terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Uma visita à Christiania, uma comunidade sem leis

Antonio Fernando Araujo

Prinsessegade, Copenhague, é a rua de paralelepípedos que vai nos deixar diante da entrada de Christiania. Para um turista desavisado quase não é percebida. Vamos começar a descobrir esse “mundo novo”, que em termos de Ocidente, cristão e civilizado, é de um significado incomparável, dessas coisas singulares manifestadas a cada século e de uma maneira tão especial que a gente custa a crer que sobreviverão por muito tempo.

Meses mais tarde eu haveria de imaginar que Christiania bem que poderia deixar de ser apenas uma "pedra no sapato" da Dinamarca, mas assumisse a dimensão e o alcance de toda uma Europa, imersa em um delírio anarquista que contrariasse a idéia dominante de que a humanidade se auto-destruirá se não existir um controle sobre a liberdade individual. Embora seu enredo possa ser visto como fruto de um devaneio quando apregoa um estilo de vida que propõe uma nova ética de convivência baseada na irrestrita solidariedade e na honestidade a toda prova, Christiania ainda assim, se apresentaria - de um lado - como uma lenda da liberdade na contra-mão da história e - de outro - permanentemente na vanguarda iluminando a Europa e o mundo desse cantinho discreto de Christianshavn, um bairro boêmio-turístico de uma Copenhague fria, de uma Dinamarca há séculos encravada na nobreza feudal, no mercantilismo e no capitalismo europeu.

Seguimos na direção daquela entrada e sob o primitivo e tosco pórtico de madeira escura, entalhada como totens e encimado com o nome CHRISTIANIA em letras douradas, pegamos um folheto e adentramos nesse mundo à parte onde algumas pessoas nos parecem cordiais e outras nem tanto, exibindo uma fisionomia de barbas e cabelos desalinhados capazes de suscitar temores variados, por conta da chegada a um território evidentemente hostil. Decidimos não tirar fotos quando vimos uma placa onde, por sobre o desenho de uma câmera, uma tarja vermelha indicava a proibição. Mas tanto essa impressão quanto a proibição não tardaram a se desfazer e na medida em que percorríamos as ruas coloridérrimas por conta dos imensos painéis pintados nas laterais ou mesmo em algumas fachadas dos prédios e dos adereços de toda sorte pendurados em árvores e alpendres, pelos moradores comuns caminhando pelas ruelas, por alguns dos trajes de jovens e de mulheres, pelos edifícios de tijolinhos aparentes com janelas no nível da rua, pelos jardins bem cuidados diante de casas simples com suas portas escancaradas, pelos sons ardentes de uma música que não entendíamos, pelos ateliês abertos para os olhares de quem passa, pelos triciclos e bicicletas espalhados por toda a parte e que aparentemente substituem aqui os automóveis, pelos bares povoados por figuras andróginas algumas delas desconcertantes, enfim, por tudo o que cada personagem desse universo mágico representa, fomos aos poucos percebendo que, apesar da estupenda diferença cultural, certamente esses homens e mulheres buscam, assim como nós, um círculo de paz e de harmonia, tanto com as outras pessoas quanto com a natureza, longe dos ódios, das guerras, da destruição do verde, do extermínio dos animais e da cada vez mais crescente insegurança das metrópoles.

Mesmo sendo uma sociedade absolutamente livre e aberta, tendo sido criada ao sabor da lucidez e das controvérsias dos movimentos hippies e anarquistas das décadas 60/70 do século passado – e talvez até por isso – hoje o colorido prospecto que distribuem assinala claramente:

“Existem quatro e inquebrantáveis regras em Christiania:

NÃO, às drogas pesadas (haxixe, heroína, cocaína, crack, etc.) e qualquer pessoa pega com elas é sumariamente expulsa da área” - porém a maconha e a erva "skunk", podem,
NÃO, a qualquer comércio que envolva moradias ou áreas residenciais,
NÃO, às armas de qualquer espécie e
NÃO, à violência seja ela de que tipo for.”

E conclui: “Não cremos que os nossos visitantes possam ter qualquer espécie de problema aqui, se obedecerem a essas regras.”

Mas eles não ficam só nisso. Outras normas, com o passar do tempo, foram sendo incorporadas, até para estabelecer certa disciplina na conduta de cerca de um milhão de visitantes que a cada ano passam por aqui. Êi-las:

- Christiania é uma vila aberta ao tráfego de automóveis, embora não sejam benvindos e onde você estaciona nas ruas; mas, o melhor mesmo é pegar o metrô e descer em Christianshavns Torv ou o ônibus da linha 66 (na direção da Refshaledøen) descendo na Prinsessegade.
- Aqui é proibido trafegar de motos e assemelhados.
- Bicicletas são permitidas e estimuladas até, mas lembrando sempre: em qualquer circunstância a prioridade é do pedestre.
- O lixo é todo separado e classificado: orgânico, vidros, papéis, inflamáveis, plásticos, baterias, etc.
- Toaletes: use as públicas, não a natureza; procure-as no mapa ou então, pergunte.
- Respeite a privacidade: não entre nas casas e nem nos jardins sem ser convidado. Existem muitas áreas arborizadas aonde você pode sentar-se e saborear seu almoço em paz e gozando da quietude desses lugares.
- Fotografar: tente perturbar o mínimo possível e peça permissão às pessoas antes de fotografá-las.
- Animais: não traga seus animais domésticos mesmo sendo eles dóceis e mansos.
- Não discrimine ninguém.

Dessa maneira todos são bem-vindos a Christiania, garantem. E mais: pode-se caminhar livremente por suas calçadas e alamedas e quando alguma delas passar próximo das janelas, não se acanhe, pode-se bisbilhotar para dentro e observar o que fazem seus moradores. Isso não é considerado “invasão de privacidade” e ponto final.

Falando em moradia: sempre que uma é desocupada, põe-se um anúncio e a Cooperativa que administra os imóveis reúne os interessados e os vizinhos mais próximos e escolhem os novos moradores. Não corre dinheiro nem por cima e nem por baixo da mesa. É feito às claras levando-se sempre em conta o bem estar dos moradores e a filosofia de vida dessa "Cidade Livre", como eles se autodenominam, e que já acumula mais de 40 anos de história.
Christiania, essa original mistura de um estilo de vida tipicamente dinamarquês com um modo livre e progressista de organizar uma comunidade com cerca de mil habitantes, já se tornou conhecida em vários cantos do mundo. Não é à toa que várias organizações internacionais e estudiosos do comportamento social a visitam para conhecer essa experiência inédita e vitoriosa, que abriga não só pessoas, social e economicamente bem sucedidas, como, jovens desempregados, mães solteiras e sem teto, vagabundos e desafortunados de vários quilates. Novamente: todos são benvindos a essa mistura mágica de aldeia secular com metrópole de vanguarda e que tanto põe a nu seus valores artísticos e culturais e a exuberante criatividade do conjunto de seus moradores.

Basta ver o projeto arquitetônico de algumas de suas moradias, admirado e estudado até pela vizinha Escola de Arquitetura de Copenhague, as apresentações de música ao vivo, teatro e exposições de pintura e de esculturas, para se ficar de acordo com o rótulo, inúmeras vezes atribuído a Christiania, de que ela é uma “ilha de cor cercada de arte” e de se ter a convicção de que consagra um capítulo inteiro do seu senso comum à contínua valorização dessas atividades, não apenas agora, mas ao longo de toda sua incerta existência. Essa existência de cores, longa e recheada de batalhas, vitórias e derrotas é a história incomum dessa comunidade que um dia sonhou com uma vida plena de liberdade e com a idéia de um lugar regulado e administrado por seus próprios habitantes.

Christiania nasceu em 1970 a partir de uma invasão hippie junto com jovens desempregados a uma antiga base da OTAN, na ocasião desativada, visando a construção de uma sociedade alternativa, cujo lema principal seria a mais ampla liberdade. Até hoje, quando já possuem representantes no Parlamento, ainda vivem às turras com o Ministério da Defesa, o legítimo proprietário da área. Muitos daqueles que viram Christiania nascer, não estão mais aqui, mas parece que os ideais desses pioneiros não se perderam, ao contrário, se atualizaram e se mostram mais vivos do que nunca: continua sendo uma comunidade sem leis (apesar daquelas regrinhas) mas com um senso comum altamente desenvolvido. Se hoje seu futuro promete passar distante dos utópicos mandamentos propostos por seus idealizadores, pois muitas de suas características se perderam no tempo, pelo menos permanece intacto seu status de santuário contemporâneo da paz, do amor e da liberdade. Os problemas são debatidos e resolvidos em cada Conselho de Cidadãos – por consenso e não por maioria -, o que faz com que as decisões sejam demoradas, mas permitem um grau maior de satisfação.

Como ninguém é proprietário de sua moradia, cabe também ao chamado Conselho Comum tomar as providências junto ao Conselho de Christianhavn, um bairro vizinho e do qual Christiania participa, à Prefeitura de Copenhague e ao Governo da Dinamarca, que dizem respeito ao fornecimento de água, eletricidade, gás, pavimentação, esgotos, telecomunicação, paisagismo, etc. Já aos moradores restam aquelas atividades econômicas que os aproximam: mercados, padarias, jardins da infância, escolas, creches, casa comunitária de banhos, prestadores de serviços diversos, de marceneiros aos técnicos de informática, bares e cafés, artesãos da madeira, metais e tecidos nos mais variados produtos, plantadores de ervas, produtores de chá, cosméticos, pastas de dente, produtos homeopáticos e por aí vai. A educação infantil compõe um capítulo todo especial, cuja ênfase aponta para um mundo político e ecologicamente mais correto e mais de acordo com o futuro livre e saudável da comunidade, muitas vezes até contrária às posições oficiais assumidas pelo governo.

Algumas empresas se instalaram aqui e utilizam com sabedoria a mão de obra local. Tais empresas são aquelas que, pela natureza de seus produtos, exigem um alto grau de inventividade, como as dos segmentos de telefonia móvel, as de eletroeletrônica, as de som e imagens, etc. Foi essa inventividade que produziu a moeda local, a Løn – equivalente a 50 krones (cerca de 20 reais), aceita apenas aqui dentro e fez nascer, lá pelos idos de 1984, uma indústria tipicamente local, levada adiante por habilidosos serralheiros, cujos produtos, seguros e de alta qualidade, projetados para durar e atender necessidades específicas tornou Christiania ainda mais conhecida: o das bicicletas e triciclos com bagageiros. Projetadas em estreita cooperação com os usuários, hoje são vistas em toda a Dinamarca – como as bicicletas-táxi de Copenhague – e até exportadas. Christiania ainda se orgulha de ter sido um dos primeiros lugares do país a utilizar a “banda larga” a baixo custo permitindo assim o emprego da internet pela grande maioria de seus moradores. E mais: da reciclagem da sua água, do uso da energia solar em larga escala e de vários outros projetos de natureza ecológica e que se voltam para um estilo de vida cada vez mais saudável.

Esta é a síntese da Christiania dos dias atuais: uma experiência que o governo, pressionado pela União Européia, quer acabar porque incomoda a grande indústria. Experiência que insiste em ficar distante daquele modelo de um mercado consumidor, que ela, a grande corporação, prefere ver estruturado para se manter sempre igual e disciplinado e não para ficar dando "maus exemplos", criando e oferecendo alternativas comunitárias, fora de uma cartilha padrão preconizada por um mundo que se pretende global, único, uniforme. Algo que parece ter saído de um conto de fadas ainda que saibamos que fadas não costumam fumar maconha.

Ainda terei que viver muitos anos com a esperança de que apenas a intuição me ensine a navegar com destemor nos pantanais e nos alpendres floridos dessa comunidade imprevisível, de saias rodadas e franzidas, de tranças longas até a cintura, sem uma bússola e contra a corrente do mundo ajuizado que não se arrisca fora do leito banal da existência. Confesso ainda sentir dificuldade em discorrer sobre Christiania e sobre o impacto ou o desconforto intelectual que me causou. Esse mundo, situado no outro extremo da nossa galáxia, não pode ser inteiramente percebido em uma visita turística de 40 minutos. Contudo aquelas coisas que penetram logo pela retina, que tocam de imediato nossa pele e entram pelos nossos ouvidos ao primeiro contato, me levam a imaginar a exuberante aldeia, aquela que um dia foi preconizada pelos anarquistas do século 19. No crisol onde costumam arder todas as utopias, quiçá ela possa nos servir como um magnífico norte, um exemplo a ajudar-nos a dar uma guinada - não mais apostando inteiramente “de que a Ciência [e os banqueiros] haverá de nos dar a Terra Prometida” -, aquela mudança de rumo e de estilo que, logo de cara, nos convença de que estaremos caminhando firmemente na direção de um novo código de conduta para o homem, de uma nova moralidade, modernos, mais justos e mais fraternos, para a Humanidade se reorganizar e continuar povoando essa terra-mãe.

Hoje, quando europeus encontram-se socialmente fragmentados, financeiramente moídos, triturados em suas camadas mais pobres pelas ambições de um sistema que a cada crise se revela algoz de parcelas cada vez mais consideráveis da humanidade "vale, então, apostar numa atitude de confiança e de entrega radical (é o sentido bíblico de fé) de que o mundo é salvável e o ser humano resgatável a ponto de descobrir a irmandade universal até com as formigas do caminho,” assinalou Leonardo Boff.

Christiania, com tudo o que essa pequena vila significou para mim – tenha eu apreendido ou não os sinuosos e insondáveis meandros do seu enredo essencialmente humano - vai ficar, em caráter permanente e antes que a União Européia e a Dinamarca a varram sem remorsos do mapa, catalogada num lugar dos mais serenos e reservado a futurologias da série Lugares Inesquecíveis, pois dela ainda haverão de soprar ventos ainda mais promissores de uma rebeldia que proponha contornos novos para uma sociedade menos injusta.

"O movimento hippie chegou ao fim junto com os anos 70. Na ocasião, escrevi no jornal Aktuelt, do Partido Socialista Dinamarquês, que deveríamos utilizar o melhor do seu legado: a busca da sabedoria, a luta pela liberdade, a procura da integridade com a natureza, a simplicidade no trajar, as comunidades familiares, a guerra a preconceitos odiosos e assim por diante. Ocorreu exatamente o contrário. (...) Nos últimos 35 anos, vem se tentando destruir o pensamento em favor do lucro. Quem pensa não compra o que lhe é imposto, e quem não compra o que é imposto é inútil para o sistema. (...) É verdade que, para os que tinham algum dinheiro, a vida melhorou bastante, pois o cérebro pouco exigente nada mais pede que casa, carro e novela de TV." Se vivo fosse, Fausto Wolff testemunharia o quanto de seu presságio se constata na Europa dos nossos dias, meia destroçada pela ganância de alguns e ainda assim e por suas elites, apostando o que lhe resta em um modelo econômico onde a solidariedade, a paz e a harmonia não são levados em conta.
 Quando deixamos a Pusher Street (a "Rua do Traficante") e voltamos a cruzar o mesmo umbral de madeira, onde, agora no seu reverso, se lê, "estamos de volta à Comunidade Européia" e a percorrer a Prinsessegade, regressando ao nosso planeta em Christianshavn, o relógio já assinalava 5 da tarde. Seguíamos na direção da parada do ônibus dessa vez margeando a Overgaden Oven Vandet, uma rua povoada de bares com mesas nas varandas e calçadas, apinhados de gente e o Christianshavn Kanal, o anfitrião que hospeda centenas de barcos ancorados nas margens permitindo que alguns, transportando turistas, naveguem placidamente por suas águas. Alheios a esse burburinho todo Christiania, ali ao lado, preparava-se para mais uma noite sem iluminação nas ruas, exceto as luzes provenientes dos bares, ateliês, oficinas e mercadinhos, de reuniões de moradores em seus respectivos Conselhos, sem a necessidade das leis que controlem a organização social, de construção, enfim, de uma vida comunitária sem a presença de um governo "caretamente" institucionalizado. Com uma temperatura em torno de 15ºC, podíamos nos dar por satisfeitos, pois apesar do céu meio encoberto não chovia e não sentíamos o vento gélido que, não raro, sopra do Mar do Norte. 

Nos despedimos de Christianshavn com essas imagens todas, de um sonho que por enquanto ainda não acabou, de uma utopia que ainda está dando certo. Sua vizinhança com Christiania bem que a faz merecedora de boa parte da brisa saudável que já sopra daquelas bandas e chega até aqui. O chope que tomamos em pé no balcão de um dos bares funcionou como um inesquecível brinde a esse passeio - repleto de surpresas - por este lado luminoso de uma surpreendente Copenhague.