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sexta-feira, 6 de abril de 2012

A governança sul-americana da água

Zilda Ferreira
A América do Sul pode saciar a sede de todos os latino-americanos e socorrer quem precisar. É a região de maior reposição de água do mundo e tem três grandes aquíferos. Mas para isso é urgente que se consiga, em junho, durante a Conferência Rio+20, a criação de um organismo sul-americano capaz de impor o cumprimento da Resolução da ONU 64/292. Aprovada em julho de 2010 pela Assembleia Geral, reconhece como Direito Humano Água e Saneamento. O futuro organismo continental poderá defender nossos recursos hídricos, ameaçados de privatização.

No 6º Fórum Mundial da Água, realizado na França em março de 2012, as transnacionais da água, principalmente as francesas, defenderam um organismo internacional para gestão da água, a “Governança Global da Água”, para facilitar o processo de privatização. Relatora Especial da ONU para o Direito à Água e ao Saneamento, a portuguesa Catarina de Albuquerque se disse surpresa ao descobrir que o nenhuma menção à 64/292 nem qualquer referência a água como Direito Humano constava da declaração ministerial do Fórum.

O Conselho Mundial da Água – hegemonizado por transnacionais - não reconhecer como direito humano a água e o saneamento era previsível. Mas é preocupante que, presentes na delegação brasileira, os tecnocratas da ANA (Agência Nacional de Águas) e do CPRM-Serviço Geológico do Brasil (empresa de capital misto vinculada ao Ministério de Minas e Energia) tenham feito coro com os europeus em favor da criação da Governança Global.

Alter do Chão, Guarani e Bacia do Maranhão, três dos maiores aquíferos do mundo
Quem leu o livro Ouro Azul - como as grandes corporações estão se apoderando da água doce do planeta, de Maude Barlow e Tony Clarke, sabe que 70% do mercado da água pertence a duas empresas francesas - Suez e Vivendi. A Vivendi é dona do segundo maior conglomerado de comunicações do mundo, incluindo redes e canais a cabo de TV, jornais, editoras e operadoras de acesso à internet como a GVT, já em atividade no Brasil. A força do império Vivendi é difícil de medir, mas as empresas de exploração de água são as mais rentáveis, com tentáculos em todos os organismos multilaterais, decisivos para abrir caminho à privatização de recursos hídricos mundo afora.

Precedentes perigosos não faltam. Em 2007 a França tentou aprovar no IPCC (sigla em inglês para Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) instrumento intervencionista ainda mais abrangente. O então presidente francês Jacques Chirac propos a criação de um organismo internacional para fiscalizar o meio ambiente, óbvia estratégia para viabilizar a internacionalização da Amazônia. O governo francês já deu indicações de que voltará a tentar emplacar a proposta na Rio+20.

Apelo
Diante desse quadro é fundamental que os movimentos sociais e lideranças ambientais se juntem aos líderes sul-americanos durante a Rio+20 e tentem criar um organismo regional para gerir os recursos hídricos do continente. Corremos o risco de a América do Sul, que concentra quase metade da água do planeta, conhecer a sede em larga escala, pois a voracidade do mercado europeu de recursos hídricos é inesgotável.

No Brasil já existem exemplos de como o capital é agressivo para se apropriar da água. Os habitantes de Manaus vivem sobre a maior reserva do planeta, mas quem não pode pagar não tem acesso à água. A concessionária local é subsidiária de uma multinacional francesa e o aquífero está sendo contaminado por falta de investimento.

É tarefa da educomunicação, exercida principalmente pelos professores, educadores ambientais e comunicadores, acompanhar debates, fóruns internacionais, ler a mídia e o entorno de maneira crítica, além de analisar as propostas do mercado e dos tecnocratas. É preciso conscientizar o povo a exigir seus direitos ao meio ambiente e à água, que estão sendo apropriados pelas transnacionais. Para concretizar essa tarefa se faz necessário a criação de um organismo sul-americano forte e com participação popular.

Leia ainda:
Privatização da água: o 'fracasso' melhor financiado
A Centralidade da Água
A água novamente entre a vida e a morte


terça-feira, 3 de abril de 2012

A Centralidade da Água

29/03/2012 - Mônica Bruckman** - site América Latina em Movimento

A centralidade da água na disputa global por recursos estratégicos*


As grandes reservas hídricas como a bacia do Congo, Amazonas, o aquífero Guarani ou os grandes lagos de África central coincidem com a existência de grandes populações em expansão e fortes conflitos étnicos e religiosos. Além disso, grande parte dos países desta região se encontram fortemente pressionados pelo sistema financeiro internacional que tenta implantar uma gestão neoliberal dos recursos hídricos. (Monica Bruckman)



 ALAI AMLATINA - Duas visões contrapostas estão em choque na disputa global pela água. A primeira, baseada na lógica da mercantilização deste recurso, que pretende convertê-lo em uma commodity, sujeita a uma política de preços cada vez mais dominada pelo processo de financeirização e o chamado “mercado de futuro”. Esta visão encontra no Conselho Mundial da Água, composto por representantes das principais empresas privadas de água que dominam 75% do mercado mundial, seu espaço de articulação mais dinâmico.

O Segundo Fórum Mundial da Água, realizado em 2000 declarou, no documento final da reunião, que a água não é mais um “direito inalienável”, mas uma “necessidade humana”. Esta declaração pretende justificar, do ponto de vista ético, o processo em curso de desregulamentação e privatização deste recurso natural. A última reunião realizada com o nome de IV Fórum Mundial da Água, em março de 2009, em Istambul, ratifica esta caracterização da água. Um aliado importante do Conselho Mundial da Água foi o Banco Mundial, principal impulsor das empresas mistas, público-privadas, para a gestão local da água.

A outra visão se reafirma na consideração da água como direito humano inalienável. Esta perspectiva é defendida por um amplo conjunto de movimentos sociais, ativistas e intelectuais articulados em um movimento global pela defesa da água, que propõe a criação de espaços democráticos e transparentes para a discussão desta problemática a nível planetário. Este movimento, que não reconhece a legitimidade do Fórum Mundial da Água, elaborou uma declaração alternativa à reunião de Istambul, reivindicando a criação de um espaço de debate global da água nos marcos da ONU, reafirmando a necessidade da gestão pública deste recurso e sua condição de direito humano inalienável [1].

A Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou, em julho de 2010, a proposta apresentada pela Bolívia, e apoiada por outros 33 Estados, de declarar o acesso à água potável como um direito humano. Como previsto, os governos dos Estados Unidos, Canadá, Austrália e o Reino Unido se opuseram a esta resolução, fazendo que perdesse peso político e viabilidade prática, na opinião de Maude Barlow, ex-assessora sobre água do presidente da Assembleia Geral da ONU [2]. Estes quatro países, e suas forças políticas mais conservadoras, aparecem como o grande obstáculo. O perigo para os operadores da água é grande, certamente, um reconhecimento da água e do saneamento como direito humano limitaria os direitos das grandes corporações sobre os recursos hídricos, direitos consagrados pelos acordos multilaterais de comércio e investimento.

Os governos da América Latina estão avançando no reconhecimento da água como direito inalienável e na afirmação da soberania e gestão pública destes recursos. A Constituição Política do Estado Plurinacional da Bolívia reconhece, em seu artigo 371, que o “a água constitui um direito fundamentalíssimo para a vida, no marco da soberania do povo”, estabelece também que “o Estado promoverá o uso e aceso à água sobre a base de princípios de solidariedade, complementaridade, reciprocidade, equidade, diversidade e sustentabilidade”.

Certamente, a disputa pela apropriação e o controle da água no planeta adquire dimensões que extrapolam unicamente os interesses mercantilistas das empresas transnacionais, colocando-se como um elemento fundamental na geopolítica mundial. Está claro que o planeta necessita urgentemente de uma política global para reverter a tendência do complexo processo de desordem ecológico que, ao mesmo tempo em que acelera a dinâmica de desertificação em algumas regiões, incrementa os fenômenos de inundação produto de chuvas torrenciais em outras. As consequências devastadoras que a degradação do meio ambiente está provocando e a gravidade da situação global que tende a se aprofundar colocam em discussão a própria noção de desenvolvimento e de civilização.

Os aquíferos e a preservação de ecossistemas
Há muito tempo as investigações hidrológicas dos ciclos globais da água vem demonstrando que 99% da água doce acessível do planeta se encontram nos aquíferos de água doce, visíveis nos rios, lagos e capas congeladas de gelo. Estas águas constituem sistemas hídricos dinâmicos e desenvolvem seus próprios mecanismos de reposição que dependem, fundamentalmente, das chuvas. Parte deste caudal se infiltra nas rochas subjacentes e se deposita debaixo da superfície, no que se conhece como aquíferos. Os aquíferos recebem reposição das chuvas, portanto são, em sua maioria, renováveis. 

Dependendo do tamanho e as condições climáticas da localização dos aquíferos, o período de renovação oscila entre dias e semanas (nas rochas cársticas), ou entre anos e milhares de anos tratando-se de grandes bacias sedimentares. Em regiões onde a reposição é muito limitada (como nas regiões áridas e hiperáridas) o recurso da água subterrânea pode ser considerado como "não renovável" [3].

Os aquíferos e as águas subterrâneas que os conformam, fazem parte de um ciclo hidrológico cujo funcionamento determina uma complexa inter-relação com o meio ambiente. As águas subterrâneas são um elemento chave para muitos processos geológicos e hidroquímicos, e tem também uma função relevante na reserva ecológica, já que mantém o caudal dos rios e são a base dos lagos e dos pântanos, impactando definitivamente nos habitat aquáticos que se encontram neles. Portanto, os sistemas aquíferos além de serem reservas importantes de água doce, são fundamentais para a preservação dos ecossistemas.

A identificação dos sistemas aquíferos é um requisito básico para qualquer política de sustentabilidade e gestão de recursos hídricos que permitam que o sistema continue funcionando e, do ponto de vista de nossas investigações, é imprescindível para uma análise geopolítica que procure pôr em evidência elementos estratégicos na disputa pelo controle e apropriação da água.

As grandes reservas hídricas como a bacia do Congo, Amazonas, o aquífero Guarani ou os grandes lagos de África central coincidem com a existência de grandes populações em expansão e fortes conflitos étnicos e religiosos. Além disso, grande parte dos países desta região se encontram fortemente pressionados pelo sistema financeiro internacional que tenta implantar uma gestão neoliberal dos recursos hídricos através de seu pessoal técnico para os quais as estações de tratamento de água, reciclagem e construção de mecanismos que evitem a contaminação dos aquíferos são gastos supérfluos [4].

Trata-se de um processo violento de expropriação e privatização do recurso natural mais importante para a vida. Apesar da centralidade da água potável para consumo humano, é necessário assinalar também a importância vital deste recurso para a agricultura, que afeta diretamente a soberania alimentar e para o processo industrial em seu conjunto.

Os maiores aquíferos da Europa se encontram na região euro-asiática, destacando-se, por sua dimensão, a bacia Russa, mais próxima à região polar. A Europa ocidental se vê reduzida a um único aquífero de médio porte, na bacia de Paris. Em quase todos os casos, as reservas de água da Europa padecem de problemas que afetam sua qualidade, o que ampliou drasticamente o consumo de água engarrafada, que se converteu em um item obrigatório na cesta de consumo familiar [5]. A Europa registra, proporcionalmente, a maior taxa mundial de extração de água para consumo humano: do total de água que se extrai, mais de 50% é utilizada pelos municípios, aproximadamente 40% se destina à agricultura e o resto é consumido pelo setor industrial.

A Ásia depende dos grandes aquíferos do norte de China e a Sibéria, mais próxima da região polar. Um dos casos mais graves é o da Índia, que junto com os Estados Unidos, tem uma das taxas mais altas de extração de água subterrânea do mundo.

A América do Sul possui três grandes aquíferos: a Bacia do Amazonas, a Bacia do Maranhão e o sistema aquífero Guarani, que mais parece um “mar subterrâneo” de água doce que se estende por quatro países do cone sul: Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai. Pelo volume das reservas destes aquíferos e pela capacidade de reposição de água destes sistemas, a América do Sul representa a principal reserva de água doce do planeta.

As regiões mais críticas, por ter uma reposição limitada de água (menos de 5 milímetros de chuva por ano), são: o norte de África, na região desértica do Saara; a Índia; a Ásia central; grande parte da Austrália; a estreita faixa desértica que vai da costa peruana até o deserto de Atacama no Chile e a região norte do México e grande parte da região centro-oeste dos Estados Unidos. Nestas regiões, pode-se considerar a água como recurso não renovável. A África sub-saariana, o sudeste asiático, a Europa, os Bálcãs, a região norte da Ásia e a região nor-ocidental da América do Norte registram níveis moderados de reposição de água, entre 50 e 100 mm por ano.

A região de maior reposição de água do mundo é a América do Sul onde, em quase todo o território subcontinental, registram-se níveis de reposição de água maiores de 500 mm/ano, o que constitui o principal fator de abastecimento dos sistemas aquíferos da região. Esta altíssima capacidade de reposição de águas superficiais e subterrâneas é fundamental, não só para o abastecimento de água doce, mas também para a manutenção e reprodução dos sistemas ecológicos e da biodiversidade na região.

Notas:
[1] Ver: Mabel Faria de Melo. “Água não é mercadoria”. Em: ALAI, 3 de abril de 2009.
[2] Ver: Roberto Bissio. El derecho humano al agua. Disponível em http://alainet.org/active/39769
[3] Atlas of Transboundary Aquifers. Global maps, regional cooperation and local inventories. Paris: UNESCO, p. 16.
[4] TEIXEIRA, Francisco Carlos. Por uma geopolítica da água. 23 de janeiro de 2011. Disponível em http://www.tempopresente.org/index2.php?option=com_content&do_pdf=1&id=77 ,
[5] Ibid.

** Monica Bruckmann é socióloga, doutora em ciência política, professora do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Brasil) e investigadora da Cátedra e Rede UNESCO/Universidade das Nações Unidas sobre Economia Global e Desenvolvimento Sustentável - REGGEN.

* Ver texto original em: http://alainet.org/publica/473.phtml da revista “América Latina en Movimiento”, No 473, correspondente a março de 2012 e que tem como tema "Extractivismo: contradicciones y conflictividad”.

Matéria copilada do endereço: http://alainet.org/active/53475

[Nota da Equipe do blog Educom: ver na série de textos as matérias relacionadas com as pesquisas do professor Milton Matta, da UFPa, o maior estudioso do aquífero Alter-do-Chão, o maior do Brasil em volume dágua, cujo centro geográfico encontra-se nesse balneário às margens do rio Tapajós, 30 km ao sul de Santarém.


quinta-feira, 22 de março de 2012

Parem com a apropriação da água!

Declaração da Via Campesina no Fórum Alternativo Mundial da Água 
22/03/2012
Via Campesina

Nós, organizações camponesas de diferentes países do mundo, membros da Via Campesina, reunidos de 12 a 17 de março de 2012, no Fórum Alternativo Mundial da Água, em Marselha, França, representados por delegados vindos da Turquia, Brasil, Bangladesh, Madagascar, Portugal, Itália, França e México, expressamos a nossa solidariedade aos afetados por catástrofes ambientais e, especialmente, aos que são vítimas da construção de represas, dos gases de xisto, da apropriação, da mercantilização e da escassez da água, das contaminações generalizadas, das repressões e dos assassinatos levados à prática contra os militantes defensores da água.
Reivindicamos que o direito pela água seja respeitado, dentro do princípio regulador da soberania alimentar. O direito à água é o respeito permanente ao ciclo da água, tomado integralmente. Afirmamos que a privatização e a mercantilização da água e de todo outro bem comum (sementes, terra, conhecimentos locais e tradicionais, etc.) são um crime contra a terra e a humanidade. Os grandes projetos de represas e de centrais hidroelétricas aprisionam e se apropriam da água, não tendo em conta nem necessidades, nem práticas tradicionais, nem a opinião das comunidades locais, além de debocharem da preservação do ecossistema.
As crises da água, da biodiversidade, as crises sociais, energéticas e financeiras encontram-se todas juntas e são as consequências do neoliberalismo e do modelo de agricultura industrial promovido pelas instituições financeiras internacionais (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, Organização Mundial do Comércio), os tratados de livre comércio, o Conselho Mundial da Água, as multinacionais e a maioria dos governos.
A economia verde é uma falsa solução frente às mudanças climáticas e à escassez da água. A mercantilização da água, do carvão, da biodiversidade, os OGM, as nanotecnologias e a geoengenharia são as novas saídas e propostas do neoliberalismo para responder às crises. A evasão crescente continua enquanto estas respostas tecnicistas e mercantis são as principais responsáveis pelo caos ecológico e social que nos atinge.
O modelo de produção industrial, as monoculturas e a agroquímica têm contaminado nossas águas, pondo em perigo nossa saúde. Defendemos as práticas agroecológicas e a agricultura camponesa, que levam à prática a soberania alimentar e contribuem com a preservação e a utilização sustentável da água.
A água é um bem comum em benefício de todos os seres vivos, e deve ser submetida a um gerenciamento público, democrático, local e sustentável. Os conhecimentos locais e tradicionais de gerenciamento da água, que protegem e consideram o ecossistema em sua totalidade, existem desde sempre. Eles são testemunhas atemporais de sua eficácia. As políticas públicas e as leis sobre a água devem reconhecer e respeitar esses conhecimentos.
Pela soberania alimentar: Parem com a apropriação da água!
Marseille, França, 18 de Março de 2012.

(Texto publicado originalmente no site Brasil de Fato)

Guerra da Água é silenciosa, mas já está em curso

19/03/2012 - Eduardo Febbro - Carta Maior
Tradução: Katarina Peixoto

"A guerra da água é silenciosa, mas é uma realidade: conflito em Barcelona causado pelo aumento das tarifas, quase guerra na Patagônia chilena por causa da construção de enormes represas e da privatização de sistemas fluviais inteiros, antagonismos em Barcelona e em muitos países africanos pelas tarifas abusivas aplicadas pelas multinacionais. A pérola fica por conta da Coca Cola e de suas tentativas de garantir o controle em Chiapas, México, das reservas de água mais importantes do país." (Eduardo Febbro - de Paris)



- Quanto vale a vida? “Para começar, um bom copo de água”,

responde com ironia Jerôme, um dos participantes do Fórum Mundial Alternativo de Água (FAME) que se reuniu na França, paralelamente ao muito oficial Fórum Mundial da Água (FME). Duas “cúpulas” e duas posturas radicalmente opostas que expõem até o absurdo o antagonismo entre as multinacionais privadas da água e aqueles que militam por um acesso gratuito e igual a este recurso natural cuja propriedade é objeto de uma áspera disputa nos países do Sul. Basta apontar a identidade dos organizadores do Fórum Mundial da Água para entender o que está em jogo: o Fórum oficial foi organizado pelo Conselho Mundial da Água. Este organismo foi fundado pelas multinacionais da água Suez e Veolia e pelo Fundo Monetário Internacional, incansáveis defensores da privatização da água nos países do Sul.

O mercado que enxergam diante de si é colossal: um bilhão de seres humanos não tem acesso à água potável e cerca de três bilhões de seres humanos carecem de banheiro. O tema da água é estratégico e tem repercussões humanas muito profundas. Os especialistas calculam que, entre 1950 e 2025 ocorrerá uma diminuição de 71% nas reservas mundiais de água por habitante: 18 mil metros cúbicos em 1950 e 4.800 metros cúbicos em 2025. Cerca de 2.500 pessoas morrem por dia por não dispor de um acesso adequado à água potável. A metade delas é de crianças. Comparativamente, 100% da população de Nova York recebe água potável em suas casas. A porcentagem cai para 44% nos países em via de desenvolvimento e despenca para 16% na África Subsaariana.

As águas turvas dos negócios e as reivindicações límpidas da sociedade civil, que defende o princípio segundo qual a água é um assunto público e não privado e uma gestão racional dos recursos, chocam-se entre si sem conciliação possível. Um exemplo dos estragos causados pela privatização desse recurso natural é o das represas Santo Antonio e Jirau, no rio Madeira, a oeste do Amazonas, no Brasil. As duas represas têm um custo de 20 bilhões de dólares e, na sua construção, estão envolvidas a multinacional GDF-Suez e o banco espanhol Santander. A construção dessas imensas represas provocou o que Ronack Monabay, da ONG Amigos da Terra, chama de “um desarranjo global”. As obras desencadearam um êxodo interior dos índios que viviam na região. Eles foram se refugiar em outra área ocupada por garimpeiros em busca de ouro e terminaram enfrentando-se com eles.

Deslocamento de populações, inundação de terras agrícolas e de matas e esgotamento de espécies aquáticas são algumas das consequências nefastas dessas megaestruturas”, denuncia Ronack Monabay. As represas se Santo Antônio e Jirau ameaçam também várias populações indígenas ao longo do rio Madeira: os Karitiana, os Karipuna, os Uru-eu-Wau-Wau e os Katawixi. Outros grupos como os Parintintin, os Tenharim, os Pirahã, os Jiahui, os Torá, os Apurinã, os Mura, os Oro Ari, os Oro Bom, os Cassupá e os Salamãi também estão ameaçados. Nenhuma destas populações indígenas foi consultada sobre a viabilidade dos projetos. Eles foram impostos a elas, juntamente com todos os males que os acompanham.

O exemplo do Brasil é extensivo a outros projetos similares em Uganda ou Laos, onde as multinacionais da água semeiam a destruição. O direito à água para todos foi reconhecido pelas Nações Unidas em 2010. No entanto, esse reconhecimento está longe de ter se materializado em fatos. Emmanuel Poilane, diretor da Fundação France Libertés, criada por Danielle Miterrand, falecida esposa do também falecido presidente socialista François Miterrand, lembra de um dado revelador: “dos 193 países que integram a ONU, só 30 deles inscreveram esse direito na Constituição. Mas esses 30 países são todos do Sul”. O Norte quer água privada para encher os caixas de seus bancos e pouco importa o custo humano que a escassez de água pode causar às populações destes países.

A este respeito, Emmanuel Poilane recorda que “a cada três segundos morre uma criança por falta de água”. A própria existência do Fórum Mundial da Água, organizado por um Conselho Mundial da Água composto por multinacionais e pelo FMI é uma aberração. A batalha entre público e privado se deslocou inclusive para o Senado francês. No curso de um debate, um dos senadores socialistas lembrou que esse fórum não é uma instância das Nações Unidas, mas sim um lugar onde “se fazem negócios privilegiados entre as multinacionais. É urgente que a água seja objeto de uma reapropriação cidadã”. Não é o caso. As instâncias internacionais estão ausentes porque os lucros à vista são colossais. A gestão da água foi confiscada pelos interesses privados.

Brice Lalonde, coordenador da Rio+20, cúpula da ONU para o Meio Ambiente, prometeu que a água será “uma prioridade” da reunião que será realizada no Rio de Janeiro em junho. O responsável francês destaca neste sentido o paradoxo que atravessa este recurso natural: “a água é uma espécie de jogo entre o global e o local”. E neste jogo o poder global das multinacionais se impõe sobre os poderes locais.

As ONGs não perdem as esperanças e apostam na mobilização social para contrapor a influência das megacorporações. Neste contexto preciso, todos lembram o exemplo da Bolívia. Jacques Cambon, organizador do Fórum Alternativo Mundial da Água e membro da ONG Aquattac, recorda o protesto que ocorreu na cidade de Cochabamba: “dezenas de milhares de pessoas manifestaram-se na rua em protesto contra o aumento da tarifa da água potável imposto pela multinacional norteamericana Bechtel”.

A guerra da água é silenciosa, mas existe: conflito em Barcelona causado pelo aumento das tarifas, quase guerra na Patagônia chilena por causa da construção de enormes represas e da privatização de sistemas fluviais inteiros, antagonismos em Barcelona e em muitos países africanos pelas tarifas abusivas aplicadas pelas multinacionais. A pérola fica por conta da Coca Cola e de suas tentativas de garantir o controle em Chiapas, México, das reservas de água mais importantes do país. Jacques Cambon está convencido de que “o problema do acesso à água é um problema de democracia. Enquanto não se garantir o acesso e a gestão da água sob supervisão de uma participação cidadã haverá guerras da água em todo o mundo”.

A senadora brasileira Katia Abreu (PSD), que também é presidente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), propôs durante o Fórum uma iniciativa para “proteger em escala mundial as zonas essenciais à preservação dos recursos de água”. As palavras, no entanto, se chocam com a dura realidade: a das multinacionais e a da própria natureza. A ONU apresentou na França um informe sobre o impacto da mudança climática na gestão da água: secas, inundações, transtornos nos padrões básicos de chuva, derretimento de geleiras, urbanização excessiva, globalização, hiperconsumo, crescimento demográfico e econômico. Cada um destes fatores, constitui, para as Nações Unidas, os desafios iminentes que exigem respostas da humanidade.

A margem de manobra é estreita. Nada indica que os tomadores de decisão estão dispostos a modificar o rumo de suas ações. A mudança climática colocou uma agenda que as multinacionais, os bancos e o sistema financeiro resistem a aceitar. Seguem destruindo, em benefício próprio e contra a humanidade. Ante a cegueira das multinacionais, a solidariedade internacional e o lançamento daquilo que se chamou na França de “um efeito mariposa” em torno da problemática da água são duas respostas possíveis para frear a seca mundial.

sexta-feira, 16 de março de 2012

A água novamente entre a vida e a morte

14/03/2012 - Elizabeth Peredo Beltrán(*) - Alai-Amlatina - Carta Maior
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
(No final ver Nota da Equipe Educom)

"O Conselho Mundial da Água, liderado por empresas como Veoliam, Suez, Coca Cola, Monsanto e outras grandes transnacionais desenvolveu uma visão muito sofisticada da água, uma visão que está fundamentada no conceito de que ela é um bem mercantil necessário para a vida e a ecologia, funcional aos direitos humanos e à sobrevivência e, portanto...um grande negócio. Como é possível que o Fórum Mundial da Água negue-se a reconhecer o direito humano à água e ao saneamento?"
O artigo é de Elizabeth Peredo Beltrán
  

Passaram-se já 15 anos da primeira edição do Fórum Mundial da Água e 20 da Declaração do Rio. Durante esses anos, o Conselho Mundial da Água, liderado por empresas como Veoliam, Suez, Coca Cola, Monsanto e outras grandes transnacionais desenvolveram uma visão muito sofisticada da água, uma visão que está fundamentada no conceito de que água é um bem mercantil necessário para a vida e a ecologia, funcionais aos direitos humanos e à sobrevivência e, portanto...um grande negócio.

Em todo esse período, ao invés de melhorar o cuidado com as fontes e aquíferos em todo o mundo a situação piorou substancialmente. Os equilíbrios ecológicos necessários para a sobrevivência e a fluidez do ciclo hidrológico foram rompidos como nunca havia acontecido, devido aos processos de agroindústria em larga escala, contaminação mineradora e projetos de energia baseados na construção de enormes hidroelétricas, entre outras causas. As empresas, por sua vez, estão buscando cada vez ganhar mais terreno da gestão pública e seguem ocorrendo debates entre gestores públicos e empresários diplomáticos corporativistas que tentam nos convencer de que o papel do setor privado é absolutamente necessário para a gestão da água.

Nestes debates e acordos de governança global da água pretende-se deslegitimar a gestão pública e fortalecer o conceito que foi desenvolvido pelo Consenso de Washington: o desenvolvimento e o cumprimento dos objetivos do Milênio só serão possíveis se existir um forte investimento privado; portanto, o desenvolvimento, os direitos humanos e os equilíbrios ecológicos estão ligados à sorte do mercado.

Este princípio permitiu construir um sistema especulativo de alto voo que agora é reforçado com o desenvolvimento da economia verde que é mais do mesmo, mas concebido para criar mercados especulativos coloridos com uma tinta verde acrescentada para dar a sensação de que se está protegendo o planeta e com a intenção de mercantilizá-lo todo; não só a água que tomamos e até o ar que respiramos, mas inclusive o futuro do planeta. Ainda que pareça ficção científica, isso é possível assim como foi possível que desde este Fórum tenham surgido soluções técnicas e corporativas escandalosas há alguns anos e que agora estão sendo colocadas em prática.

Em Haia, o Fórum Mundial da Água de 2003 se propôs incentivar a criação de sementes transgênicas para “poupar água”, sob o diagnóstico de que a agricultura é a atividade que consome mais água em todo o mundo. Na época, os ativistas da água reclamaram que esta solução podia se constituir em um crime que poderia afetar a saúde de todo o mundo e lançaram campanhas para evitar as sementes transgênicas e incluir o princípio de precaução nestas tecnologias. Hoje, as sementes transgênicas são parte do comércio mundial de alimentos e suas tecnologias e insumos. Nesta semana a Argentina apresentou ao mundo com orgulho o patenteamento de uma nova semente transgênica capaz de “poupar” água na produção de trigo, milho e soja em nível mundial.

As coisas vão mal porque deixaram as decisões mais importantes sobre a vida e sobre o planeta nas mãos das corporações e de governos poderosos e desenvolvimentistas que, baseados no princípio de que tudo se compra, se paga, se vende ou se repara pagando, levaram até os limites a impossibilidade de construir uma sociedade solidária, protetora do meio ambiente e, sobretudo, respeitosa de um bem sagrado para a vida como é a água.

O Fórum Mundial da Água se negou sistematicamente a apoiar em suas declarações o Direito Humano à Água e ao Saneamento. No Fórum Mundial da Água do México, em 2006, foram apenas quatro os países que assinaram uma declaração minoritária exigindo o direito humano à água, entre eles Uruguai e Bolívia. No entanto, nas Nações Unidas, há dois anos não houve nem um só voto contra a Resolução 64/292 declarando o Direito Humano à Água e ao Saneamento. Os países que se opunham a ela só puderam se abster de votar, mas não explicitar sua negativa a um evidente consenso gerado pelos povos e pelos países que sabem que esse é um direito inalienável para a humanidade.

Como é possível que, sistematicamente, o FMA se negue a reconhecer esse direito e que, na ONU, ele tenha sido aprovado sem oposição há dois anos?

Sendo que são os mesmos países que fazem parte das declarações ministeriais, por um lado, e das resoluções e conferências, por outro. Por que é que agora que ocorreu esse passo tão importante na ONU, o FMA não avança, mas, ao contrário, busca retroceder e diminuir as possibilidades de implementação do direito humano à água, favorecendo os processos de privatização? Mais do que isso, agora o FMA está decididamente disposto a incluir a água em “todas as suas dimensões econômicas, sociais e ambientais em um marco de governança, financiamento e cooperação”...como afirma sua declaração emitida ontem, apesar do protesto de alguns países.

Enquanto isso, milhares, senão milhões de experiências e iniciativas de gestão social e solidária, experiências exitosas de gestão pública, são implementadas com base no conceito de que água é um bem comum, um bem não mercantil para a vida.

As políticas e visões promovidas pelo Fórum Mundial da Água não estão à altura dos desafios colocados diante do planeta e da humanidade. Pelo contrário, estão condenando a gestão da água a seu manejo pelos poderes corporativos incapazes de priorizar a vida, preocupados mais em extrair lucros de qualquer parte, por sistemas financeiros, especulativos e sistemas de litígios corporativos cobiçados nas instituições financeiras internacionais.

Considerando o extremo esgotamento dos recursos e o desequilíbrio ecológico produzido no planeta é indispensável que a governabilidade da água fique fora das mãos do Conselho Mundial da Água e seja construída a partir de consensos dos cidadãos, dos povos e do interesse público. É por isso que os movimentos sociais reunidos em Marselha estão propondo que a ONU convoque um Fórum Global da Água que possibilite escutar as vozes das pessoas para pensar a água como um bem para a vida. As organizações sociais estão pedindo que sejam reforçados os sistemas locais e que se contribua para um exercício de vigilância social para assegurar que seu manejo seja social, democrático e solidário.

Diz-se, não sem razão que “milhares viveram sem amor, mas ninguém viveu sem água” (Auden). Nós acrescentamos, a partir deste Fórum, “sem amor, empatia e solidariedade, será impossível assegurar que a água chegue limpa e pura para todos”.


(*) Elizabeth Peredo é psicóloga social, escritora e ativista pela água, cultura e contra o racismo. Escrito para o Fórum Alternativo Mundial da Água, Marselha, 2012 (http://www.fame2012.org/fr/)

Nota: a posição da Equipe Educom com relação a este assunto aproxima-se mais das colocações postas aqui por Elizabeth Peredo Beltrán. Ainda assim, sugerimos que o leitor tome conhecimento da percepção deste assunto por parte de um órgão governamental brasileiro, no caso o CPRM ou Serviço Geológico do Brasil, através das entrevistas que a jornalista Maria Lúcia Martins efetuou junto a dirigentes e pesquisadores desse órgão, divulgadas neste blog em 15/03/2012, logo aí abaixo, no link  ou na matéria sob o título "Amazônia, fronteira da água".