domingo, 24 de março de 2013

Surge um herói nos EUA - A rara coragem de Bradley Manning - Parte 1/3

04/03/2013 - por Marjorie Cohn (*) em 01/03/2013 no blog Countercurrents
- extraído do site Mirante

Bradley Manning, o soldado estadunidense preso por passar informação ao Wikileaks, pôde afinal se mostrar e falar, depois de um ano em prisão solitária. É herói de verdade.

[Esse sim, herói de verdade, não esses barbosões pretensiosos que andam por aí mal esculpidos por essa mídia caricata - Educom]

Diante de um tribunal militar em Fort Meade, Manning fez dia 28 recente [fev/2013] longo depoimento, no qual se revela homem corajoso, firme, inteligente, lúcido.

Dois que o assistiram relatam a fala de Manning e o tratam como nada menos que herói:

Marjorie Cohn, professora de direito, no original aqui e Michael Ratner, advogado de Wikileaks, no original aqui, ambos em tradução da Vila Vudu a seguir.

Quanto a íntegra da declaração de Manning está transcrita no original aqui e na tradução cedida por Sergio Caldieri, no final desta matéria. [Por ser longa somente a publicaremos amanhã - Educom]

Bradley Manning declarou-se culpado em 10 acusações, entre as quais posse e comunicação deliberada a pessoa não autorizada de todos os principais elementos do que se conhece como documentos vazados por WikiLeaks. A pena, se for condenado pelos crimes que confessa ter cometido, pode chegar a 20 anos de prisão.

Pela primeira vez Bradley pôde falar publicamente sobre o que fez e por quê. Suas ações, agora conhecidas por suas próprias palavras, mostram um jovem soldado muito corajoso.

Quando tinha 22 anos, o cabo Bradley Manning entregou documentos secretos a WikiLeaks. Entre esses documentos, o vídeo conhecido como “Collateral Murder” ["Assassinato Colateral"], em que se veem militares norte-americanos num helicóptero Apache, assassinando 12 civis desarmados, dos quais dois eram jornalistas da Agência Reuters, e ferindo duas crianças.

Supus que, se o público, principalmente o público norte-americano, assistisse àquele vídeo, talvez surgisse algum debate sobre os militares e nossa política exterior em geral, como era aplicada ao Iraque e ao Afeganistão – disse Bradley ante o tribunal militar que o está julgando, durante as formalidades da sessão em que se declarou culpado em algumas das acusações.

Supus que o vídeo pudesse levar a sociedade norte-americana a reconsiderar a necessidade de engajar-se em operações de antiterrorismo, sem nada saber sobre a situação humana das pessoas contra as quais disparamos todos os dias.

Bradley disse que se sentiu frustrado por não ter conseguido convencer seus superiores a investigar os fatos que se veem no vídeo “Assassinato Colateral” e outras imagens e escritos de “pornografia bélica” que havia nos arquivos que entregou a WikiLeaks.

“Fiquei muito perturbado, quando não vi qualquer reação diante de crianças feridas.” O que mais perturbou Bradley foram os soldados que se veem no vídeo, que parecem não dar valor algum à vida humana e referem-se [aos alvos dos tiros], como “filhos da puta mortos” [dead bastards].

Pessoas que se aproximaram para resgatar os feridos também foram alvejadas e mortas. A ação dos soldados norte-americanos que se veem naquele vídeo é tipificada como crime de guerra nos termos das Convenções de Genebra, que proíbe de atirar contra civis; impedir resgate e socorro de feridos; e destruição de cadáveres para impedir que sejam identificados.

Ninguém de WikiLeaks pediu ou estimulou-o a dar os documentos, disse Bradley. “Ninguém associado com a Organização WikiLeaks (WLO) pressionou para que lhes desse mais informações. A decisão de entregar documentos a WikiLeaks foi exclusivamente minha.”

Antes de fazer contato com WikiLeaks, Bradley tentou interessar o [jornal] Washington Post para que publicasse os documentos, mas não recebeu qualquer resposta do jornal. Tentou fazer contato também com o New York Times, também sem sucesso.

Durante os primeiros nove meses de detenção, Bradley foi mantido em cela solitária – o que caracteriza tortura, dado que o isolamento pode levar a alucinações, catatonia e suicídio.

Bradley manteve a declaração de “inocente” nos demais 12 crimes de que os promotores do tribunal militar o acusam, dentre outros o crime de espionagem a favor do inimigo e colaboração com o inimigo, cuja pena é a prisão perpétua.

As ações de Bradley fazem lembrar o que fez Daniel Ellsberg, que divulgou os “Papéis do Pentágono”, no qual se expunham as mentiras do governo dos EUA e que apressaram o fim da Guerra do Vietnã.

(*) Marjorie Cohn é professora da Faculdade de Direito Thomas Jefferson e ex-presidente da National Lawyers Guild [aprox. Ordem dos Advogados dos EUA]; é vice-secretária geral de comunicações da Associação Internacional de Advogados Democráticos e representante dos EUA no Comitê Executivo da Associação Americana de Juristas. É autora de Cowboy Republic: Six Ways the Bush Gang Has Defied the Law [República dos caubóis: seis vezes em que a gangue de Bush desobedeceu a lei] e co-autora, com Kathleen Gilberd, de Rules of Disengagement: The Politics and Honor of Military Dissent. Pode-se ler uma antologia de seus escritos em The United States and Torture: Interrogation, Incarceration and Abuse. Outros artigos da professora Marjorie Cohn são acessíveis em www.marjoriecohn.com

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01/03/2013 - Manning e os crimes de guerra dos EUA
- vídeo e entrevista traduzidos com Michael Ratner, advogado
- The Real News Network, TRNN

PAUL JAY, editor sênior da TRNN:

Michael Ratner, advogado do Wikileaks, assistiu à audiência, ontem [28/02/2013], em que Manning (foto) falou, em tom firme, com inteligência e confiança, detalhando as inúmeras brutalidades às quais assistiu e que o levaram a enviar os documentos que, sim, enviou a Wikileaks.

Aqui, Michael Ratner fala à TRNN e conta o que viu.

Michael, que fala conosco de New York City, é presidente emérito do Centro de Direitos Constitucionais; é presidente do Centro Europeu pelos Direitos Humanos e Constitucionais em Berlim; é o advogado que defende Julian Assange nos EUA; e também é membro do conselho editorial de The Real News Network (TRNN). Obrigado pela entrevista.

MICHAEL RATNER: É um prazer estar com você, Paul.
JAY: Você ontem viveu dia muito fortemente emocionante, assistindo ao julgamento histórico de Bradley Manning. O que aconteceu lá?

RATNER: Fui cedo para Fort Meade, e foi coisa de dia inteiro. Bradley Manning estava na sala do tribunal. A maior parte de imprensa foi direcionada para um auditório, e só uns poucos – eu também, mas não sou jornalista – fomos autorizados a entrar na sala em que Bradley Manning depôs.

Foi dia especial, porque o advogado de Bradley Manning e o próprio Bradley decidiram que Bradley se declararia culpado em algumas das acusações, com penas menores; mas não nas acusações de espionagem e colaboração com o inimigo.

Fato é que, para mim, no plano emocional, foi um dia devastador. No fim do dia, sentia-me uma ruína, emocionalmente devastado. Mas, ao mesmo tempo…

Quem lá estava viu, afinal, quem é Bradley Manning. É um herói. Um desses raros homens que, diante de um crime para o qual todos fecham os olhos, encontra o que fazer e age.

Tecnicamente, Bradley, hoje, declarou-se culpado em nove acusações.

E, quando o acusado se declara culpado, a corte tem de ter certeza de que o acusado entende perfeitamente o que está fazendo, que entende a natureza da confissão de culpa.

Então, a corte pede ao acusado que narre detalhadamente as próprias ações.

Bradley Manning declarou-se culpado de distribuir, ou de transferir a WikiLeaks (que são meus clientes), todos os documentos dos chamados “Iraq War Logs”, dos “Afghan war logs”, o vídeo “Collateral Murder”, telegramas do Departamento de Estado, os 13 telegramas de Reykjavik, etc.

Mas o mais interessante, nessa admissão de culpa em nove acusações, foi que a juíza permitiu que Bradley lesse uma declaração de cerca de 30 laudas. [Como dissemos acima, por ser longa somente a publicaremos amanhã - Educom]

A leitura durou duas, quase três horas. E esse documento, sim, permitiu ver que tipo de homem é Bradley Manning. Foi declaração profunda, imensamente emocionante.

Começa com quando ele se alistou no exército; fala depois de sua primeira missão no Iraque. E essa primeira missão já foi associada a algo que se conhece como SigAct, abreviatura de “atividades significativas”: são os relatórios diários de tudo que acontece em campo.

E Bradley, quanto mais lia aqueles relatórios, mais perturbado se sentia com o que via acontecer no Iraque: número de mortos, número de…

Bradley disse que entendeu rapidamente que estavam assassinando pessoas cujos nomes constavam de uma ‘lista de matar’.

Que absolutamente não estavam ajudando a salvar ninguém. E conta que concluiu que teria de haver discussão muito séria sobre a contra-insurgência  se existe para ajudar alguém ou para ferir inocentes e matar alvos predefinidos.

Ao mesmo tempo em que trabalhava com os arquivos da guerra do Iraque – era parte do seu trabalho – trabalhava também com os arquivos da guerra do Afeganistão, material muito semelhante, condições semelhantes, locais semelhantes. Todos esses arquivos passaram pelas mãos de Bradley.

Também ao mesmo tempo, ouviu falar da organização WikiLeaks. E ouviu falar de WikiLeaks porque WL acabava de divulgar – nem lembro quantas dezenas de milhares de SMSs, aquele, com as mensagens de texto de pessoas que estavam dentro do World Trade Center quando foi atacado.

Assim, ele tomou conhecimento da existência de WL.

Em seguida fez algumas pesquisas pelo computador, e descobriu que, em 2008, havia um documento do governo dos EUA sobre como desmontar a organização WL.

Quer dizer… Foram dois processos: Bradley lendo os arquivos da Guerra do Iraque, os arquivos da Guerra do Afeganistão e, em seguida, fazendo contato, como fez, com WikiLeaks.

Mas, no início, só havia os arquivos da Guerra do Iraque e os arquivos da Guerra do Afeganistão, e Bradley cada vez mais perturbado com o que lia.

De início, não fez qualquer movimento. Mas, em certo momento, ele viajou aos EUA já com todos aqueles arquivos baixados em seu computador, acho, ou num CD, talvez num pequeno cartão para transporte de dados.

Estava em Maryland. Nevava muito. Bradley não conseguia decidir-se sobre o que fazer com os arquivos. Falou sobre eles com um amigo, seu namorado, pelo menos durante algum tempo, e perguntou a ele “o que você faria se tivesse com você coisas que todos os norte-americanos têm de ver? O rapaz nada disse de relevante. Bradley continuou a pensar nos arquivos, que continuavam a incomodá-lo.

Quando voltava de Boston a Maryland, entrou numa loja Barnes & Noble, para fugir da tempestade de neve e, também, porque precisava do acesso à banda larga, e, dali, enviou os documentos a WikiLeaks. Enviou pela própria página de WL, na qual há uma sessão para envio anônimo de documentos.

Depois, Bradley, como já dissera antes, diz que se sentiu muito aliviado; “eu tinha certeza de que era algo que o povo norte-americano tinha de ver; que todos têm de debater essa guerra. E eu esperava que os arquivos da Guerra do Afeganistão e os arquivos da Guerra do Iraque modificassem a situação”. Assim, o primeiro bloco de documentos estava enviado.

A partir daí, é claro, há correspondência, de algum modo, entre Manning e WikiLeaks. Manning nunca soube quem estava na outra ponta do contato por computador.

Diz que, em algum momento, é possível que tenha sido o próprio Julian Assange, ou, talvez, alguém chamado Daniel Schmitt (um rapaz alemão que esteve com os WikiLeaks durante algum tempo, Domscheit/Schmitt).

Mas Bradley não sabe quem seria. Diz que, sim, bem poderiam ser outras pessoas das organizações WikiLeaks. Eu nunca soube com quem me comunicava, da organização WikiLeaks. Todos os contatos eram anônimos.”

Bradley diz também que, ninguém associado com a Organização WikiLeaks (WLO) pressionou-o para que lhes desse mais informação.

“A decisão de entregar documentos a WikiLeaks foi exclusivamente minha”, ele disse.

É bem claro que Bradley é pessoa politizada. Pelo menos, entende claramente que a opinião pública tem de conhecer exatamente o que fazem os governantes.

Depois disso, o grande acontecimento foi o vídeo “Collateral Murder”.

As pessoas, nos gabinetes no Iraque, discutiam se os vídeos seriam legais, se estariam de acordo com as leis de guerra e do serviço militar, ou não.

Bradley decidiu ver, ele mesmo, os tais vídeos. E viu. E horrorizou-se porque “primeiro, sim, até se poderia argumentar que tivesse sido acidente”, quando os dois jornalistas da Reuters foram mortos com tiros de arma que atirava do que parece ser um helicóptero. E, sim, é possível que tenha acontecido um engano, como Bradley disse. E há discussão até hoje sobre se teriam, mesmo, de assassinar os jornalistas da Reuters.

Mas o problema é que, em seguida, aparece uma caminhonete para socorrer as pessoas feridas… E os atiradores no helicóptero atiram contra a caminhonete. E isso, Bradley parece não ter dúvida alguma, é crime de guerra, ação bem claramente proibida. Era pessoal de resgate, que vinha resgatar os feridos. Ninguém portava armas.

Mas o vídeo permite ouvir as falas dos militares dentro do helicóptero, a sanha por sangue. E a expressão que ele usou: sanha de sangue [orig. bloodlust]. Quando veem alguém que rasteja no chão, aparentemente já ferido, alguém diz no helicóptero que “tomara que ele saque a arma”. Evidentemente, para terem o pretexto necessário para matá-lo.

O vídeo também o incomodou. Incomodou-o, sobretudo, o fato de o vídeo não ter sido entregue à Agência Reuters, apesar de a Reuters tê-lo requisitado, em nome das famílias dos dois jornalistas mortos. E o governo dos EUA, o CENTCOM, os militares responderam que nem tinham certeza de que tivessem o tal vídeo. E o vídeo lá estava. Outra vez, o que temos é Bradley profundamente incomodado com o que via e agindo, reagindo, tomando uma atitude.

Essa é a segunda acusação face à qual Bradley declarou-se culpado: ter entregado aquele vídeo, outra vez, como antes, enviado à página de WikiLeaks. Esse vídeo sequer estava classificado como secreto – o que é interessante. Mas Bradley enviou o vídeo, sim, à organização WikiLeaks.

O terceiro caso é com a polícia iraquiana.

Pediram que Bradley ajudasse a polícia do Iraque, a polícia de Bagdá, que os ajudasse a identificar, insurgentes, não sei, ou outros desse tipo. Àquela altura, 15 pessoas foram entregues à polícia iraquiano.

E Bradley examinou aqueles casos; pediu para examiná-los. E descobriu que nada havia contra aquelas pessoas; no máximo, acusações de terem colado cartazes criticando a corrupção no governo iraquiano.

Mais uma vez o caso incomoda Bradley, porque aqueles prisioneiros foram terrivelmente maltratados. Bradley temeu que fossem mortos ou desaparecessem ou, até, que fossem mandados para Guantánamo (foto adiante), se fossem entregues aos EUA.

Então, sua primeira providência foi tentar relatar o caso aos seus próprios superiores, os quais, é claro, não lhe deram qualquer atenção. Bradley, outra vez, enviou os arquivos relacionados àqueles prisioneiros, para WikiLeaks. WikiLeaks não publicou aqueles documentos, mas, é claro, Bradley continuava conversando com WikiLeaks. Mas o caso dos iraquianos presos chamou a atenção de Bradley para outro tópico: Guantánamo.

O que Bradley disse à corte foi “[incompr.] tem direito de interrogar pessoas, é claro, mas Guantánamo é moralmente questionável. O que fazemos ali é manter encarceradas pessoas inocentes, pobres, gente de escalão muito inferior, e Barack Obama prometeu fechar Guantánamo. Minha opinião é que manter aquela prisão fere os EUA.

A partir daí, Bradley passou a trabalhar no que hoje se chama “arquivos dos detentos”, arquivos sobre cada um dos prisioneiros de Guantánamo. E, quando falou com WikiLeaks, disse que mandaria aqueles arquivos; WikiLeaks respondeu “OK, são arquivos antigos, já perderam o conteúdo político, mas são historicamente importantes para o caso Guantánamo; e podem ser úteis aos advogados”. Então, os arquivos foram enviados para WikiLeaks.

Na sequência, a última coisa sobre a qual Bradley falou foram os telegramas do Departamento de Estado.

Houve telegrama anterior, chamado “Reykjavik 13, que, de fato, foi o primeiro documento, pelo que sei, que WikiLeaks divulgou online.

Reykjavik 13 foi recolhido de uma website que tem algo a ver com a Islândia.

E, de repente, lá estava a Islândia – no coração da crise financeira. – E havia terríveis pressões, pelo Reino Unido e pelos EUA, sobre a Islândia, para que o país se rendesse aos programas de resgate e de austeridade. E a Islândia recusou.

E o tal telegrama falava das pressões que os EUA estavam fazendo sobre a Islândia. E Bradley Manning – que sabia o que mais ninguém sabia – reagiu. Denunciou que os EUA estavam assediando a Islândia. Que não pode ser. Que nada, naquele caso, poderia ser secreto.

Com isso, claro, Bradley chegou aos telegramas diplomáticos.

Bradley leu todos os telegramas sobre o Iraque, cada um daqueles telegramas, disse ele; e percebeu que, basicamente, todos aqueles telegramas incluíam crimes, criminalidade de diferentes níveis.

O que o convenceu de que aquele tipo de diplomacia também prejudica os EUA: diplomacia de segredos inconfessáveis dos quais o público jamais toma conhecimento. Em seguida, então, enviou a WikiLeaks os telegramas diplomáticos.

Mas o que se vê em cada um desses casos, é que Bradley foi influenciado, sempre, pelo que viu ou leu. Foi sincera e profundamente atingido e influenciado. E não conseguiu nada, nas tentativas que fez para alertar, primeiro, os seus superiores. Se não conseguia fazer nada dentro da estrutura onde estava – o que mais poderia fazer?

Então, decidiu que todos, todos os cidadãos dos EUA, toda a opinião pública, nos EUA e no mundo, tinham de ser informados.

Porque era preciso discutir aquilo tudo. Supôs que talvez, com a discussão, se conseguiria mudar aquelas políticas.

Mas… Houve vários momentos muito interessantes, no depoimento.

A certa altura, quando já havia voltado para Maryland, pensando em divulgar os arquivos sobre o Iraque e o Afeganistão, Bradley contou que, em primeiro lugar, fez contato com outros veículos.

Telefonou a um dos editores do The New York Times e deixou uma mensagem na secretária eletrônica, ou na página do editor. Jamais houve resposta. Telefonou ao The Washington Post e, disse ele, ninguém, ali, o levou a sério.

Foi quando entendeu que nada conseguiria, em matéria de divulgar os fatos, nem do Washington Post nem do New York Times. Disse que, então, começou a procurar outros meios para divulgar os arquivos. No final, considerando o que WikiLeaks já fizera no passado, Bradley disse que concluiu que seria o melhor meio de divulgar os arquivos.

O que pensei, naquele tribunal, vendo e ouvindo aquele rapaz, 22 anos, que se alistou no Exército aos 20 anos, e que aos 22 já distribuía aqueles documentos para WikiLeaks, porque se sentiu horrorizado, perturbado…

O que pensei ali, naquela hora, é que esse rapaz é um herói. Bradley Manning é um grande herói.

Um homem que viu o que os militares dos EUA faziam no Afeganistão, no Iraque, em Guantánamo, que viu o que o Departamento de Estado fazia pelo mundo… E decide que é indispensável agir, fazer alguma coisa.

Infelizmente, pagará preço muito, muito alto pela sua coragem…

Para que todos entendam, tenho de explicar um pouco como aquilo funciona. Não é como o que se vê nas cortes comuns, quando é possível fazer um acordo com o Procurador, quando há pena máxima e pena mínima, conforme o crime que o acusado escolha confessar. No caso desse tribunal militar as coisas não funcionam desse modo.

Trata-se, nesse caso, do que a juíza chamou de “naked plea” [lit. “admissão nua”(?) (NTs)]. Significa que Bradley apenas decidiu declarar-se culpado nessas nove acusações. Então, a juíza requereu que ele narrasse todos os atos praticados.

Mas essas não são as acusações mais graves. Até aí, só se falou de acusações que, se o acusado for condenado, gerarão pena de 20 anos de prisão. Mas a questão é que o procurador não é obrigado a aceitar coisa alguma. Ele pode dar andamento ao processo e exigir julgamento de todas as demais acusações, as mais graves. Pode até usar elementos do que Bradley Manning confessou ter feito e de como agiu.

E esses desdobramentos é que serão realmente decisivos.

Mas o primeiro passo também conta muito.

Bradley demonstrou que é homem que faz e assume a responsabilidade pelo que faz. A declaração que leu no tribunal é perfeitamente verossímil, faz perfeito sentido, é crível. De fato, é documento impressionantemente sincero e claro.

Pode-se esperar que o juiz seja tocado por aquela fala. Pode-se esperar que a sentença considere que o acusado declarou-se culpado de alguns feitos. Mas não, de modo algum, se declara culpado das acusações que a Procuradoria amontoa contra ele e que podem condená-lo à prisão perpétua. Foi um dia de tribunal realmente impressionante, Paul.

JAY: Muitos disseram que Manning seria homem perturbado, pessoa fraca… Que impressão você teve. De que tipo de homem se trata?
RATNER: Sabe… Vi Manning pela primeira vez na audiência em que ele testemunhou sobre os abusos e a tortura que havia sofrido, durante praticamente um ano, no Iraque e na prisão de Quantico (ao lado).

Já naquele dia, via-se que não é fraco, nem perturbado; é, de fato, muito diferente disso. É homem forte, muito inteligente. Já se via claramente na audiência sobre a tortura e viu-se novamente agora, o mesmo homem.

Em primeiro lugar, é visivelmente pessoa muito inteligente. Não fosse, não teria sido enviado para missão no serviço de computação de alto nível, computadores, informes. É evidente que ele entende do que fazia e fez, em serviço para o qual foi selecionado e nomeado.

Mas também é pessoa que tem personalidade política, que percebe as implicações do que pensa, de como se apresenta. Não é fraco nem é voz fraca.

Num certo momento da audiência, a juíza lhe fez uma pergunta; Bradley respondeu que não poderia responder, porque teria de revelar informação secreta. Muitos riram, porque… ali, sob processo, sob ataque do Promotor, ele ainda pensou mais em proteger informação secreta do que em responder à juíza. Alguns riram. Outros permaneceram sérios. Outros baixaram a cabeça.

Mas é claro que foi dia duríssimo para Bradley Manning… Será sentenciado a pena muito longa.

Esperemos que não receba a pior sentença.

Esperemos que considerem essas acusações nas quais ele declarou-se culpado.

Ainda se deve registrar aquela declaração lida, umas 35 páginas, que não foram distribuídas a ninguém, nem a advogados nem a jornalistas presentes. Só a juíza recebeu o documento.

Mas havia cópias circulando entre aqueles caras que andavam por ali, no salão, em uniforme de camuflagem. Nós não recebemos. Evidentemente, não é documento secreto.

Eu, como outros, ouvimos a leitura de todo o documento, palavra a palavra; claro que não é secreto. O que há é que essa corte é conhecida por demorar muito, inadmissivelmente demais, para distribuir documentos devidos à defesa.

Já há importante processo iniciado contra essa Corte, pelo Centro [de Direitos Constitucionais]. Já obrigamos essa Corte a liberar alguns documentos devidos à Defesa.

Mas a declaração que Manning (foto) leu no tribunal é documento muito, muito importante. Todos, jovens, velhos, que leiam aquela declaração hão de sentir-se tocados.
Talvez mais gente se disponha a agir, a fazer o que possa, para que esse país seja forçado a andar na direção do estado de direito, na direção do respeito à lei.

Para que os EUA deixem de ser a máquina de matar que, me parece, Bradley Manning viu, com clareza, em escandaloso funcionamento.

[Agradecimentos. Fim da entrevista]

Fonte:
http://revistamirante.wordpress.com/2013/03/04/surge-um-heroi-nos-eua/?blogsub=confirming#blog_subscription-2

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade e, excetuando uma ou outra, inexistem no texto original.