140 300x183 O mesmo mundo, a mesma dorA globalização trouxe uma externalidade, quer dizer, um efeito não desejado e incômodo para o sistema de poder imperante, fundado no individualismo: a conexão de todos com todos, de sorte que os problemas de um povo se tornam significativos para outros em situação semelhante. Então se estabelecem laços de solidariedade e surge uma comunidade de destino.
É o que está ocorrendo com os levantes populares, mormente animados por jovens universitários, seja no mundo árabe, seja em nove Estados do Meio Oeste norte-americano, começando por Wisconsin. Estes levantes nos Estados Unidos quase não repercutiram em nossa imprensa, pois não interessa a ela mostrar a vulnerabilidade da potência central em franca decadência. Um jovem egípcio levanta um cartaz que diz: “o Egito apoia os trabalhadores de Wisconsin: o mesmo mundo, a mesma dor”. Como num eco, um estudante universitário norte-americano, voltando da guerra do Iraque levanta o seu cartaz com os dizeres: “Fui ao Iraque e voltei à minha casa no Egito”. Quer dizer: quer participar de manifestações nos Estados Unidos semelhantes àquelas no Egito, na Líbia, na Tunísia, na Síria e no Yemen.
Quem imaginaria que em Madison, capital de Wisconsin, com 250 mil habitantes, conhecesse uma manifestação de cem mil pessoas vindas de outras cidades norte-americanas para protestar contra medidas tomadas pelo governador que atam as mãos dos sindicatos nas negociações, aumenta os impostos da saúde e diminui as pensões? O mesmo ocorreu em Michigan, onde o governador conseguiu fazer aprovar, pelo parlamento estadual, uma esdrúxula lei que lhe permitiu nomear uma empresa ou um executivo com o poder de governar todo o aparato do governo estadual. Isentou em 86% o imposto das empresas e aumentou em 31% aquele dos contribuintes pessoais. Tudo isso porque os assaltantes de Wall Street, além de saquearam as pensões e as economias da população, quebraram os planejamentos financeiros dos Estados. E a população mais vulnerável é obrigada a pagar as contas feitas por aqueles ladrões do mercado especulativo que mereciam estar na cadeia por falcatruas contra a economia mundial.
Conseguiram para eles uma concentração de riqueza como nunca vista antes. Segundo Michael Moore, o famoso cineasta, em seu discurso em apoio aos manifestantes em Wisconsin: atualmente 400 norte-americanos têm a mesma quantia de dinheiro que a metade da população dos Estados Unidos. Enquanto um a cada três trabalhadores ganha US$ 8 por hora (antes era US$ 10/hora), os executivos das empresas ganham US$ 11 mil/hora, sem contar benefícios e gratificações. Há um despertar democrático nos Estados Unidos que vem de baixo. Já não se aceita esta vergonhosa disparidade. Condenam os custos das duas guerras, praticamente perdidas, contra o Iraque e o Afeganistão, que são tão altos a ponto de levarem ao sucateamento das escolas, dos hospitais, do transporte público e de outros serviços sociais. Há 50 milhões sem nenhum seguro de saúde e 45 mil morrem anualmente por não haver agenda para um diagnóstico ou tratamento.
O mundo árabe está vivendo uma modernidade tardia, aquela que sempre propugnou pelos direitos humanos, pela cidadania e pela democracia. Como a maioria dos países é riquíssima em petróleo, o sangue que faz funcionar o sistema moderno, as potências ocidentais toleravam e até apoiavam os governos ditatoriais e tirânicos. O que interessava a elas não era o respeito à dignidade das pessoas e a busca de formas democráticas de participação. Mas pura e simplesmente o petróleo. Ocorre que os meios modernos de comunicação digital e o crescimento da consciência mundial, em parte favorecida e tornada visível pelos vários Fóruns Sociais Mundiais e Regionais, acenderam a chama da democracia e das liberdades. Uma vez despertada, a consciência da liberdade jamais poderá ser sufocada. Os tiranos podem fazer os súditos cantarem hinos à liberdade, mas estes sabem o que querem. Querem eles mesmos buscar a liberdade que nunca é concedida, mas sempre conquistada mediante um penoso processo de libertação. Agora é a hora e a vez dos árabes.
* Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor.
** Publicado originalmente no site Adital.
(Adital)