Mostrando postagens com marcador Funai. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Funai. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

A etnia mais ameaçada do mundo

07/02/2014 - Operação na Amazônia visa sobrevivência da etnia mais ameaçada do mundo
- Najla Passos - Carta Maior

Para indigenista, a ocupação irregular da terra awá-guajá provoca o mais próximo do que se pode chamar de genocídio, hoje, no Brasil.

Brasília - Está em curso na Amazônia maranhense uma das maiores operações já realizadas pelo Estado brasileiro para desintrusão de uma terra indígena.

Trata-se da desocupação de uma área de 116 mil hectares destinada à etnia awá-guajá desde 1992, onde atividades ilegais como a extração de madeira e até o plantio de drogas já consumiram mais de 40% da cobertura florestal e colocam em risco a existência da etnia que está entre os últimos remanescentes dos povos amazônicos sem contato com o que é chamado de “civilização”.

Em 2012, a ONG Survival Internacional a classificou como a mais ameaçada do planeta.

Nômades, coletores e caçadores, os awá-guajá são classificados pela Fundação Nacional do Índio (Funai) como índios isolados, que demandam farto território para preservar seu modo de vida tradicional.

Entretanto, com as ocupações irregulares dos últimos anos, vêm sofrendo um extermínio progressivo, causado pelas doenças provenientes do contato.

Há suspeitas até mesmo de execuções sumárias comandadas pelo crime organizado que atua na região.

“A situação da etnia é de vulnerabilidade extrema. É o processo mais próximo do que se pode chamar de genocídio, hoje, no Brasil”, alerta o chefe da Coordenação Geral de Índios Isolados da Funai, Carlos Travassos [foto].

Embora as terras dos awá-guajás tenham sido destinadas aos índios há duas décadas, ela só foi demarcada oficial por ato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003.

A luta judicial pela posse da terra se arrastou por dez anos, e a decisão que determinou a desintrusão tramitou em julgado somente em 2013. 

Para cumpri-la, o governo federal destacou para a área um contingente não divulgado de servidores públicos de diferentes áreas, incluindo Incra, Ibama, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Abin e Forças Armadas, além da Funai e da Secretaria Geral da presidência da República, que coordenam a operação.

Mesmo assim, a tarefa não tem sido fácil.

Além das dificuldades geográficas inerentes à mata fechada, a força econômica que se impôs no local resiste.

E usa, para tal, centenas de brasileiros simples, humildes, que se estabeleceram na área em busca do sonho de ter seu próprio pedaço de terra [foto].

Segundo o coordenador-geral dos Movimentos do Campo da Secretaria Geral da Presidência da República, Nilton Tubino [foto], os invasores entraram ali ciente de que as terras pertenciam aos índios.

Portanto, não têm direito a nenhum tipo de indenização.

O Estado, porém, reconhece entre eles uma maioria de brasileiros simples - pequenos agricultores que vivem da plantação de mandioca, do extrativismo na floresta ou que trabalham nas grandes fazendas vizinhas.

Por isso, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) acompanha a operação com o intuito de identificar e cadastrar possíveis beneficiários da reforma agrária, que serão inseridos em lotes vagos de assentamentos já criados e em outros, em estudos, em terras a serem adquiridas na região ou em terras devolutas da União e do Maranhão.

Mas na área também há médios e grandes grileiros, inclusive na atividade pecuária, que terão que deixar o local.

Na semana passada, o governo concluiu a notificação para retirada voluntária das 427 famílias que vivem na área.

O prazo termina no final de fevereiro. Até o momento, só 235 famílias requisitaram cadastramento no Incra.

De acordo com Tubino, os motivos da baixa adesão vão desde a falta de documentos pessoais até a incredulidade de que o governo irá levar a cabo a missão de desobstruir à área.

O problema da falta de documentação, mais fácil de resolver, levou outras equipes de servidores públicos à região. Até o início desta semana, foram expedidas 105 carteiras de trabalho e 75 CPFs.

E 28 famílias foram inscritas no Bolsa Família, o principal programa social do governo. A campanha termina nesta sexta (7/2).

Já o problema da desinformação é mais grave.

Os madeireiros que lucram com a devastação da área não querem abrir mãos de suas atividades criminosas e, por isso, incitam os pequenos a permaneceram na terra indígena, prometendo que a terra deles será regularizada.

Informação oficial e contrainformação do poder econômico local disputam corações e mentes de pouca instrução e pouca fé em um Estado que demorou décadas para se fazer presente.

Histórico awá-guajá 

De acordo com Carlos Travassos, há relatos da presença dos índios awá-guajá na região desde o século XVII.

O primeiro contato oficial, entretanto, ocorreu em 1979, quando a política indigenista da ditadura promovia a atração dos grupos classificados como arredios, com o objetivo de fixá-los em uma área específica e, assim, facilitar o atendimento médico e a segurança alimentar do grupo.

O pano de fundo, entretanto, era a necessidade de extinguir os conflitos na Amazônia para a construção dos grandes projetos do regime, como a Estrada de Ferro Carajás [foto].

Nos anos seguintes, mais seis contatos foram realizados. Deles, resultaram a criação de duas aldeias awá-guajás que possuem hoje, juntas, 400 índios.

“A desintrusão chega em um momento em que a aldeia Juriti, por exemplo, tem seu espaço de caça restrito há 6 km, enquanto antes era de vários dias de caminhada.Se o Estado não intervir, eles morrerão de fome”, explica Travassos.

Há também outros grupos que, para evitar o contato com as frentes de atração, embrenharam-se cada vez mais na mata.

O número de indivíduos nessas condições é impreciso. Monitoramento que vem sendo realizado pela Funai, desde 1997, aponta que pelo menos dois grupos familiares ainda vagam pela região.

Entretanto, suas condições de sobrevivência estão cada vez mais difíceis.

O coordenador da Funai lembra também que, desde o fim da ditadura, a política indigenista brasileira mudou.

Se antes a meta era o aldeamento forçado, o objetivo hoje é respeitar o modo de vida tradicional das etnias, demarcando território suficiente para que possam viver isolados, se assim o quiserem. “O contato traz, historicamente, uma média de perda de 50% da população”, justifica o indigenista.

Planos futuros

De acordo com o coordenador-geral dos Movimentos do Campo da Secretaria Geral da Presidência da República, a previsão inicial é que a operação de retirada dos não-índios esteja concluída até o final de março, inclusive com a destruição de todas as construções erguidas na área.

A etapa seguinte constará do fechamento de todas as estradas abertas por madeireiros e plantadores de drogas, o que dificultará o acesso ao local.

O chefe da Coordenação Geral de Índios Isolados da Funai acrescenta que há planos também para a construção de uma estrada perimetral, no contorno da terra indígena, que permita ao poder público efetuar um monitoramento mais intenso da área.

Além disso, está em andamento a construção de uma base de operações do poder público na área.

Há ainda, projetos de reflorestamento da área descoberta da floresta que envolve, inclusive, índios que vivem em aldeias vizinhas.

Uma outra ação prevê uma campanha de educação etnoambiental a ser efetivada nos quatro municípios em que a terra indígena está cravada, além de outros cinco do entorno.

São municípios pobres, que vivem basicamente da madeira.

Se não houver uma ação pontual do poder público federal em parceria com estado e municípios, as invasões vão continuar e as doenças e outros problemas sociais, como alcoolismo e drogas, acabarão atingindo os awá-guajás”, afirma Travassos.

Fonte:
http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Operacao-na-Amazonia-visa-sobrevivencia-da-etnia-mais-ameacada-do-mundo/4/30208

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, pois inexistem no texto original.

Leituras afins:
- Indígenas brasileiros em águas represadas Mário Osava
- Tempos sombrios - Oiara Bonilla

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

As causas da grande mobilização indígena

Quais os projetos de mineradoras, madeireiras e ruralistas para avançar sobre territórios e direitos dos índios. Como tramitam, em silêncio, no Congresso Nacional

Por Marcelo Degrazia*, no portal Outras Palavras


A Mobilização Nacional Indígena, deflagrada ao longo desta semana, é uma luta pela defesa dos direitos indígenas adquiridos e para barrar uma avalanche devastadora, liderada pela Frente Parlamentar do Agronegócio. A luta é pela terra, sua posse e uso. A convocação foi da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e envolve organizações indígenas e indigenistas de diversas partes do país, agora articuladas e em luta.

A linha do tempo vai até as caravelas de Cabral, mas vamos tomá-la a partir deste ano, para compreender melhor o contexto atual. Em 16 de abril, cerca de 300 índios ocuparam o plenário da Câmara, em protesto contra a instalação de Comissão Especial para analisar a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, que torna praticamente impossível a demarcação das terras indígenas, ao tirar esta prerrogativa da Fundação Nacional do Índio (Funai) e transferi-la ao Congresso Nacional.

Na ocasião o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), prometeu não instalar a comissão antes do final de agosto. A Casa criou então um grupo de trabalho para discutir a condição dos índios no Brasil, cujo relatório seria um subsídio importante para a decisão de constituir ou não a comissão. Integraram o grupo lideranças indígenas, deputados ruralistas e parlamentares que defendem os direitos dos índios. Segundo Lincoln Portela (PR-MG), mediador do grupo, “basicamente aprovamos a rejeição da PEC 215.” A rejeição, concluindo pela inconstitucionalidade do projeto, foi por unanimidade dos presentes, já que nenhum parlamentar da frente do agronegócio compareceu às reuniões.

Na noite de 10 de setembro, contrariando o parecer do grupo de trabalho criado por ele mesmo, Henrique Eduardo Alves instituiu a Comissão Especial para analisar a PEC 215. Alves estaria atendendo compromisso assumido com a bancada ruralista durante sua campanha para a presidência da Câmara. Muitos dos 27 deputados indicados então para a Comissão Especial integram a frente do agronegócio e são autores de projetos que suprimem direitos dos índios, como veremos.

Nessa semana da Mobilização, Alves pretendia instalar a Comissão Especial, com a indicação do relator e do presidente – mas teve de recuar diante das manifestações.

A PEC 215, de 2000, é de autoria do ex-deputado Almir Sá (PRB-RR), atualmente presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de Roraima. Ela estabelece a competência exclusiva do Congresso Nacional para aprovar a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas e ratificar as demarcações já homologadas – hoje atribuições exclusivas do Executivo, que as executa por meio da Fundação Nacional do Índio (Funai). Na avaliação de organizações indígenas e indigenistas, na prática significará o fim de novas demarcações. O risco não seria apenas para o futuro, mas também para hoje, pois das 1.046 terras já demarcadas apenas 363 estão regularizadas. As demais, ainda em processo por vários fatores, ficariam com sua homologação na dependência do Congresso. “Como contamos nos dedos quantos congressistas defendem a causa indígena, com certeza nenhuma terra será demarcada”, considera Ceiça Pitaguary, líder do movimento indígena do Ceará.

“A PEC é flagrantemente inconstitucional”, afirmou Dalmo Dallari, professor de direito da Universidade de São Paulo, ao Instituto Socioambiental (ISA): ela não respeita a separação dos poderes. As demarcações e homologações são atribuições do Executivo, procedimentos de natureza administrativa; ao Legislativo compete legislar e fiscalizar. Para alguns antropólogos, o direito à ocupação dessas terras é originário, e está assegurado na Constituição – as demarcações são apenas reconhecimento desse direito pré-existente.

A opinião de Carlos Frederico Maré, professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná vai na mesma direção. Ex-presidente da Funai, ele sustenta que a demarcação é um procedimento eminentemente técnico. Em entrevista ao ISA, disse que “a Constituição não deu direito à demarcação. Deu direito à terra. A demarcação é só o jeito de dizer qual é a terra. Quando se coloca todo o direito sobre a demarcação retira-se o direito à terra, porque então ele só existirá se houver demarcação. É isso que está escrito na PEC: que não há mais direitos originários sobre a terra. Muda-se a Constituição, eliminando-se um direito nela inscrito.”

O Projeto de Lei (PL) 1.610, de 1996, de autoria do senador Romero Jucá (PMDB-RR), dispõe sobre a exploração e o aproveitamento de recursos minerais em terras indígenas. Foi apresentado a pretexto de defender o “interesse nacional” (a ser explorado pela iniciativa privada, conforme o Código de Mineração). Se aprovado, irá se converter em lei complementar ao artigo 231 (Capítulo VIII) da Constituição. O senador pediu regime de urgência. Quer votar, portanto, sem muita discussão, e a matéria só não foi submetida à apreciação da Casa devido à mobilização em torno do tema. Na prática, talvez seja tão ou ainda mais danosa que a PEC 215. E não seria de duvidar que esta estaria sendo o boi de piranha, já que o governo mostrou-se receptivo ao PL 1.610.

Já o PL 227, de 2012, retrata cruamente um dos aspectos centrais do chamado “sequestro da democracia” pelas instituições que deveriam expressá-la. Foi proposto pelo deputado Homero Pereira (PSD-MT), ex-presidente da Frente Parlamentar do Agronegócio, a princípio com redação que visava dificultar as futuras demarcações de terras indígenas. Fazia-o diluindo atribuições da Funai e incluindo, entre as comissões encarregadas de definir novos territórios, os proprietários de terra. Já em sua origem era, portanto, anti-indígena.

Mas tornou-se muito pior, ao tramitar pela comissão de Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural da Câmara. Sem que tenha havido debate algum com a sociedade, os deputados que integram a comissão transformaram inteiramente sua redação. Converteram-no num projeto de lei que, se aprovado, revogará na prática, pela porta dos fundos, o Artigo 231 da Constituição.

Tal dispositivo trata dos direitos indígenas. Reconhece “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Estabelece uma única exceção: em situações extremas, em que houvesse “relevante interesse público da União”a exclusividade dos indígenas seria flexibilizada e seus territórios poderiam conviver com outros tipos de uso. Esta possibilidade, rara, precisaria ser definida em lei complementar.

Na redação inteiramente nova que assumiu, o PL 227/2012 é transformado nesta lei complementar. E estabelece, já em seu artigo 1º, um vastíssimo leque de atividades que poderão ser praticadas nas terras indígenas. Estão incluídas mineração, construção de hidrelétricas, rodovias, ferrovias, portos, aeroportos, oleodutos, gasodutos, campos de treinamento militar e muitos outros.

Um inciso (o VIII), de redação obscura, procura ampliar ainda mais as possibilidades de violação dos territórios índios. Estabelece que é também “de relevante interesse público da União” a “legítima ocupação, domínio e posse de terras privadas em 5 de outubro de 1988”. Embora pouco claro, o texto dá margem a uma interpretação radical. A data mencionada é a da entrada em vigor da Constituição – quando foram reconhecidos os atuais direitos indígenas. Estariam legitimados, portanto, os “domínios e posses de terras privadas” existentes antes da Carta atual. Em outras palavras, a legislação recuaria no tempo, para anular na prática as demarcações que reconheceram território indígena e afastaram deles os ocupantes ilegítimos.

A PEC 237, de 2013, é de iniciativa do deputado Nelson Padovani (PSC-PR), titular do PSC na Comissão Especial da PEC 215, integrante da comissão do PL 1.610 e um dos signatários do pedido de criação da CPI da Funai, uma das estratégias da Frente para enfraquecer o órgão federal, já penalizado por redução de verbas. Essa PEC, se aprovada, tornará possível a posse indireta de terras indígenas a produtores rurais na forma de concessão. Será a porta de entrada do agronegócio aos territórios demarcados, e essa possibilidade tem tirado o sono de indígenas e indigenistas.

A portaria 303, de iniciativa da Advocacia Geral da União (AGU) em 16/07/2012, é outro dispositivo que tolhe direitos indígenas, com tom autoritário, em especial no inciso V do art. 1º, em que o usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa nacional (!), à instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, à expansão estratégica da malha viária, à exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e ao resguardo das riquezas de cunho estratégico, a critério dos órgãos competentes (Ministério da Defesa e Conselho de Defesa Nacional), projetos esses que serão implementados independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à Funai (grifo nosso).

É a pavimentação para o avanço econômico do capitalismo sem fronteiras, além de contrariar a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), de 1989, assinada pelo Brasil, a qual assegura o direito de os povos indígenas serem consultados, de forma livre e informada, antes de serem tomadas decisões que possam afetar seus bens ou direitos.

Todas essas iniciativas legais têm por objetivo possibilitar o avanço do agronegócio e da exploração de lavras minerais sobre as terras indígenas. Assim se permitiria inclusive a intrusão em territórios de nações não contatadas. Basta um simples olhar na autoria dos projetos, na trajetória negocial de seus autores e apoiadores, em suas relações comerciais com o agronegócio nacional e estrangeiro e na sua atuação articulada através de uma Frente Parlamentar para se ter certeza de que o interesse econômico é privado, setorista e excludente, em nada aparentado ao interesse nacional, do bem comum ou da União. Se há diversificação de interesses nos projetos, é na razão direta da fome, mas de lucros, do agronegócio, da bancada ruralista, das mineradoras, das madeireiras e empreiteiras.
*escritor, Marcelo Degrazia é autor de A Noite dos Jaquetas-Pretas e do blog Concerto de Letras

Leia também: Teia de interesses liga políticos a mineradoras em debate sobre novo Código 

terça-feira, 18 de junho de 2013

O renascimento indigena sob fogo cruzado



por Mario Osava, da IPS

Rio de Janeiro, Brasil, 17/6/2013 – Os tratores e as máquinas com as quais fazendeiros e outros grandes agricultores bloquearam estradas no dia 14, em mais de dez pontos de norte a sul do Brasil, destacaram o poder econômico do setor que se levantou contra a demarcação de terras indígenas. A presença de senadores e deputados nos protestos indica o crescente poder político dos ruralistas, que frequentemente impõem derrotas parlamentares ao governo que, nominalmente, desfruta de ampla maioria no Congresso.

A “paralisação nacional” de atividades, convocada pela Frente Parlamentar Agropecuária, mobilizou uns poucos milhares de pessoas em alguns lugares e centenas em outros, mas é apenas parte de uma ofensiva dos fazendeiros contra a criação de novos territórios indígenas ou a ampliação dos existentes. Modificar a Constituição de 1988, que assegura aos povos indígenas o “usufruto exclusivo” de terras que ocupavam tradicionalmente, em uma extensão suficiente para sua “reprodução física e cultural”, é o maior objetivo dos ruralistas, que em 2012 já conseguiram revisar o Código Florestal em benefício próprio e em detrimento do meio ambiente.

Outras medidas reclamadas, como participação dos ministérios da Agricultura e do Desenvolvimento Agrário e de centros de pesquisa agrícola no processo de demarcação, objetivam conter o reconhecimento de novas reservas indígenas. Compõem “um retrocesso completo”, segundo Marcos Terena, funcionário da Fundação Nacional do Índio (Funai), o órgão governamental responsável pela política para o setor, e veterano líder de lutas pela afirmação e autonomia dos povos originários.

Para os ruralistas se trata de “uma disputa patrimonial”, desejam expandir o grande negócio agropecuário como sempre, tomando terras públicas, em áreas não ocupadas ou atribuídas à conservação e a povos tradicionais, afirmou Marcio Santilli, especialista do não governamental Instituto Socioambiental e ex-presidente da Funai. Por isso buscam definir como simples conflito agrário o caso de terras identificadas como indígenas que incluem áreas privadas, que são legalmente inadmissíveis e condenadas à evacuação.

Em numerosas ocasiões são posses ilegais, mas no Mato Grosso do Sul muitos fazendeiros têm títulos de propriedade válidos, reconhecidos por governos anteriores. Ali, grande quantidade dos conflitos se prolonga há décadas e se tornaram sangrentos. Esse Estado pecuário e grande produtor de soja concentrou 57% dos 560 assassinatos de indígenas ocorridos entre 2003 e 2012 no Brasil, segundo dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ligado à Igreja Católica. Nem todos os homicídios se devem a disputas pela terra, mas a matança reflete a absoluta assimetria no confronto entre ruralistas e indígenas.

As mortes violentas não impediram uma explosão demográfica inimaginável há três ou quatro décadas, quando a população indígena parecia ameaçada de extinção. Nos anos 1980, estimava-se que no Brasil só restassem pouco mais de 200 mil integrantes dos povos originários. Contudo, no censo de 2010, 896.917 pessoas se declararam indígenas, o triplo de 1991, quando essa categoria passou a ser incluída entre as opções étnicas para autoidentificação das pessoas entrevistadas pelos recenseadores.

Não foi apenas a natalidade que triplicou a população. O reconhecimento na Constituição de 1988 dos direitos das minorias étnicas estimulou um renascimento indígena, que fez recuperar a identidade, mesmo mos que vivem fora de suas aldeias originais. Dos autoidentificados como indígenas em 2010, 36% vivem em cidades. Há “aldeias urbanas” em várias delas, como Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul.

A ressurreição alimenta avanços na educação indígena, às vezes com o resgate da língua originária, nas raízes culturais e na adoção de novas tecnologias. Em cerca de dez anos, “um fator novo” determinará o desenvolvimento dos povos indígenas e suas relações com a sociedade envolvente, pontuou Terena. “São os doutores indígenas”, que estão se formando nas universidades, “sem perder sua cultura própria”, especialmente no sul do Brasil, destacou.

Este ciclo representou uma virada na história brasileira de etnocídio desde a chegada dos colonizadores em 1500, quando, se estima, cinco milhões de indígenas habitavam o atual território nacional. Agora, no entanto, enfrentam novas ameaças. Além dos ruralistas, que buscam fechar as instituições que alimentaram o renascimento indígena, grandes projetos de infraestrutura na Amazônia tendem a alterar as condições tradicionais em que vivem vários povos originários.

A construção de dezenas de hidrelétricas, planejadas para os rios da bacia amazônica nos próximos anos, está intensificando as lutas entre indígenas, construtoras e governo. Às repetidas invasões indígenas na hidrelétrica de Belo Monte, em construção no rio Xingu, um grande afluente do Amazonas, no Estado do Pará, corresponde um recrudescimento da repressão policial. Esse clima de exasperação culminou com a morte de Oziel Gabriel no dia 30 de maio, aparentemente causada por um disparo da polícia no município de Sidrolândia, no Mato Grosso do Sul.

A tragédia aconteceu durante uma operação policial, ordenada pela justiça, para retirar centenas de indígenas que haviam ocupado uma fazenda, identificada como parte do território tradicional dos terenas há 13 anos. Contraditórias decisões judiciais e dificuldades para indenizar o proprietário vão dilatando o processo. A correlação de forças e a prioridade que o governo dá ao desenvolvimento econômico são totalmente adversas para os indígenas.

Entretanto, eles contam com a Constituição, convênios internacionais e uma opinião pública internacional que defende a diversidade humana. Com a consciência e os valores hoje consolidados, “a sociedade brasileira não permitiria retrocessos nos direitos reconhecidos na Constituição”, declarou Paulo Maldos, secretário nacional de Articulação Social do governo federal, cuja função já o levou a perigosas negociações com grupos indígenas rebelados.

A repercussão negativa desestimula atos antiaborígines. Cada indígena assassinado, como Gabriel, se converte em um mártir que realça a resistência de seus povos. Por isso é possível que essa morte neutralize, ou pelo menos modere por algum tempo, a ofensiva ruralista contra territórios ancestrais. Segundo a Funai, há no país mais de 450 territórios indígenas em processo de demarcação, que somam mais de cem mil hectares, enquanto outra centena de territórios está em fase de identificação.

Fonte:Envolverde/IPS

 http://envolverde.com.br/ambiente/o-renascimento-indigena-brasileiro-sob-fogo-cruzado/

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Na terra da justiça


Por Janio de Freitas - No fAlha*


Uma sentença judicial não precisa se estender por folhas incontáveis para valer por uma aula. Em poucas palavras, a decisão da juíza Raquel Domingues do Amaral, da Justiça Federal, no caso dos índios terena, deu uma aula de direito brasileiro e ainda uma aula de história.

Em resposta à morte do índio Oziel Gabriel na quinta-feira, durante operação das polícias Federal e de Mato Grosso Sul que expulsou os terena invasores da fazenda Buriti, no dia seguinte deu-se nova invasão. Diante disso, a juíza determinou à Funai e à União a retirada dos índios em 48 horas e, se não cumprida tal ordem, multa diária de R$ 1 milhão para a União e, para o coordenador local da Funai e para o chefe da aldeia terena, multa de 1% do valor da causa. (Não ria desta obrigação imposta às finanças do índio).

A Funai não tem meios nem poder de retirar índios à força de lugar algum. A União tem um instrumento para a ação: a Polícia Federal. O prazo de 48 horas, no caso, só poderia significar ação imediata da Polícia Federal contra a anunciada disposição dos índios, exaltados com a morte de um deles, de resistir à força aos policiais.

A decisão da Justiça Federal determinou a ocorrência de um conflito. Ou seja, uma reprodução a mais dos atos que se revestiram dos formalismos judiciários para dar continuidade, mais atualizada, à relação histórica do poder branco com os donos originais da terra.

Já o confronto que resultou na morte do terena Oziel decorrera de sentença da Justiça Federal. Ao ver frustrada a audiência de acordo, sob sua coordenação, com a presença da Funai, do fazendeiro e ex-deputado Ricardo Bacha e de representante terena, o juiz Ronaldo José da Silva determinou a imediata retirada dos índios. As polícias agiram, para a retirada imediata, com a competência esperada e, também no seu caso, multissecular. Sentença cumprida.

Mas que terra é essa em que os terena não podem estar? A julgar pela mesma Justiça Federal que os dois juízes integram, é terra dos fazendeiros que a exploram, segundo sentença judicial; e é terra de ocupação permanente dos terena, segundo reconhecimento do Tribunal Regional Federal ao levantamento feito pela Funai e ao recurso judicial do Ministério da Justiça. E assim continua, como terra de uns e de outros, a depender de cada papel que saia do Poder Judiciário.

Mas, claro, no duplo reconhecimento de posse, só os fazendeiros ganham da Justiça Federal o direito de permanecer na terra e de explorá-la. Aos terena obriga-se a retirada imediata ou o confronto, de resultado conhecido por antecipação, com a Polícia Federal e com a polícia de Mato Grosso do Sul. É, sempre, o resultado histórico na disputa e posse da terra.

Janio de Freitas
No fAlha

Fonte:http://contextolivre.blogspot.com.br/2013/06/na-terra-da-justica.html

Nota do Educom: A setença dessa juíza demonstra também que, de modo geral, o judiciário brasileiro desconhece Educação Ambiental, defende  de fato o marketing ambiental, quando atua na defesa do meio ambiente. (Zilda FErreira)...

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Bancada ruralista pressiona para tirar poderes da Funai


 Agência Brasil



Brasília – Deputados da bancada ruralista prometem apertar o cerco contra a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a atribuição do órgão de auxiliar na demarcação de terras indígenas no Brasil. Entre as estratégias para pressionar o governo por mudanças, integrantes da Frente Parlamentar da Agricultura dizem já ter assinaturas suficientes - mais de 180 - para protocolar um pedido de criação de uma comissão parlamentar de inquérito para investigar a Funai, mas ainda não há definição sobre quando isso será feito.

Na semana passada o grupo contabilizou duas vitórias. Na primeira, conseguiu convocar a ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, para prestar esclarecimentos na Comissão de Agricultura da Casa sobre as questões indígenas. A data da ida da ministra ao Congresso deve ser definida ainda esta semana pelo presidente comissão, deputado Giacobo (PR-PR).

Os ruralistas conseguiram ainda, na última quarta-feira (10), o apoio que faltava para a criação de uma comissão especial para apreciar e dar parecer à Proposta de Emenda à Constituição (PEC 215/2000) que inclui, nas competências exclusivas do Congresso Nacional, a aprovação de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, a titulação de terras quilombolas, a criação de unidades de conservação ambiental e a ratificação das demarcações de terras indígenas já homologadas, estabelecendo que os critérios e procedimentos de demarcação serão regulamentados por lei. A comissão foi criada pelo presidente da Câmara dos Deputados, Henrique Alves (PMDB-RN), em retribuição ao apoio que recebeu dos ruralistas para comandar a Casa.

“Nós estamos criando uma série de injustiças para aqueles que são proprietários de terras, independentemente do tamanho. O que nos preocupa é a falta de critérios e de uma condição de defesa dentro dos processos de homologação conduzidos pelos antropólogos [da Funai]”, diz o deputado Jerônimo Goergen (PP-RS) que integra a Frente Parlamentar da Agricultura.

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) reagiu à criação da comissão. Em nota divulgada no site, o Cimi repudiou a decisão. “O ato do presidente da Câmara constitui-se em um atentado à memória dos deputados constituintes, ataca de forma vil e covarde os direitos que os povos indígenas conquistaram a custo de muito sangue e atende os interesses privados de uma minoria latifundiária historicamente privilegiada em nosso país”, diz o documento.

Procurada pela Agência Brasil, a Funai enviou nota classificando a PEC 215/00 como um retrocesso e uma ação contrária à efetivação dos direitos territoriais dos povos indígenas.

“A Funai acredita que tal medida, ao invés de contribuir para a redução dos conflitos fundiários decorrentes dos processos de demarcação de terras indígenas, ocasionará maior tensionamento nas relações entre particulares e povos indígenas, diante das inseguranças jurídicas e indefinições territoriais que irá acarretar”, alerta o documento.

Entre as preocupações da Funai está o fato de a PEC prever a criação de mais uma instância no procedimento administrativo de regularização fundiária de terras indígenas. “Isso tornará mais complexo e moroso o processo de reconhecimento dos direitos territoriais dos povos indígenas - se não significar sua  paralisia -, com graves consequências para a efetivação dos demais diretos destes povos, como, por exemplo, garantia de políticas de saúde e educação diferenciadas, promoção da cidadania e da sustentabilidade econômica, proteção aos recursos naturais, entre outros.”

Esta semana a bancada ruralista na Câmara deve se reunir com o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Joaquim Barbosa. No encontro, os parlamentares vão pedir a conclusão do julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol – que ainda depende da publicação do acórdão do julgamento e dos embargos declaratórios a respeito das 19 condicionantes impostas pela Corte, em 2009, para que a demarcação da área fosse mantida em terras contínuas.

Depois que isso for feito, a polêmica Portaria 303 da Advocacia-Geral da União (AGU) pode entrar em vigor. A norma proíbe a ampliação de áreas indígenas já demarcadas e a venda ou arrendamento de qualquer parte desses territórios, se isso significar a restrição do pleno usufruto e da posse direta da área pelas comunidades indígenas. Ela também veda o garimpo, a mineração e o aproveitamento hídrico da terra pelos índios, além de impedir a cobrança, pela comunidade indígena, de qualquer taxa ou exigência para utilização de estradas, linhas de transmissão e outros equipamentos de serviço público que estejam dentro das áreas demarcadas.

As divergências da Frente Parlamentar da Agricultura em relação às atribuições da Funai também levaram o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, a se comprometer a criar um grupo de trabalho para receber as manifestações dos deputados. Em 30 dias, representantes da Secretaria de Assuntos Legislativos da pasta, da Funai e parlamentares devem começar a discutir propostas que envolvem a demarcação e desapropriação de terras no país.

A Frente Parlamentar Ambientalista, presidida pelo deputado Sarney Filho (PV-MA), marcou uma reunião para a próxima quarta-feira (17). Na avaliação dos ambientalistas, os apoiadores da PEC 215 são motivados por “interesses pessoais e individuais contrariados”. “A PEC é um retrocesso absoluto, ela acaba com qualquer possibilidade de política indigenista e de política ambiental. Tirar a prerrogativa do Poder Executivo de criar unidade de conservação e reservas indígenas e passar para o Congresso é a mesma coisa de dizer que não vai ter mais”, disse Sarney Filho.


http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-04-14/bancada-ruralista-pressiona-para-tirar-poderes-da-funai



quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Rio de ouro e soja

13/12/2012 - Por Carlos Juliano Barros
- extraído do site #Amazônia Pública
- Desenvolvimentistas









[Para quem tentar compreender algumas das razões mantidas mais ou menos ocultas para justificar a tentativa de criação do Estado do Tapajós, oeste do Pará, em fins de 2011, vai, logo nos primeiros passos, esbarrar nos interesses das oligarquias nacionais e regionais e entender porque à cobiça que a região desperta entre as grandes corporações internacionais, desde o universo da exploração mineral - recursos hídricos, inclusive - ao do agronegócio, não pode mais prescindir de adicionar a ela o extenso emaranhado de interesses outros que, na sua essência, visam unicamente privilegiar economicamente as grandes madeireiras, os laboratórios de olho na rica biodiversidade da região em parte ainda intacta, os consórcios e as mega-construtoras brasileiras de barragens, portos, terminais e estradas, as siderúrgicas, as empresas transportadoras, políticos e empresários que já se estabeleceram e outros que ainda virão para essa região, todos na expectativa, seja como protagonistas ou como agentes menores, de se beneficiar do advento desse novo Eldorado que se avizinha célere e que mudará de vez a feição da região mais rica, bonita e ainda mais bem preservada do Estado.





Às populações originárias de indígenas e posseiros, ou de pequenos agricultores e extrativistas, pescadores e garimpeiros, carvoeiros e comerciantes, se juntaram imigrantes do sul e nordeste, ONGs nacionais e internacionais, conservacionistas, ativistas, assentados, peões e ribeirinhos para também cumprirem seus papeis e assim se tornarem também protagonistas de um outro ato dessa semi-tragédia onde não faltam os contrabandistas locais de drogas, de animais selvagens ou de suas peles e de metais preciosos diversos e, de uma forma ou de outra, espectadores, vítimas, combatentes ou aliados de primeira hora da degradação ambiental e, até mesmo, dos agentes piratas das grandes embarcações petroleiras e graneleiras que na foz do Amazonas surrupiam nossa água doce para, após tratamento na Europa, ser vendida no Oriente Médio e Norte da África, a um preço superior a de um barril de petróleo.

Isso tudo faz parte do cenário que vislumbrávamos em "Um mundo de águas, minérios e nomes que parecem poemas - parte 4/6" e nesse capítulo que fala DO ENCONTRO DAS ÁGUAS AMAZÔNICAS COM O MUNDO GLOBALIZADO, já antevíamos que do umbigo do monumental aquífero de Alter-do-Chão, um lugarejo de cinema, 30 km ao sul de Santarém, se projetava um novo ciclo do chamado "progresso", fruto apenas do avanço predatório do capitalismo sobre a região. Aqui voltamos à carga.- (Equipe Educom)]

Muito além da discussão sobre as hidrelétricas, o Tapajós vive problemas relativos ao garimpo – clandestino ou oficial – e a expansão do agronegócio. 

Ivo Lubrinna (foto) não se conforma com o fato de seu candidato à reeleição para a prefeitura de Itaituba – “mesmo com a máquina na mão” – ter perdido o pleito realizado em outubro passado.

Dono de uma voz grave e de uma franqueza espantosa, ele sabe que os próximos anos serão bastante movimentados no município de 100 mil habitantes que cresceu às margens do rio Tapajós, no oeste do Pará.

Enquanto concede a entrevista, Lubrinna é vigiado silenciosamente pelo filho, que acaba de voltar à Amazônia depois de nove anos na capital da Inglaterra, onde comandava uma prestadora de serviços de limpeza. Como a crise europeia não dá sinais de trégua, ele acha que é possível ganhar até três vezes mais investindo em Itaituba.

Até o apagar das luzes de 2012, Lubrinna estará à frente da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Produção. Porém, mesmo antes de integrar a linha de frente do Executivo local, ele já era uma verdadeira lenda, um dos garimpeiros mais conhecidos no Tapajós por conta dos mais de 40 anos de ofício.

Não à toa, Lubrinna (foto) é o presidente – “licenciado”, como ele faz questão de ressalvar – da Associação dos Mineradores de Ouro do Tapajós (AMOT), entidade que representa menos de 10% dos 50 mil garimpeiros da região.

Enquanto se afasta da carreira de homem público, Lubrinna já se prepara para encarar a missão de homem de negócios, agora com a ajuda do filho.

Após concluir recentemente o licenciamento ambiental do único garimpo que afirma possuir, e que segundo ele encontrava-se parado por falta de regularização, vai retomar a procura do ouro.

Eu fui irresponsável até o dia em que assumi o cargo na prefeitura. Era um contrassenso: como é que o secretário de Meio Ambiente, com um garimpo irregular, iria discutir com alguém?”, questiona.

Agora, ele já não corre atrás apenas do valioso metal. Cogita também investir em terrenos para a instalação de empresas de logística e de maquinaria pesada que, num horizonte bastante próximo, devem chegar à região.


Lubrinna encarna de forma pitoresca o nebuloso futuro de Itaituba.
Encravado no coração da Amazônia, o município é o epicentro de uma avalanche de grandes empreendimentos que ameaçam seriamente uma região de altíssima biodiversidade habitada por diversas comunidades tradicionais e comunidades indígenas munduruku.

Quem toma um barco e navega pelos 850 quilômetros de águas esverdeadas do Tapajós, que rasga de cima a baixo o oeste do Pará, não raro se depara com botos e aves mergulhando, além de uma paisagem verde de tirar o fôlego, protegida por um mosaico composto por reservas florestais e terras indígenas.



Entretanto, um amplo leque de obras – que vão desde hidrelétricas, passando por rodovia, hidrovia, portos fluviais, até projetos de mineração – pode redesenhar em um curto espaço de tempo as feições desse que é, reconhecidamente, um dos mais belos rios da Amazônia.

Sem sombra de dúvida, o projeto com potencial de gerar os impactos sociais e ambientais mais preocupantes é o chamado Complexo Hidrelétrico do Tapajós, um conjunto com potencial para até sete usinas que podem gerar até 14 mil Megawatts (MW) – a mesma capacidade da faraônica usina binacional de Itaipu, erguida durante a ditadura militar na fronteira do Brasil com o Paraguai.

Os estudos de viabilidade conduzidos pela estatal Eletrobras para licenciamento de duas delas – Jatobá e São Luiz do Tapajós – já estão em andamento. Por enquanto, o custo para erguer as duas barragens é estimado em R$ 23 bilhões. E o governo federal não esconde a pressa: já no ano que vem espera licitar pelo menos a construção de São Luiz do Tapajós e prevê que as duas entrarão em operação até 2019.

A energia dessas novas hidrelétricas tem pelo menos um endereço certo: grandes projetos de exploração de minérios no Pará, como ouro e bauxita – a matéria-prima do alumínio.

A companhia norte-americana Alcoa, por exemplo, iniciou há apenas três anos a operação da terceira maior jazida de bauxita do mundo no município de Juruti, no extremo oeste do Pará, e já tem planos de construir uma fábrica de beneficiamento – por enquanto, a empresa utiliza energia de origem termelétrica. Já a brasileira Votorantim está levantando uma indústria do mesmo tipo no município de Rondon do Pará. A norueguesa Hydro também tira bauxita no leste do estado.

No caso do ouro, só uma mineradora de médio porte, a canadense Eldorado Gold, tem um projeto concreto de investimento no Tapajós. Mas a própria AngloGold Ashanti, companhia sul-africana considerada uma das maiores empresas de extração de ouro no mundo, também tem requerimentos de pesquisa no oeste do Pará, região hoje tomada pelo garimpo manual – em sua esmagadora maioria, clandestino.

Além de ser considerada a última grande fronteira energética e mineral da Amazônia, a região banhada pelo rio Tapajós tem ainda outro considerável atrativo econômico: é um corredor estratégico para o escoamento da produção de soja colhida no Mato Grosso, o principal produtor de grãos do país.


Até 2014, o governo federal pretende gastar R$ 2,85 bilhões para concluir o asfaltamento dos 1.739 quilômetros da BR 163, que liga Cuiabá (MT) a Santarém – o maior município do oeste do Pará, localizado na foz do Tapajós.
No rastro das hidrelétricas, também está prevista a construção de eclusas que possibilitarão a integração do rio Teles Pires, no Mato Grosso, com o rio Tapajós, no Pará.

Além dessa hidrovia, o transporte de commodities por via fluvial também será impulsionado pela instalação de ao menos três portos no município de Itaituba, além da expansão das docas de Santarém.

Ambientalistas e ativistas de movimentos sociais preocupam-se com os impactos socioambientais que a explosão do agronegócio pode trazer para o oeste do Pará.

GARIMPOS
Quando a produção do mítico garimpo de Serra Pelada, localizado no sudeste do Pará, entrou em declínio, no início dos anos 1980, os aventureiros dispostos a encarar a lama e a malária apostaram que o novo eldorado encontrava-se no Tapajós. E eles estavam certos.

Passadas três décadas, calcula-se que hoje existam nada menos que 2 mil pontos de garimpo no entorno do rio.

Para chegar até as chamadas "currutelas", povoados que funcionam como uma espécie de QG para os quase 50 mil homens decididos a desafiar a floresta, só fretando um pequeno avião ou encarando dias no lombo de uma lancha, a partir de Itaituba.

Cerca de 98% dos garimpos da região são irregulares”, assegura Oldair Lamarque, engenheiro que chefia o escritório do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) em Itaituba.

Não é muito difícil entender por que a esmagadora maioria está na clandestinidade. Para fazer o licenciamento ambiental de uma pequena lavra, do tamanho de até 50 campos de futebol, é preciso viajar até a capital Belém, pagar cerca de R$ 16 mil em taxas e ainda arcar com os custos de transporte dos técnicos da Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Pará (Sema).

Sem qualquer tipo de fiscalização, os garimpos são um dos principais vetores de degradação ambiental na bacia do Tapajós.

E os problemas não se resumem à contaminação da água por conta da utilização de substâncias tóxicas para depurar o ouro, como o mercúrio e – mais recentemente – o cianeto. Novas técnicas têm aumentado a produtividade e potencializado os impactos sobre a floresta.

A utilização de retroescavadeiras chamadas de PCs, usadas para revolver o solo à procura do ouro, é uma delas. O serviço que antes demorava quase um mês para ser feito hoje é realizado em apenas dez dias.

Além disso, aumentou significativamente o número de barcaças que garimpam diretamente o leito do rio Tapajós.

Nesse caso, servidores do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) entendem que a decisão do governo de reduzir a área de cinco reservas ambientais para a construção das hidrelétricas de Jatobá e São Luiz do Tapajós, em janeiro deste ano, contribuiu para agravar o problema. Sem essa medida, o licenciamento ambiental das usinas não poderia ser feito.

Como parte das áreas foi desprotegida, o número de barcaças no rio cresceu de forma preocupante: pulou de cinco para 35 no trecho de 400 quilômetros entre os municípios de Itaituba e Jacareacanga. “Para desarticular garimpos grandes, como os que existem em Itaituba, é preciso montar praticamente uma operação de guerra”, afirma Nilton Rascon, analista ambiental do ICMBio.

No começo de novembro, fiscais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai), escoltados por duas centenas de agentes da Polícia Federal (PF) e da Força Nacional de Segurança Pública transportados até por helicópteros, resolveram fazer uma batida digna de cinema para desarticular um garimpo que funcionava na Terra Indígena Kayabi, já na divisa entre Pará e Mato Grosso e habitada por indígenas Munduruku, Kayabi e Apiaká.

A operação, no entanto, extrapolou o objetivo inicial de desmantelar a extração de ouro, e seu saldo foi desastroso: casas na aldeia arrombadas, embarcações de pesca afundadas a tiro e, o mais grave, um indígena, Adenilson Kirixi, encontrado morto, boiando no rio.

É fato que o garimpo funcionava com consentimento dos indígenas – que alegam ter protocolado informações a respeito da atividade junto à Funai, afim de formalizar o acordo de parceria que mantinham com os garimpeiros.

Numa região completamente negligenciada pelo poder público, os indígenas afirmam que o pedágio pago pelos mineradores era a única fonte de renda de que dispunham para bancar a eletricidade na aldeia e arcar com os custos das crianças que estudam na sede do município de Jacareacanga. Além disso, vendiam parte de sua produção de alimentos aos garimpeiros.

Segundo lideranças ouvidas pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), desde 2005, os indígenas vêm tentando dialogar com representantes do poder público no sentido de criar projetos de piscicultura, produção de mel e artesanato de forma a reduzir a dependência do garimpo. Mas, por enquanto, nada saiu do papel.

Ainda na avaliação das lideranças ouvidas pelo Cimi, a ação da PF foi calculada para intimidar e fragilizar financeiramente os indígenas, de modo a
deixá-los mais “sensíveis” às obras das hidrelétricas na região.

Até o presente momento, a PF não se pronunciou sobre o caso, mas abriu um inquérito para investigar o episódio, o qual também é acompanhado pela Funai, o Ibama e a Secretaria-Geral da Presidência da República. O Ministério Público Federal (MPF) também abriu investigação.

Questionada pela Pública, a assessoria de imprensa da Funai respondeu por meio de nota que o órgão “tinha conhecimento de que existia atividade ilícita (garimpo) na Terra Indígena Kayabi. No entanto, não conhecia os detalhes de sua operacionalização e dimensão”.

A nota acrescenta que “Funai não tem o poder de autorizar, formalizar acordos ou dar anuência a qualquer atividade ilegal realizada em terra indígena. Além disso, o garimpo em terra indígena depende de regulamentação pelo Congresso Nacional”.

MINERADORAS
Se o Tapajós é uma das maiores províncias auríferas do mundo, por que ainda não há mineradoras na região? A resposta se divide, basicamente, em duas explicações.

A primeira é geológica. “Aqui não existem depósitos grandes, como ocorre em Goiás ou em Minas Gerais. Os depósitos são pequenos e espalhados. Isso favorece o garimpo manual, e não as grandes mineradoras”, explica Lamarque, do DNPM. A segunda explicação é de ordem estritamente econômica. “A falta de estradas e de fontes de energia inviabiliza grandes projetos de mineração de ouro”, completa.

A construção das hidrelétricas e o asfaltamento da BR-163 já estão despertando a sanha das mineradoras. Por enquanto, o ouro do Tapajós ainda
não entrou na mira das companhias consideradas majors – as maiores do mundo. Mas pelo menos cinco empresas identificadas como juniorscomo são chamadas as de médio porte, já estão em fase de pesquisa.

O mais adiantado deles é o Projeto Tocantinzinho, no município de Itaituba, que já está em fase de licenciamento ambiental e deve entrar em funcionamento até 2016. O empreendimento é de uma subsidiária da Eldorado Gold, do Canadá, que já opera uma mina no Amapá.

E não é apenas o ouro que chama atenção no Tapajós.


A gigante Anglo American, uma das dez maiores mineradoras do mundo, com lucro líquido da ordem de US$ 6,17 bilhões em 2011, está levantando o potencial de uma jazida de cobre na Floresta Nacional (Flona) do Jamanxim – a segunda maior do país, com uma área de 1,3 milhão de hectares, quase dez vezes superior à da cidade de São Paulo.

Mas é importante ressalvar que, geologicamente falando, o cobre muitas vezes aparece associado ao ouro. Em outras palavras, a mineradora deve mapear todo o potencial da área.

O perímetro de pesquisa requerida pela companhia inglesa ao DNPM, no segundo semestre de 2011, abrange mais da metade da Flona. Em tese, isso não é ilegal: a legislação ambiental permite a mineração em uma reserva desse tipo – desde que devidamente licenciada e adequada ao plano de manejo.

Porém, sem qualquer tipo de autorização, a Anglo American já vem utilizando máquinas de sondagem na área, desde julho deste ano, pelo menos. A denúncia é feita pelo próprio chefe da Flona do Jamanxim, Haroldo Marques.

Esse pedido para realização de sondagem na área tem que ser formalizado. Eu sou o responsável pelo parecer que autoriza pesquisas e perfurações, mas até agora não chegou nada até mim”, explica o servidor do ICMBio.

Eu vi funcionários em caminhonetes com logotipo da Anglo American, usando uniformes, sem qualquer preocupação em esconder o nome da empresa.”

O chefe da Flona do Jamanxim fica lotado no escritório do ICMBio de Itaituba e precisa de autorização dos superiores de Brasília para ir a campo e fiscalizar o cumprimento da legislação ambiental. “Eu estava na fiscalização combatendo o desmatamento, pedi a renovação de diárias, mas ela não foi concedida”, explica Marques. “Fui tirado da fiscalização e parei os trabalhos que estava fazendo por lá. Muito esquisito, né?

Questionada pela Pública, a assessoria de imprensa da Anglo American emitiu nota em que “confirma que empresa requereu áreas junto ao DNPM” e diz que “aguarda a publicação dos respectivos alvarás de pesquisa, para, só então, solicitar a autorização do ICMBio, órgão gestor das Unidades de Conservação no país, e seu respectivo enquadramento no Plano de Manejo [da Flona do Jamanxim]”.

A empresa nega, porém, que esteja fazendo trabalhos de sondagem. “A equipe de campo promoveu no período unicamente contatos com superficiários, visando futura celebração de Termos de Acordo, conforme previsto no Código de Mineração”, finaliza a nota.

Os “superficiários” citados na nota da Anglo American são pessoas que reivindicam a propriedade de terras dentro da Flona do Jamanxim. Quando foi criada, em 2006, a unidade de conservação que leva o nome desse afluente do Tapajós já estava ocupada por diversas fazendas.

A pecuária, o garimpo e a extração ilegal de madeira fazem dessa a reserva a que mais perdeu mata nativa em todo país, ao longo de 2012.

Curiosamente, a devastação cresce na mesma velocidade que a intenção do governo de reduzir a área da Flona do Jamanxim.
Atualmente, um grupo de trabalho do ICMBio de Brasília analisa a possibilidade de extirpar, no mínimo, 200 mil hectares da área atualmente protegida.

Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), que rastreia o desmatamento por satélite, a floresta perdeu, em 2012, 5.069 hectares até outubro. No mesmo período do ano passado, o número era consideravelmente menor: 972 hectares. “A área onde a Anglo American está fazendo as pesquisas é uma das mais preservadas da Flona”, analisa Marques.

CORREDOR DO AGRONEGÓCIO
Itaguaí Mendes da Silva já não descarta um conflito sangrento na pequena comunidade de Açaizal, localizada a 40 quilômetros do centro de Santarém, o maior município do Tapajós, com 300 mil habitantes.

Até dez anos atrás, além de plantar a própria roça e tirar peixe do igarapé que banha o povoado, as 54 famílias – descendentes de indígenas e nordestinos – também arrumavam trabalho como vaqueiros ou capinadores de pasto nas fazendas de gado que circundavam Açaizal (foto).

Porém, desde a chegada dos “gaúchos”, como são apelidados os produtores de grãos que compraram as terras dos criadores de bois a partir de 2001, a relação com os novos vizinhos nunca foi tão tensa. “Nós estamos cercados pela soja”, desespera-se Itaguaí. “A gente não pode nem mais criar galinha. Antes os animais ficavam livres. Agora, não dá para soltar. Se soltar, e eles forem para a área dos gaúchos, morrem.

Itaguaí também reclama do assoreamento e da contaminação com agrotóxicos dos igarapés onde a comunidade pesca. Por essa razão, os moradores de Açaizal lutam, desde 2004, para que o governo federal reconheça a comunidade como uma terra indígena e retire os "sojeiros" da área.

Esperamos que em 2013 saia pelo menos uma audiência pública”, afirma.

Os “gaúchos” do oeste paraense não vêm apenas do Rio Grande do Sul.

Muitos são ex-funcionários de grandes fazendas do Mato Grosso, atraídos pelas terras baratas da região”, explica Gílson Rego, da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Os preços baixos se justificam pela completa ausência de títulos de propriedade regularizados.

Dez anos atrás, a terra não valia nada aqui. Eram R$ 250 o hectare [equivalente a um campo de futebol, aproximadamente]. Hoje, já está bem mais valorizado, na casa de R$ 5 mil o hectare”, afirma Toni Silver, coordenador da Federação da Agricultura e Pecuária do Pará (Faepa).

Mesmo assim, o preço é ainda muito baixo quando comparado aos locais onde mais se produzem grãos no país: em Sinop (MT), o mesmo pedaço de terra não é vendido a menos de R$ 21 mil, segundo o Instituto Mato-grossense de Economia Agrícola (Imea).

No oeste paraense, as fazendas de soja cresceram em torno do porto da multinacional Cargill instalado na foz do rio Tapajós, em Santarém, e se concentram na zona rural desse município e na do vizinho Belterra.

Como a falta de títulos regularizados inviabiliza a obtenção de crédito em bancos públicos, a trading norte-americana, uma das maiores comerciantes de commodities agrícolas do mundo, é a principal fonte de financiamento dos 
produtores. “Existem 170 produtores cadastrados na Cargill, afirma Silver.

Quem chega pela BR-163 (foto) a Santarém depara-se ao longo da estrada com alguns silos e armazéns para estocagem não só de soja, mas também de milho e arroz. Porém, a realidade é que as lavouras de grãos ocupam uma área ainda pouco expressiva, que não chega a 60 mil hectares.

Esse é o tamanho de uma única propriedade comum no Mato Grosso”, compara o coordenador da Faepa.

Mais do que uma fronteira para produção, o Tapajós é visto principalmente como um corredor para escoar a produção do Mato Grosso. Além da BR-163, que deve ser completamente asfaltada até 2014, o governo também planeja aproveitar as hidrelétricas para construir eclusas que podem viabilizar uma hidrovia ligando o rio Teles Pires, no Mato Grosso, ao Tapajós.

O Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) até chegou a promover uma licitação para encomendar o projeto técnico da hidrovia. Porém, nenhuma empresa se interessou pelos R$ 14 milhões oferecidos para o trabalho, o que levou o órgão federal a suspender o edital.

Mas há quem duvide da obra, pelo menos, para o curto prazo. A desconfiança vem da simples observação da história: as eclusas da hidrelétrica de Tucuruí, no rio Tocantins, ficaram prontas 26 anos após a inauguração da usina.

A ideia da hidrovia é ligar o norte do Mato Grosso ao município de Santarém, onde as embarcações saem do Tapajós, adentram o rio Amazonas e da lá ganham o mundo pelo Atlântico.

No porto da Cargill (foto) localizado em Santarém, cerca de 95% da carga movimentada vêm do Mato Grosso. Mas, por enquanto, os grãos são primeiro transportados de caminhão até Rondônia e, de lá, seguem em barcaças pelo rio Madeira até o rio Amazonas, que recebe o seu afluente Tapajós em Santarém.

No terminal da multinacional norte-americana, são carregados os porões de navios capazes de transportar até 60 mil toneladas de grãos.

O porto fluvial da Cargill (foto) foi objeto de intensos questionamentos por parte de ambientalistas e movimentos sociais nos últimos anos.

Com o consentimento do governo do Pará, a empresa iniciou a operação do terminal sem a realização prévia do Estudo de Impacto Ambiental/ Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) – requisito básico previsto na legislação para licenciar qualquer grande empreendimento.

O porto foi construído em cima de sítios arqueológicos importantes. Além disso, acabou privatizando a praia de Vera Paz, que era muito utilizada pela população de Santarém”, conta Érina Gomes, advogada da ONG Terra de Direitos.

Segundo o diretor de portos da Cargill, Clythio Buggenhout,(foto) a empresa construiu o seu terminal depois de vencer em 1999 uma licitação aberta pela Companhia de Docas do Pará (CDP), vinculada à Secretaria de Portos da Presidência da República. De acordo com ele, a área gerida pela CDP já era uma zona portuária consolidada e tinha licença operacional para diversas atividades.

Foi feita uma consulta à Secretaria de Estado de Meio Ambiente do Pará (Sema-PA) e, como o porto já estava licenciado, ela informou que bastaria fazer um Plano de Controle Ambiental (PCA)”, explica Buggenhout, que, antes de assumir o cargo na Cargill, presidiu a CDP entre 2007 e 2009.

De acordo com o executivo, até o começo da década passada, não era comum que se cobrasse a realização de um EIA/Rima para licenciar um terminal portuário. “Hoje a gente entende que todo mundo tem que fazer EIA/Rima para qualquer terminal. Mas, na época, era atípico.

Por meio de nota, a assessoria de imprensa da Cargill respondeu a questionamentos da Pública. Clique aqui para ler a íntegra das respostas.

As justificativas da Cargill não convenceram o MPF, que se baseou sobretudo na Resolução 237, de 1997, publicada dois anos antes da licitação vencida pela Cargill, para cobrar a realização do EIA/Rima. Depois de um longo questionamento judicial promovido pelo MPF, que até obteve liminares para paralisar temporariamente as atividades do porto, a Cargill foi obrigada a fazer o estudo.

A primeira versão foi concluída em 2008 – cinco anos após a inauguração do terminal fluvial. Porém, a Sema-PA exigiu que o trabalho fosse refeito e que se ampliasse a área de influência do empreendimento, para que fossem analisados os impactos socioambientais trazidos pela inevitável expansão do cultivo da soja no oeste paraense, impulsionada pelo porto. A segunda versão do EIA/Rima ficou pronta em 2010.

Porém, o imbróglio está longe de chegar ao fim: a CPEA (Consultoria, Planejamento e Estudos Ambientais), empresa contratada pela Cargill para fazer o estudo de impacto ambiental, é acusada de fraude pelo MPE-PA.

Na ação movida pelo órgão estadual, a CPEA é acusada de ter inserido informações parcialmente incongruentes, as quais apontam desconformidades entre os textos utilizados como pilares para a construção dos argumentos favoráveis ao Licenciamento Ambiental da empresa Cargill S.A. e os resultados dos próprios autores quanto às suas conclusões”.

Dentre os dados supostamente distorcidos pela CPEA, por exemplo, encontram-se estatísticas sobre o desmatamento na zona rural de Santarém, 
que teriam sido adulteradas de forma a não serem diretamente correlacionadas à instalação do porto da Cargill.

Entidades que trabalham em parceria com movimentos sociais e populações tradicionais também acusam o EIA/Rima de não levar em consideração os problemas sofridos por algumas comunidades do Planalto Santareno descendentes de indígenas e de quilombolas, impactadas diretamente pelo plantio e pelo transporte da soja, como se verifica no povoado de Açaizal.

O representante da Cargill nega que a empresa esteja fomentando a violação de direitos de comunidades tradicionais.

A Funai nunca nos oficiou, dizendo que estamos comprando indevidamente de alguma fazenda em área indígena”, argumenta Buggenhout (foto). Ele também afirma que, para a empresa, a produção de soja no oeste do Pará, “comercialmente, é irrisória”.

Se toda a região de Santarém for plantada com soja, e não é isso que a gente quer, ainda assim não seria significativo no movimento do terminal, que já se movimenta – 95% – com  carga vinda do Mato Grosso.

Em entrevista concedida à Pública por e-mail, o diretor-presidente da CPEA, Sérgio Luis Pompeia, refuta as acusações do MPE-PA e afirma que não houve qualquer dado distorcido sobre o desmatamento nas áreas de influência do empreendimento”.

Além disso, diz ele, “as áreas indígenas e de quilombolas existentes na área de influência indireta do empreendimento foram todas relacionadas e analisadas dentro do diagnóstico do EIA/Rima”.

Pompeia argumenta ainda que a ação movida pelo MPE-PAdecorreu de um equívoco na análise do EIA realizada por seus assistentes técnicos".

O processo judicial ainda está longe de ter um desfecho: a primeira audiência está marcada para agosto de 2013.

Apesar das desconfianças em relação ao EIA/Rima, o fato é que a Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Pará concedeu, em agosto deste ano, a licença operacional para funcionamento do terminal e, de quebra, também aprovou a licença de instalação para que a infraestrutura do porto seja expandida. “Muitas empresas do agronegócio estavam esperando resolver esse caso da Cargill. Já temos notícias de que outras querem construir portos no Tapajós”, explica Érina.

A menina dos olhos das grandes empresas do agronegócio – e também do setor de transporte de cargas – é o distrito de Miritituba, localizado na margem direita do rio Tapajós, no município de Itaituba. Trata-se de um ponto logístico estratégico não só pela via fluvial, mas também pelo modal rodoviário.

É precisamente do lado direito do rio, na altura de Miritituba, que se encontram tanto a BR 163, que liga Cuiabá (MT) a Santarém, como as vias de acesso à rodovia Transamazônica, que rasga a Amazônia de leste a oeste.

Em Miritituba, barcaças de pequeno porte serão carregadas sobretudo com grãos e vão seguir viagem pelo Tapajós e pelo rio Amazonas até outros portos fluviais de maior envergadura, como os dos municípios de Santarém, Barcarena (próximo à capital paraense) e Santana, no entorno de Macapá (AP).

Mas não são apenas grãos que vão ser escoados. Produtos da Zona Franca de Manaus (AM) também devem chegar à região Centro-Oeste a partir de Miritituba”, analisa Buggenhout.

Além da própria Cargill, pelo menos três grandes empresas já compraram terrenos em Miritituba, nos últimos dois anos, para a construção de novos terminais.

Uma delas é a também norte-americana Bunge, que figura entre as quatro maiores empresas mundiais do agronegócio e que já está com o processo de licenciamento ambiental do porto em fase avançada.

As outras duas são a Hidrovias do Brasil (HB), pertencente ao fundo de investimento P2 Brasil, e a Cianport – empresa ligada a grandes produtores de grãos do Mato Grosso interessados em fazer a logística da sua produção por conta própria.

Mas há quem diga que o número de novos portos possa ser até duas vezes maior.

Exageros e especulações à parte, não há como negar que o Tapajós é a bola da vez na expansão da fronteira amazônica – processo que, historicamente, deixou feridas não cicatrizadas devido à lógica predatória com que se instalou em outras partes da floresta.

Resta torcer para que a história não se repita no oeste do Pará. Mas, pelo andar da carruagem, a torcida terá de ser grande. Muito grande.

Fonte:
http://apublica.org/2012/12/rio-de-ouro-soja/

Não deixe de ler:
- Sem indignação, nada de grande e significativo ocorre na história humana - Michael Löwy

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade e, excetuando uma ou outra, inexistem no texto original.