E é um vídeo. Manning viu aquilo. E concluiu que tinha de divulgar.

Além disso, se se examina o que foi vazado, e por que aqueles documentos eram considerados secretos... A maioria daqueles documentos só são considerados secretos porque os EUA querem esconder seus próprios crimes, os procedimentos, as questões em que seus embaixadores envolvem-se, nos países onde atuam. E isso é especialmente verdade em relação ao vídeo de guerra “Colateral”.


====  FIM DA ENTREVISTA  ====


Notas dos tradutores
[1] No Brasil, para ampliar o exemplo, a jornalista Renata LoPrete, da Folha de S.Paulo escreveu que foi procurada por telefone, num sábado pelo (hoje ex) deputado Roberto Jefferson, que lhe disse que tinha “revelações estarrecedoras”. O deputado não tinha documento algum a exibir, nem a jornalista (?) investigou coisa alguma antes de noticiar, logo no domingo seguinte, um “escândalo” completamente inventado: hoje já se sabe que o tal “mensalão” que a jornalista e o (hoje ex) deputado Roberto Jefferson: (a) inventaram; (b) batizaram e (c) noticiaram como se fosse fato, e tudo isso sem exibir qualquer prova até hoje, jamais existiu. Nem por isso a jornalista LoPrete e o (hoje ex) deputado Roberto Jefferson foram acusados de conspirar contra governo democraticamente eleito, amparados, ambos, no direito à “liberdade de expressão” que também assegura direitos a qualquer jornalista caluniador de caluniar sem medo e sem vergonha, sequer quando o jornalista e seu patrão nada investigam, publicam qualquer coisa que lhes interesse publicar e, eventualmente, bem podem estar agindo como quadrilha. De diferente, claro, na comparação – a favor de Manning e Assange e contra a jornalista LoPrete e o ex-deputado Roberto Jefferson – que Manning e Assange deram a conhecer ao mundo crimes cometidos e as correspondentes provas suficientes.

[2] Padre Philip Berrigan, padre católico e ativista dos movimentos antiguerra nos anos 1970s.