segunda-feira, 22 de março de 2010

Água, um direito a ser preservado

"Ao longo da história e por todo mundo, os direitos da água foram moldados tanto pelos limites dos ecossistemas como pela necessidade das pessoas. A água tem sido tratada tradicionalmente como um direito natural –um direito que nasce da natureza humana – das condições históricas, das necessidades básicas ou de noções de justiça. Os direito à água como os direitos naturais não se originam com o Estado; eles surgem de um dado contexto ecológico da existência humana. Assim como os direitos naturais, os direitos á água são direitos usufrutários; a água pode ser usada, mas não possuída. As pessoas têm direito à vida e aos recursos que a sustentam, como a água." Vandana Shiva

* Por Maria Lúcia Martins
Este texto faz parte de uma série que a equipe do blog publica nesta semana da água,que começa hoje, Dia Internacional da Água

Em março de 2000, as corporações que lucram com a água doce do Planeta Terra conseguiram que a água fosse definida como uma mercadoria no segundo Fórum Mundial de Água, em Haia. Representantes de governos, em reunião paralela, não fizeram absolutamente nada para atacar com eficácia a declaração. Em vez disso, os governos ajudaram a pavimentar o caminho para as corporações privadas lucrarem com a venda da água. Desde então, algumas corporações transnacionais, apoiadas pelo Banco Mundial e pelo FMI-Fundo Monetário Internacional estão ofensivamente assumindo a administração dos serviços públicos de água.

No mês de julho do ano seguinte, para fazer frente à ofensiva das grandes corporações, 800 delegados, de 35 países, reunidos na Cúpula da Água para Pessoas e Natureza firmaram o "Tratado para Compartilhar e Proteger a Água, o Bem Comum do Planeta". O Tratado declara que “a água doce não será privatizada, comercializada ou explorada para propósitos comerciais e deve ser imediatamente isenta de todo acordo bilateral e internacional e de acordos de investimentos existentes e futuros”. Esta disposição se contrapõe à conduta dos acordos, e as corporações vêm avançando sobre os mananciais e sobre os setores onde a água é matéria industrial como o de energia, bem como sobre os meios de comunicação, para que as notícias sobre estes fatos sejam editadas conforme os interesses dos grandes grupos econômicos. Inúmeros movimentos, em todo o mundo, se organizam para lutar pela conservação da água e por manter a água como um direito.

As estimativas são de que por volta de 2025, a menos que haja uma mudança de comportamento, entre ½ a 2/3 da humanidade estará vivendo com severa escassez de água doce.

Globalização e escassez


Na maior parte das comunidades nativas, o controle e os direitos coletivos sobre a água foram a chave para a conservação e o recolhimento desse recurso. Ao criar regras e limites para o uso da água, o controle coletivo garantiu sustentabilidade e equidade. Com o advento da globalização, entretanto, controle comunitário da água está sendo corroído e a exploração privada está tomando o controle. Na Índia, como conta Vandana Shiva, sistemas tradicionais de renovação da água estão, agora, em decadência. Num estudo com 152 povoados que utilizam sistemas de recolhimento de água tradicionais, 79 estavam secos ou poluídos. Na região de Mankund, os mil poços artesianos introduzidos secaram as fontes tradicionais de água."A água está disponível apenas se as fontes de água são renovadas e usadas dentro dos limites da sua capacidade de renovação. Quando a filosofia do desenvolvimento corrói o controle comunitário e, em vez disso, promove tecnologias que violam o ciclo da água, a escassez é inevitável", alerta ela.

Nos anos 1970 e 1980, o Banco Mundial e outras agências de fomento concentraram-se em tecnologias desastrosas de abastecimento de água. Desde a década de 1990, essas agências têm insistido agressivamente na privatização e na distribuição de água baseada em critérios de mercado, os quais já prometem ter resultados igualmente catastróficos.

Vandana acrescenta que "pressuposições reducionistas sobre o desenvolvimento da água defendem que, quando se trata de utilizar recursos naturais, a natureza é deficiente e as tradições das pessoas são ineficientes. No entanto, zonas ecológicas diferentes têm sido a base de culturas e economias variadas. As zonas áridas diferentes têm sido usadas para pastoreio de forma sustentável e as zonas semi-áridas têm sido usadas para a lavoura seca com irrigação suplementar".

Democracia ecológica e direitos à água

Todos concordam que o mundo está enfrentando uma crise séria de água, constata Shiva e adverte: "há, no entanto, dois paradigmas conflitantes para explicar a crise da água: o paradigma do mercado e o paradigma ecológico. O paradigma de mercado enxerga a escassez de água como uma crise que resulta da ausência de comércio de água. Se a água pudesse ser transportada e distribuída livremente por meio de mercados livres, é o que sustenta esse paradigma, ela seria transferida para regiões de escassez e preços mais elevados levariam à conservação desse recurso. Pressuposições de mercado são cegas aos limites ecológicos impostos pelo ciclo da água e aos limites econômicos impostos pela pobreza. A superexploração da água e a ruptura de seu ciclo criam uma escassez absoluta que os mercados não podem substituir com outras mercadorias. A pressuposição da substituição é, de fato, central na lógica da comoditização".

Shiva destaca que "mais do que qualquer outro recurso, a água precisa permanecer como um bem comum e necessita do gerenciamento comunitário. Com efeito, na maioria das sociedades, a propriedade privada da água foi proibida. Textos antigos, como o Código Justiniano, mostram que a água e os recursos naturais são bens públicos: "Pela lei da natureza essas coisas são comuns à humanidade - o ar, a água corrente, o mar e consequentemente o litoral [Código Justiniano 2,1.1].”

Os direitos comunitários são necessários tanto para a ecologia quanto para a democracia. Controle burocrático por parte de agências externas e distantes e controle de mercado por conta de interesses comerciais e por corporações desestimulam a conservação. Comunidades locais não conservam a água se as agências externas - burocráticas ou comerciais - são as únicas beneficiárias de seus esforços e recursos.

Shiva é categórica: "preços mais altos sob condições de livre mercado não levarão à conservação". Por causa das enormes desigualdades econômicas, há uma grande possibilidade de que os economicamente poderosos desperdiçarão água, enquanto os pobres pagarão o preço por esse desperdício. Diretos comunitários são um imperativo democrático - eles mantêm os estados e interesses comerciais responsáveis pelo que acontece e defendem os direitos das pessoas à água, sob a forma da democracia descentralizada, considera a ativista.

A conservação não interessa aos grandes exploradores, pois pode manter e prover recursos hídricos locais e mesmo regionais que dispensam grandes obras e/ou grandes projetos de tratamento. Para as corporações, quanto maior a escassez, maior a oportunidade de novos negócios e também maior o preço da água, na torneira ou na garrafa.