sábado, 23 de abril de 2011

Para Frei Betto, governo é conivente com descaso de empreiteiras


Frade dominicano e ex-assessor da Presidência da República lamenta postura do governo Dilma em relação às obras do PAC, critica virada diplomática em relação ao Irã e avalia o cenário político no Oriente Médio e em Cuba 
 

São Paulo – Conhecido pelo apoio crítico ao atual governo, o escritor Frei Betto não poupa a presidenta Dilma Rousseff de observações nestes primeiros meses de gestão. Lamenta a decisão de apoiar o envio de um relator especial sobre direitos humanos ao Irã e questiona por que não se adota a mesma postura em relação às violações cometidas pelos Estados Unidos.
Assessor de Lula na primeira metade do primeiro mandato, Betto tampouco elogia a prioridade a grandes obras via Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). “O governo sempre foi conivente para com o descaso das empreiteiras com a condição dos trabalhadores, ou seja, as empreiteiras terceirizam o trabalho manual através de gatos”, lamenta em entrevista à Rede Brasil Atual e ao Jornal Brasil Atual.
O autor de “A mosca azul” e “Calendário do poder”, obras nas quais analisa sua passagem pelo Palácio do Planalto e a formação do PT até chegar à Presidência, também vê de forma crítica as reclamações que os ministros de Dilma têm feito da Organização dos Estados Americanos (OEA). Este mês, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), subordinada à OEA, fez um alerta sobre o impacto das obras da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, o que provocou fortes declarações por parte dos integrantes do alto escalão do governo.
“Se o Brasil está insatisfeito com o que seria uma ingerência da OEA em assuntos internos, siga o exemplo de Cuba: rompa. Agora, se o Brasil continua como signatário e membro da OEA, precisa respeitar as decisões da OEA”, dispara.
Confira:
Como tem visto esses primeiros meses de governo Dilma quanto à proteção dos direitos humanos e à continuidade de um projeto reformista?
O governo Lula foi excepcionalmente positivo, na minha opinião o melhor de nossa história republicana, sobretudo pelo aspecto social e pela política externa, e minha esperança é de que o governo Dilma dê continuidade a essa pauta.
Preocupa-me, até agora, nesses cem dias de governo Dilma, justamente o ponto dos direitos humanos na questão internacional. Ao contrário do que fez o governo Lula, que sempre se recusou a fazer eco às posturas anti-iranianas da Casa Branca, o Brasil do governo Dilma votou em Genebra pela fiscalização dos direitos humanos no Irã, quando muitos países foram contra e muitos se abstiveram. E eu levanto o porquê de ser no Irã, e por que não nos Estados Unidos, que é o maior violador de direitos humanos?
Aliás, poucos dias depois (do voto sobre o Irã) o Departamento de Estado (dos EUA) emitiu uma avaliação sobre vários países e condenando o Brasil porque ainda perdura a tortura nas nossas delegacias, o que é verdade, mas o Itamaraty ficou sumamente irritado e fez uma nota de protesto, o que acho inútil. A pergunta é: por que o governo brasileiro não dá um troco à altura, fazendo um relatório sobre direitos humanos nos Estados Unidos?
Tivemos recentemente duas questões relacionadas a direitos humanos e PAC. Primeiro, Jirau e a revolta dos trabalhadores. Depois, Belo Monte e o pedido da OEA para que se façam mudanças nas condições gerais das obras.
O governo sempre foi conivente com o descaso das empreiteiras, com a condição dos trabalhadores, ou seja, as empreiteiras terceirizam o trabalho manual através de “gatos”, através dos que fazem contratos de trabalho semi-escravo porque isso convém para a economia (de custos) da obra. Então, o governo subsidia essas obras, muitas vezes através do BNDES, com recursos polpudos. E as empresas estão muito mais pensando em margem de lucro que na qualidade da obra e muito menos nas condições de trabalho daqueles que a constroem.
Jirau e Belo Monte são dois alertas. Em Belo Monte houve condenação formal da OEA, para a qual espero que o Brasil dê uma resposta satisfatória. Ou rompa com a OEA. Se o Brasil está insatisfeito com o que seria uma ingerência da OEA em assuntos internos, siga o exemplo de Cuba: rompa. Agora, se o Brasil continua como signatário e membro da OEA, precisa respeitar as decisões da OEA.
No caso de Jirau, o caldo entornou porque as condições absolutamente desumanas daquele conglomerado de trabalhadores sendo tratado sem nenhuma dignidade. E agora o governo resolveu tomar medidas, mas gostaria muito que essas medidas fossem tomadas também com relação às outras obras incluídas no PAC e sobretudo na reforma de aeroportos e na construção de estádios para os dois grandes eventos que o Brasil abrigará em 2014 e em 2016 (Copa do Mundo e Olimpíadas).
Ainda a respeito da OEA, o Brasil tem dado resposta à condenação da Corte Interamericana sobre nossa ditadura?
O governo brasileiro está tomando posições muito ambíguas. Liberou todos os arquivos da Polícia Civil, mas não liberou os das Forças Armadas. A duras penas se aceita que faça uma Comissão da Verdade, mas não se aceita que o crime da tortura, que é humana e internacionalmente imprescritível seja averiguado e, de certa forma, punidos aqueles que sejam identificados – até para mostrar que não é toda a Força Armada que praticou o crime em nome do Estado, mas alguns de seus membros. Isso deveria ser dito às claras e as famílias dos mortos e desaparecidos merecem uma reparação e, sobretudo, uma grande satisfação.
Então, espero que a Comissão da Verdade saia, mas que a gente possa ainda, à luz do que a OEA manifestou, de que a Lei de Anistia é esdrúxula, que se siga o exemplo dos demais países da América Latina onde a apuração dos crimes da ditadura só veio a fortalecer o processo democrático.
No dia 31 de março, vários militares voltaram a defender o golpe de 64...
A presidenta Dilma tomou uma medida extremamente positiva, e lamentavelmente pouco comentada, que foi proibir manifestações formais dentro dos quartéis. Na verdade, o golpe foi em 1º de abril e os milicos têm vergonha de admitir isso, por causa do caráter da data. Várias manifestações, como nos quartéis de Fortaleza, tinham sido programadas, e por ordem da Presidência da República foram vetadas. Tenho certeza de que se dependesse de Jobim ele permitiria.
A respeito do norte da África e do Oriente Médio, que já resultaram na derrubada de antigas ditaduras, podemos dizer que nos países árabes há movimentos revolucionários ou haverá algum outro tipo de desfecho para estes casos?
Não chamaria de revolucionários. Chamaria de evolucionários. Na verdade, são países que vivem sob ditaduras, autocracias, países cujos governos autoritários foram apoiados sempre pelos mesmos países ocidentais que agora ou temem a derrubada dos governantes, como acontece na Síria, ou querem derrubar os governantes, como aconteceu no Egito e agora na Líbia.
Ou seja, aquelas pessoas que estão reagindo, sobretudo jovens, querem se libertar de uma sociedade onde um certo fundamentalismo religioso instituiu uma série de segregações, tabus, preconceitos, e graças à internet e aos novos meios de comunicação, querem se integrar neste mundo globalizado. Acho que há uma carga muito forte de ingenuidade no sentido de que capitalismo e liberdade são sinônimos, mas há um passo adiante no sentido de se livrar de regimes arcaicos, onde as mulheres valem menos que certos animais e onde a racionalidade moderna, que faz a distinção entre religião e política, ainda não se instituiu como forma de pensamento coletivo.
Esta semana, Fidel Castro se retirou em definitivo das funções públicas ao deixar a presidência do Partido Comunista Cubano (PCC), transmitida ao irmão Raúl. Este, por sua vez, prometeu promover reformas econômicas acordes ao processo revolucionário da ilha. Gostaria de pedir que o senhor fizesse uma avaliação das mudanças propostas no recente congresso do partido.
Primeiro, Cuba vive uma situação econômica muito difícil porque é um país que é uma ilha quatro vezes. É uma ilha geográfica, é uma ilha por ser o único país socialista da história do Ocidente, é uma ilha porque perdeu o apoio significativo da União Soviética, e é uma ilha porque sofre o bloqueio dos Estados Unidos, que já dura 50 anos.
Como assegurar a onze milhões de habitantes condições dignas de vida, como faz Cuba, sem que haja similar na América Latina? A Revolução Cubana tem vários defeitos, mas não tem o de não assegurar os mais básicos dos direitos humanos: alimentação, saúde e educação. Isso tem um custo e esse custo foi muito abalado com o desaparecimento da URSS. Cuba perdeu 25% de seu PIB de 1990 a 2006.
Agora em 2008, dois furacões que derrubaram 440 mil casas e afetaram drasticamente a lavoura consumiram 25% do PIB. O principal produto de exportação de Cuba até 2008, que era o níquel, custava 70 mil dólares a tonelada no mercado internacional e hoje vale sete mil dólares. Como diz Raúl Castro, a água já passou acima da boca e está quase tapando o nariz, então é preciso sanar essa situação com medidas econômicas e essas medidas se caracterizam principalmente pela desestatização da atividade laboral, permitindo que os cubanos possam ter pequenas e médias iniciativas privadas, mas dentro do caráter da revolução, ou seja, sem liberar processos de acumulação de propriedade, de progressão rápida de riqueza e tudo nisso.
Espero que essas medidas deem certo, mas o mais importante de tudo é suspender o bloqueio dos Estados Unidos. Todos os governantes da América Latina são favoráveis ao fim deste bloqueio, inclusive a Igreja Católica em Cuba condena este bloqueio, mas lamentavelmente o Obama, de quem se esperava atitudes ao menos mais flexíveis em relação a Cuba, vem adotando as mesmas posturas típicas do Partido Republicano.
Essas mudanças podem abrir brechas para a volta do capitalismo em Cuba?
Não. Primeiro porque os cubanos olham em volta, veem a América Latina e não querem que o futuro de Cuba seja o presente da Guatemala, do Panamá, de Honduras. Você nunca ouviu falar de uma manifestação de rua em Cuba contra o socialismo. As pessoas que estavam insatisfeitas já deixaram o país há muitos anos. Evidente que há sempre alguém que tem uma cabeça muito capitalista e gostaria de viver em um país capitalista, mas o grosso da população é beneficiário das conquistas da revolução.
Várias vezes, conversando com cubanos que fazem serviços bem simples, como faxineira de hotel, motorista de táxi, guarda de rua, e eles lembram que, se não fosse a revolução, os filhos deles não chegariam à faculdade, não teriam como se tratar de doenças, seriam analfabetos, a filha poderia ser prostituta, o filho poderia estar envolvido no tráfico de drogas. E essas coisas, felizmente, não existem em Cuba, ou se existem são num número tão reduzido que não chega a representar um problema social.
Como vê a renúncia de Fidel Castro ao cargo no partido?
É esperado, na medida em que está adoentado, recolhido em sua casa. Não faria sentido continuar nesse cargo. Cuba tem uma nova geração preparada para assumir o governo, mas não adianta agora perguntar quem, porque a mídia só foca agora quem está em proeminência. Eu, que conheço intimamente o processo cubano, sei da qualidade de vários dirigentes para assumir o governo e dar continuidade e aprimoramento a esse processo socialista.