Mostrando postagens com marcador Mentiras da Imprensa. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Mentiras da Imprensa. Mostrar todas as postagens

domingo, 16 de fevereiro de 2014

O que nos mentem sobre a economia

01/02/2014 - Mentiras propagadas pelo pensamento econômico dominante
- Vicenç Navarro (*) - Carta Maior

Grande parte dos argumentos mostrados pelos meios de informação e persuasão econômicos para justificar certas políticas são pura ideologia cheia de mentiras.

Permita-me, senhor leitor, que eu converse com você como se estivéssemos tomando um café, explicando-lhe algumas das maiores mentiras apresentadas diariamente no noticiário econômico.

Você deveria ter consciência de que grande parte dos argumentos mostrados pelos maiores meios de informação e persuasão econômicos do país para justificar as políticas públicas ora implementadas são posturas claramente ideológicas, que não se sustentam com base na evidência científica existente.

Vou citar algumas das mais importantes, mostrando que os dados contradizem aquilo que se diz.

E também tentarei explicar por que continuam repetindo essas mentiras, apesar de a evidência científica questioná-los, e com que finalidade elas são apresentadas diariamente a você e ao público.

Comecemos por uma das mentiras mais importantes, que é a afirmação de que os cortes de gastos nos serviços públicos do Estado de bem-estar social – tais como saúde, educação, serviços domésticos, habitação social e outros (que estão prejudicando enormemente o bem-estar social e a qualidade de vida das classes populares) – são necessários para que o déficit público não aumente.

E você se perguntará: E por que é tão ruim que o déficit público cresça?”.

E os reprodutores do senso comum lhe responderão que o motivo de se reduzir o déficit público é que o crescimento desse déficit determina o crescimento da dívida pública, que é o que o Estado tem que pagar (predominantemente aos bancos, que têm uma quantia em torno de mais da metade da dívida pública na Espanha) por ter pedido emprestado dinheiro dos bancos para cobrir o rombo criado pelo déficit público.

Reforça-se, assim, que a dívida pública (considerada um peso para as gerações futuras, que terão de pagá-la) não pode continuar crescendo, devendo-se, para isso, reduzi-la diminuindo o déficit público.

Isso quer dizer, para eles, cortar, cortar e cortar o Estado de bem-estar até o ponto de acabar com ele, que é o que está acontecendo na Espanha.

Os argumentos utilizados para justificar os cortes não são críveis.
  
O problema com esta postura é que os dados (que o senso comum oculta ou ignora) mostram exatamente o contrário.

Os cortes são enormes (nunca foram tão grades durante a época democrática) e, ainda assim, a dívida pública continua crescendo e crescendo.

Veja o que está acontecendo na Espanha, por exemplo, com a saúde pública, um dos serviços públicos mais importantes e mais demandados pela população.

O gasto público com saúde enquanto parte do PIB se reduziu em torno de 3,5% no período 2009-2011 (quando deveria ter crescido 7,7% durante esse mesmo período para chegar ao gasto médio dos países de desenvolvimento econômico semelhante ao nosso), e o déficit público diminuiu, passando de 11,1% do PIB em 2009 para 10,6% em 2012.

A dívida pública não baixou, mas continuou aumentando, passando de 36% do PIB em 2007 para 86% em 2012.

Na verdade, a causa do aumento da dívida pública se deve, em parte, à diminuição do gasto público.

Como isso pode acontecer?, você se perguntará. A resposta é fácil de enxergar.

A diminuição do gasto público implica a redução da demanda pública e, com isso, a diminuição do crescimento e da atividade econômica, fazendo com que o Estado receba menos recursos através de impostos e taxas. Ao receber menos impostos, o Estado de se endivida mais, e a dívida pública continua crescendo.

Desnecessário afirmar que o maior ou menor impacto que estimula o gasto público depende do tipo de gasto. Mas os cortes são nos serviços públicos do Estado de bem-estar, que são os que criam mais emprego e que estão entre os que mais estimulam a economia.

Permita-me repetir essa explicação devido à sua enorme importância.

Quando o Estado (tanto central como autônomo e local) aumenta o gasto público, aumenta a demanda de produtos e serviços, e com isso, o estímulo econômico.

Quando reduz, diminui a demanda e o crescimento econômico, fazendo com que o Estado receba menos fundos.

É aquilo que, na terminologia macroeconômica, se conhece como o efeito multiplicador do gasto público.

O investimento e o gasto público facilitam a atividade da economia, o que é negado pelos economistas neoliberais (que se promovem, em sua grande maioria, pelos maiores meios de informação e persuasão do país), apesar da enorme evidência atestada pela literatura científica (veja meu livro Neoliberalismo y Estado del Bienestar, editora Ariel Económica, 1997. Em português, Neoliberalismo e Estado de bem-estar).

Outra farsa: gastamos mais do que temos

O mesmo senso comum está dizendo também que a crise se deve ao fato de termos gastado demais, acima de nossas possibilidades. Daí a necessidade de apertar os cintos (que quer dizer cortar, cortar e cortar o gasto público).

Via de regra, essa postura é acompanhada da afirmação de que o Estado tem que se comportar como as famílias, ou seja, “em nenhum momento pode gastar mais do que recebe”.


O presidente Rajoy [E] e a Sra. Merkel [D] repetiram essa frase milhares de vezes. 

Essa frase tem um componente de hipocrisia e outro de mentira. Deixe-me explicar o porquê de cada um deles.

Eu não sei como você, leitor, comprou seu carro. Mas eu, como a grande maioria dos espanhóis, comprou o carro a prazo, quer dizer, usando crédito. Todas as famílias se endividaram, e assim funciona o orçamento familiar.

Pagamos nossas dívidas conforme entram os recursos que, para a maior parte dos espanhóis, vem do trabalho. E daí surge o problema atual.

Não é que as pessoas gastaram além de suas possibilidades, mas foram suas rendas e suas condições de trabalho que pioraram mais e mais, sem que a população fosse responsável por isso.

Na verdade, os responsáveis por isso acontecer são os mesmos que estão dizendo que é preciso cortar os serviços públicos do Estado de Bem-estar e também diminuir os salários.

E agora têm a ousadia (para colocar de maneira amável) de dizer que você e eu somos os culpados porque gastamos mais e mais. Eu não sei você, mas eu garanto que a maioria das famílias não comprou e não acumulou produtos como loucos. Pelo contrário. 

A mesma hipocrisia existe no argumento de que o Estado gastou muito.

Veja você, leitor, que o Estado espanhol gastou muito – não muito mais –, mas muito menos do que outros países de nível de desenvolvimento econômico semelhante.

Antes da crise, o gasto público representava somente 39% do PIB, enquanto a média da UE-15 era de 46% do PIB.

Na época, o Estado deveria ter despendido, no mínimo, 66 bilhões de euros a mais no gasto público social para ter gastado o correspondente ao seu nível de riqueza.

Não é certo que as famílias ou o Estado tenham gastado mais do que deveriam. Apesar disso, continuarão afirmando que a culpa é da maioria da população, que gastou muito e agora tem que apertar os cintos.

Você também provavelmente escutou que esses sacrifícios (os cortes) precisam ser feitos “para salvar o euro”.

Novamente, esta ladainha de que “estes cortes são necessários para salvar o euro” se reproduz.

Contudo, ao contrário daquilo que se anuncia constantemente, o euro nunca esteve em perigo. Não há sequer uma mínima possibilidade de alguns países periféricos (os PIGS, Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e Espanha) da zona do euro serem expulsos da moeda.

Na verdade, um dos problemas entre os muitos que estes países têm é que o euro está excessivamente forte e saudável. Sua cotação esteve sempre acima do dólar e seu poder dificulta a economia dos países periféricos da zona do euro.

E outro problema é que o capital financeiro alemão lhes emprestou, com grandes lucros, 700 bilhões de euros, e agora quer que os países periféricos os devolvam. Se algum deles deixar o euro, o sistema bancário alemão pode entrar em colapso.

O setor bancário (cuja influência é enorme) não quer nem ouvir falar da saída dos países devedores da zona do euro. Eu lhes garanto que é a última coisa que eles querem. 

Essa observação a favor da permanência no euro é certamente óbvia, e não um argumento.

Na verdade, acredito que os países PIGS deveriam ameaçar sair do euro.

Mas é absurdo o argumento que se utiliza de que a Espanha deve, ainda mais, reduzir o tempo de visita ao médico para salvar o euro (que é o código para dizer, “salvar os bancos alemães e lhes devolver o dinheiro que emprestaram obtendo lucros enormes”).

São essas as falácias constantemente expostas.

Eu lhes garanto que são apresentadas sem que sejam comprovadas por nenhuma evidencia. Isso é claro. 

A causa dos cortes 

E você se perguntará: - Por que então fazem esses cortes?

A resposta é fácil de encontrar, ainda que raramente seja vista nos grandes meios de comunicação.

É o que se costumava chamar de “luta de classes”, mas agora a mídia não utiliza essa expressão por considerá-la “antiquada”, “ideológica”, “demagógica” ou qualquer adjetivo que usam para mostrar a rejeição e desejo de marginalização daqueles que veem a realidade de acordo com um critério diferente, e inclusive oposto, ao daqueles que definem o senso comum do país.

Mas, por mais que queiram ocultar, essa luta existe.

É a luta de uma minoria (os proprietários e gestores do capital, quer dizer, da propriedade que gera rendas) contra a maioria da população (que obtém suas rendas a partir de seu trabalho).

É aquilo que meu amigo Noam Chomsky [foto] chama de guerra de classes – conforme expõe em sua introdução ao livro Hay alternativas. Propuestas para crear empleo y bienestar social en España, de Juan Torres, Alberto Garzón e eu (Em português: Há alternativas. Propostas para criar emprego e bem-estar social na Espanha).

Desnecessário dizer que essa luta de classes variou de acordou com o período em que se vive.

Esta que está acontecendo agora é diferente daquela da época de nossos pais e avós.

Na verdade, agora está inclusive mais ampla, pois não é somente das minorias que controlam e administram o capital contra a classe trabalhadora (que continua existindo), mas inclui também grandes setores das classes médias, formando as chamadas classes populares, conjuntamente com a classe trabalhadora.

Essa minoria é fortemente poderosa e controla a maioria dos meios de comunicação, e tem também grande influência sobre a classe política.

E esse grupo minoritário deseja que os salários diminuam, que a classe trabalhadora fique aterrorizada (daí a função do desemprego) e que perca os direitos trabalhistas e sociais.

E está reduzindo os serviços públicos como parte dessa estratégia para enfraquecer tais direitos.

A privatização dos serviços públicos, consequência dos cortes, também é um fator importante por permitir a entrada do grande capital (e muito particularmente do capital financeiro e bancários, e das seguradoras) nesses setores, aumentando seus lucros.

Você deve ter lido como, na Espanha, as companhias privadas de seguro de saúde estão se expandindo como nunca haviam conseguido antes. 

E muitas das empresas financeiras de alto risco (quer dizer, altamente especulativas) estão atualmente controlando grandes instituições de saúde do país graças às políticas privatizantes e aos cortes feitos pelos governos, que justificam essa medida com toda a farsa (e acredite que não há outra forma de dizer) de que precisam fazer isso para reduzir o déficit público e a dívida pública.

(*) Vicenç Navarro é catedrático de Políticas Públicas da Universidade Pompeu Fabra e Professor de Políticas Públicas na Johns Hopkins University. Site pessoal www.vnavarro.org

Fonte:
http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia/Mentiras-propagadas-pelo-pensamento-economico-dominante/7/30160

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, pois inexistem no texto original.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

A morte de Tayná, a tortura e a imprensa



Publicado em 11/07/2013 por Urariano Motta [*]

Recife (PE) - O inquérito do assassinato da menina Tayná, no Paraná, ilustra o tempo de trevas que sobrevive no Brasil.  Em breves linhas lembramos que toda a imprensa noticiou que uma linda jovem de 14 anos, Tayná Andrade da Silva, havia sido estuprada e morta por quatro empregados de um parque de diversões, no dia 25 de junho. E que os frios estupradores confessaram o seu hediondo crime, depois de um rápido e eficiente trabalho da polícia.

Os apresentadores na tevê bradavam, elevavam a tensão em nossas veias: “E aí, o que devia ser feito com esses animais?”, e mostravam as imagens das quatro feras.

Assim estávamos nós com a nossa consciência insatisfeita, porque clamávamos pelo sangue desses monstros, quando, passados alguns dias, a brava perita Jussara Joeckel descobriu que jamais houve qualquer violência sexual contra Tayná. Mais, que o exame de DNA no sêmen encontrado na calcinha da jovem não pertence aos tidos como culpados. E para o cúmulo do absurdo, a perita afirma que a menina foi morta depois dos “assassinos” presos. Escândalo.

A perita Jussara teve a sorte de ser apoiada por uma jornalista à altura, Joice Hasselmann. A repórter divulgou a análise e registrou no Blog da Joice  que em meio aos gritos e ao bate-boca de uma reunião na Secretaria de Segurança, um integrante da Polícia Civil chegou ao extremo da pergunta:

(...) será que na contraprova nós não conseguimos um laudo com resultado inconclusivo?

Sabe-se agora que o preso Adriano teve um cabo de vassoura enfiado no ânus, amarrado de ponta-cabeça e agredido com uma máquina de choque, para que confessasse o crime. A máquina de choque foi usada com uma haste de metal introduzida no seu ânus. Adriano, internado em hospital, tem sinais de perfuração no intestino. E todos os presos, depois de torturados, tiveram que assinara sem ler os “seus” depoimentos escritos.

Infelizmente, este é um caso exemplar da polícia brasileira, de Norte a Sul do país. Prende-se o culpado, para depois iniciar-se a investigação que prove a sua culpa. A investigação, todos sabemos, é sempre a mesma: porradas primeiro, uma pergunta depois. Se o culpado não responder logo o que se quer provar, tudo mal. Pau de arara e choques elétricos como método infalível de apuração. Se responder conforme a acusação, tudo mais ou menos. A tortura continua, mas dessa vez para selar o depoimento, ou como gritam os torturadores:

Ah, então você escondia o jogo, não é, safado? Você vai ver agora o que um criminoso merece.

Pelo medo e terror, selam assim a culpa do culpado.

O costume da tortura se transformou em uma coisa tão banal, que os advogados falam nas entrevistas em invalidação do inquérito, porque contaminado pela violência. Isso é óbvio. Daí os doutores partem para a soltura dos presos, com a posterior cobrança ao Estado pela prisão indevida. O que é justo. Mas da ação lhes escapa o maior horror: eles parecem não ver que os policiais deveriam responder, antes de tudo, pela tortura, porque esse é um crime condenável, imprescritível em nossa Constituição e em todos os tribunais civilizados. O fundamental lhes escapa: a mais severa punição prisional para o torturador.

Mais. Chamamos a atenção para o comportamento da imprensa que reproduz as versões da polícia sem um filtro, sem uma dúvida.

Os repórteres copiam o Boletim de Ocorrência, e de tal modo que repórter policial é o mesmo que policial repórter. Mas isso é igualzinho ao tempo da ditadura. É igual àqueles malditos anos em as mortes de “terroristas” eram reproduções exatas da Agência Segurança Press.

Se não, olhem o que se falou sobre o assassinato da menina de 14 anos nas tevês:

“Polícia termina investigação sobre morte da menina Tayná”, em 05/07/2013.
“Polícia conclui inquérito e afirma que os suspeitos mataram Tayná”, em  05/07/2013.
E esta informação de 9/7/2013: “Reviravolta: sêmen encontrado em Tayná não é dos suspeitos”.
E a última informação de 11/7/2013 sobre o “Caso Tayná: após denúncias de tortura, delegados são afastados”.
Os exemplos da imprensa brasileira, que reproduz de modo literal o que a polícia lhe sopra, ao fim de torturante inquérito, poderiam ser mostrados a um infernal infinito. E o mais grave, leitor. Agora mesmo, neste preciso instante, um preso comum está sendo torturado, sofrendo empalação ou é morto. Isso em plena democracia. Era bom que transformássemos o caso Tayná em um começo de real mudança, nas delegacias de polícia e na imprensa.
________________________-



Urariano Motta [*] é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas(Recife, Bagaço, 1997). No início de 2013 lançou o romance O filho renegado de Deus (Recife-Bertrand-Brasil, 2013).


Publicado originalmente por Direto da Redação

segunda-feira, 12 de março de 2012

Síria: até onde o mundo se deixará enganar?

8/3/2012, Alastair Crooke*, Asia Times Online - “Syria: Straining credulity?”
sexta-feira, 9 de março de 2012 - redecastorphoto
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


O secretário-geral da ONU manifestou-se dia 3 de março, para dizer que havia recebido “notícias sombrias” de que as forças do governo sírio estariam executando arbitrariamente, prendendo e torturando pessoas em Homs, depois de terem retomado o controle, no distrito de Baba Amr. Acreditará realmente no que disse?

Uma das bifurcações que definirão o futuro será o conflito entre os senhores da informação e as vítimas da informação”, escreveu o funcionário dos EUA encarregado pelo vice-chefe da inteligência de definir o futuro da guerra, no Quarterly do War College dos EUA, em 1997.
“... porque nós já somos os senhores da guerra de informação

Mas não temam”, escreveu adiante, no mesmo artigo, “porque nós já somos os senhores da guerra de informação (...)" Hollywood está “preparando o campo de batalha” (...) A informação destrói os empregos tradicionais e as culturas tradicionais; ela seduz, trai e, mesmo assim, permanece invulnerável. Como alguém algum dia conseguiria contra-atacar a máquina de guerra da informação, que outros giram, apontam e comandam?” [1]

“... escrevendo os roteiros, produzindo os vídeos e recolhendo os royalties”.

Nossa sofisticação no uso da máquina de guerra da informação nos capacitará a deslocar e superar todas as culturas hierárquicas (...). Sociedades que temem ou não conseguem administrar o fluxo de informação não podem, simplesmente, ser competitivas. Conseguirão dominar as tecnologias para assistir aos vídeos, mas nós estaremos escrevendo os roteiros, produzindo os vídeos e recolhendo os royalties. Nossa criatividade é devastadora.

A guerra de informação não estará contida na geopolítica, o autor sugere, mas será “disseminada” – como qualquer drama de Hollywood – mediante emoções nuas. “Ódio, ciúme e ganância – emoções, mais que estratégias – definirão os termos das lutas na guerra de informação.”

Não só o exército dos EUA, mas ao que parece toda a grande mídia ocidental insiste em que a luta na Síria deva ser narrada em imagens emotivas e declarações moralistas que sempre – como o artigo do War College diz corretamente – triunfam sobre a análise racional.

A Comissão do Conselho de Direitos Humanos da ONU condena o governo sírio por prática de crimes contra a humanidade, mas só considera o que diz a oposição, e sem nada investigar dos “crimes” da oposição: e imediatamente assesta acusações contra o governo sírio, baseando o processo em mera “suspeita razoável”. Será que acreditam no que escreveram, ou dedicam-se só a “redigir o roteiro”? [2]

Já esquecida do que os Marines dos EUA fizeram a Fallujah em 2004 (6.000 mortos e 60% da cidade destruída), quando insurgentes armados também buscavam estabelecer ali um “Emirado” salafista – toda a mídia ocidental em Homs dá voz a gritos indignados de “algo tem de ser feito” para salvar o povo de Homs de “um massacre”. A questão de a que finalidade exatamente aquele “algo” – seja intervenção militar ou entregar armamento pesado aos insurgentes – deveria servir, e a que consequências pode levar, desaparece completamente de vista. Os que cometam a temeridade de se interpor no caminho dessa “narrativa”, argumentando que qualquer intervenção externa será desastrosa, são imediata e completamente condenados como cúmplices dos crimes do presidente Assad contra a humanidade.

O mau jornalismo do “falamos diretamente da Síria
Essa escola de jornalismo – o Guardian e Channel Four são bons exemplos dessa reportagem em tons de “falamos diretamente do local” – que dá ênfase ao repórter como participante e, de fato, também como co-sofredor entre os atacados, dos indizíveis sofrimentos emocionais da guerra, usa imagens emocionais precisamente para sublinhar aquele mesmo “algo tem de ser feito imediatamente, na Síria”.

Ao reproduzir imagens de corpos mutilados e mulheres em prantos, todos dizem e determinam que o conflito tem de ser visto como evento moralmente simplíssimo – um caso de agressores e vítimas.

De Baba Amr. Revoltante. Não posso entender como o mundo suporta isso. Vi um bebê morrer hoje. Estilhaços: os médicos nada puderam fazer. O peitinho subia e descia, até que parou. Senti-me impotente.” [3]

Os que argumentam que qualquer interferência ocidental só exacerbará a crise, são confrontados com a irrespondível evidência de bebês mortos – literalmente. Como o artigo do War College diz tão claramente: como alguém conseguiria contra-argumentar nesse tipo de “guerra de informação” desfechada contra o governo sírio, que está no polo receptor dos que “escrevem os roteiros, produzem os vídeos e recolhem os royalties”?

Eu também vi cenas terríveis no Afeganistão nos anos 1980s: claro que criam um abismo emocional pelo qual o espectador desarmado desliza; mas será que esses jornalistas e repórteres convertidos em ‘cruzados’ sabem que os inocentes e as crianças nem sempre são as únicas vítimas dos conflitos? Será que acreditam mesmo que o próprio sofrimento pessoal dos jornalistas e repórteres é tão essencialmente “correto”, “perfeito”, “ético”, que justificaria condenar ao silêncio, não comentar, fingir que não há todas as complexidades e todas as outras possibilidades e interpretações? Mas... como, afinal, mais guerra poderia, algum dia, ser resposta à terrível morte de uma criança?

Esse ardor emocional reducionista do jornalismo não passa de forma clandestina de propaganda – que em nada difere de “guerreiros” da informação como AVAAZ, que ajudam a escrever e produzir muitos desses vídeos da infoguerra. [4]

Apesar de ninguém endossar abertamente esse “jornalismo de imersão”, não parece haver dúvidas de que essa abordagem triunfou em inúmeras redações de jornais e televisões. E a coisa parece ainda pior que isso: cada dia mais se veem diplomatas ocidentais agindo como se fossem “ativistas” e participantes de lutas internas nos estados aos quais são mandados e dos quais fala o tal “jornalismo de imersão”. Mas... que tipo de informação, afinal, estão construindo, para começar, para seus próprios governos?

Sabe-se que a oposição armada, que levou a Homs os jornalistas ocidentais – e depois insistiu em evacuá-los pela rota mais perigosa, via o Líbano, em vez de aceitar os serviços do Crescente Vermelho, decisão que custou muitas vidas – foi motivada por interesses políticos. Mas e os jornalistas?

Os jornalistas terão sido motivados pelos mesmos interesses, e divulgaram e repetiram os mesmos argumentos, sem saber, sem sequer suspeitar, que os tais corredores humanitários a serem abertos até Homs, impostos do exterior, não passariam jamais de pretextos para a intervenção? Em outras palavras, os jornalistas não sabem?!

Será possível que os jornalistas sequer suspeitem de que são atores, são partícipes, em outras palavras, são cúmplices, da construção de uma encenação, a favor de certo tipo de intervenção externa? Alguma solução à Kosovo fará melhorar alguma coisa na Síria?

O que mais chamou a atenção em toda essa operação é que, além de essa “guerra de informação” já ter tido o efeito provável de demonizar para sempre aos olhos do ocidente o presidente Assad, teve também o efeito de “desancorar” de lá a política externa dos EUA e da União Europeia. Tudo na Síria parece passar-se como se EUA e UE não tivessem qualquer interesse na Síria. Como se estivessem absolutamente distanciadas de qualquer real conflito geoestratégico naquele país.

O que, por sua vez, levou a uma situação na qual os líderes europeus e norte-americanos passaram a comportar-se como se estivessem sendo “convencidos” – por aquele “jornalismo” lá “imerso”, que só fazia “revelar” números crescentes de mortos, dia a dia – quase como se estivessem sendo praticamente “obrigados”, a “fazer alguma coisa”. Como se estivessem reagindo exclusivamente porque pressionados pelas “notícias”, ante a necessidade de reagir àquelas explosões emocionais que se repetiam incansavelmente pela imprensa contra o presidente Assad e suas “mãos sujas de sangue”.

Na Síria, o ocidente já virou refém de sua própria guerra de (des)informação
Por tudo isso, em certo sentido, o ocidente acabou por ficar refém de sua própria guerra de (des)informação: o ocidente fechou-se, ele mesmo, numa compreensão simplória, preso a um significado “único”: uma espécie de meme simplificado de vítima-e-agressor, para o qual a única saída possível seria derrubar o agressor.

A Europa, por essa via, acabou por afastar-se completamente de todas as demais opções –, precisamente porque o tema ‘humanitário’, que muitos supuseram que bastaria para facilmente derrubar Assad, impede hoje que se analisem quaisquer outras vias, dentre as quais, por exemplo (e jamais antes sequer considerada!), uma saída negociada para o impasse.

Mas quem, afinal, algum dia realmente acreditou que os objetivos de EUA e europeus na Síria fossem puramente humanitários?
Estaremos ante a estranha (e perigosa) situação – dado o rumo que vão tomando os eventos no Oriente Médio – de já ser quase impossível (ou, de talvez, já ser completamente impossível, porque seria insuperavelmente ridículo!), para o ocidente, admitir agora, de repente, abertamente... que a guerra de informação que o próprio criou jamais teve coisa alguma a ver com reformar ou democratizar a Síria?! Que tudo sempre visou exclusivamente à “mudança de regime” na Síria, e que esse objetivo já estava decidido desde antes de o primeiro protesto irromper em Dera'a?

Em recente entrevista a Jeffrey Goldberg da revista Atlantic, [5] que o presidente Obama concedeu antes do discurso que faria na reunião anual do AIPAC, Obama foi perguntado, dentre outras questões, sobre a Síria. Sua resposta foi muito clara:


GOLDBERG: O senhor pode falar sobre a Síria como questão estratégica? A questão humanitária, OK, também existe. Mas me parece que um modo para isolar e enfraquecer ainda mais o Irã é remover Assad, que é o único aliado árabe que restou ao Irã.

PRESIDENTE OBAMA: Trata-se disso, precisamente.

Será que algum dos militantes do intervencionismo ocidental e dos seus jornalistas propagandistas realmente acreditam que o massacre que o ocidente impôs à Síria seria efeito de luta por democracia e reformas? Se algum dia acreditaram nisso, podem esquecer. Obama já disse, claramente: na Síria, “trata-se precisamente” do Irã.

E, com Europa e EUA cada vez mais postos como coadjuvantes de um frenesi de que foram tomados os qataris e sauditas, para derrubar a qualquer preço outro líder árabe, será que esses jornalistas e repórteres acreditam que aquelas duas monarquias absolutas realmente partilham dos desejos do jornal Guardian ou da rede Channel Four [6] , que acalentam as mais humanitárias aspirações para o futuro da Síria?

É acreditável que jornalistas e repórteres realmente creiam que os insurgentes e mercenários que os estados do Golfo estão financiando e armando seriam, realmente, bons, pacíficos e bem-intencionados reformadores, arrastados para a violência pela intransigência de Assad? É possível que um ou outro realmente acredite nessa fantasia. Mas quantos, ao “noticiar” aquelas “notícias” como as “noticiam”, só fazem, de fato, ativamente, minar cada vez mais o mesmo campo de batalha que, há tempos, estão preparando?

*********************************************

Notas dos tradutores
[1] Constant Conflict, “Parameters”, Summer 1997, pp. 4-14. (http://www.carlisle.army.mil/usawc/parameters/Articles/97summer/peters.htm)

[2] The United Nations Accuses Síria of “Crimes against Humanity”. (http://www.informationclearinghouse.info/article30714.htm)

[3] 27/2/2012, “The danger of reporters becoming ‘crusaders’” [O drama dos repórteres convertidos em “cruzados”]. (http://www.spiked-online.com/index.php/site/printable/12159/)

[4] 3/3/2012, ver “How AVAAZ Is Sponsoring Fake War Propaganda From Síria” [Como AVAAZ está patrocinando guerra de falsa propaganda contra a Síria]. (http://www.moonofalabama.org/)

[5] 2 /3/2012, The Atlantic em: “Obama to Iran and Israel: 'As President of the United States, I Don't Bluff'” [Obama a Irã e Israel: ‘Como presidente dos EUA, não blefo’”], (http://www.theatlantic.com/international/archive/2012/03/obama-to-iran-and-israel-as-president-of-the-united-states-i-dont-bluff/253875/)

[6] 5/3/2012, em: “Syria’s inconvenient thruth” (http://blogs.channel4.com/snowblog/syrias-inconvenient-truth/17322)


* Alastair Crooke é fundador e diretor do Conflicts Forum. Foi conselheiro do ex-ministro de Relações Exteriores da União Europeia, Javier Solana, de 1997-2003.